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A iniciação dos “velhos mestres”

1 CAPOEIRA É PRA HOMEM, MENINO, MENINA E MULHER

1.3. Iê, Viva Meu Mestre! – Capoeira Angola e Regional

1.3.1.   A iniciação dos “velhos mestres”

Sou discípulo que aprendo, sou mestre que dou lição5.

Mestre Pastinha começou a sua trajetória no universo da capoeiragem aos 10 anos de idade. De  acordo  com  suas  próprias  palavras  sua  “vida  de  criança  foi  um  pouquinho  amarga”  (Dias,   2006,  p.131)  e  passou  por  algumas  experiências  típicas  de  “moleques  de  rua”.

Quando tinha uns 10 anos – eu era franzino – um outro menino mais taludo que eu tornou-se meu rival. Era só eu sair para a rua – ia na venda fazer compra, por exemplo – e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então, eu ia chorar escondido, de vergonha e tristeza. Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente. Vem cá, meu filho, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui no meu cazuá que eu vou lhe ensinar coisa de muita valia. Foi isso que o velho me disse e eu fui. Então ele me ensinou a jogar capoeira, todo dia um pouco, e aprendi tudo. Ele costumava dizer: não provoque, menino, vai botando de vagarzinho ele sabedor do que você sabe. Na última vez que o menino me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era capaz. E acabou-se meu rival, o menino ficou até meu amigo de admiração e respeito. O velho africano chamava-se Mestre Benedito, era um grande capoeirista e quando me ensinou o jogo tinha mais idade do que eu hoje. (CRUZ, 2006, p.79 apud SCALDAFERRI, 2009, p.61).

Depois disso, Pastinha inicia outro momento de sua vida, também bastante duro, na Companhia de Aprendizes de Marinheiros, aos 12 anos de idade. Esta era uma escola correcional e a marinha representava a força marcial da Bahia. Pastinha ensinou capoeira para seus companheiros ali, de 1902 a 1909. Depois, lecionou na Rua Santa Isabel, de 1910 a 1922 quando abandonou a capoeira por um tempo – até 1941.

Em uma conversa com dois muleekes do Alto da Sereia, quando eu perguntei sobre como eles imaginavam a vida de Mestre Pastinha quando jovem, em comparação com a vida deles, eles responderam:

SARA: Como vocês imaginam a vida de Pastinha, era parecida com a de vocês? VINI: Não, bem difícil a dele. Quando a gente acha tudo na nossa.

SARA: Por exemplo? A vida de vocês é fácil é? ANTONIO: Ahã.

VINI: Fácil até demais.

SARA: O que na [vida] dele era diferente, por exemplo? VINI: O que na vida dele era diferente, Antonio? [Silêncio]

(Informação Verbal)

5 Trecho de cantiga de capoeira.

Interessante como os muleekes avaliam  sua  própria  vida,  como  “fácil”,  “a  gente  acha  tudo”.   Provavelmente o apoio que possuem de suas famílias, por morarem em uma comunidade relativamente tranquila, como veremos no terceiro capítulo, por ainda não precisarem trabalhar, podendo estudar (por mais que a escola pública deixe muito a desejar em seu sistema de ensino), além do acolhimento no seu grupo de capoeira, eles reconhecem que não passam as dificuldades que imaginam que Pastinha tenha passado em sua vida, mais pobre e difícil que a deles.

Mestre Noronha, nascido em 03 de agosto de 1909, conta que também começou a aprender a capoeira ainda menino, com a idade de 8 anos com um grande Mestre Cândido Pequeno, que era filho de um negro de angola com uma africana no estado da Bahia. Ele conta, em seus manuscritos:

Me dediquei a aprender capoeira com a idade de 8 anos, com um grande Mestre Candido Pequeno que tinha uma argolinha na orelha. Este grande mestre foi quem me lecionou capoeira com toda dedicação. Esta é a origem que procurei adaptar todas as mardade que existe na capoeira, golpe de vista e destreza, nos meios bons e ruins, e mal para poder conhecer quem são eles. O jogador de capoeira não é valente, nem deve ser, porque o capoeirista tem muito recurso para brigar, tem muita carma. O capoeirista deve ser muito educado para ser apresentado nos altos meios sociais. Se foi valente deixe esta vida que já passou de lado, valentia, devemos adquirir lastro de amizade, é o que devemos fazer (COUTINHO, 1993, p.38).

Vemos que, assim como Pastinha, Mestre Noronha defende a calma e o respeito ao outro, na capoeira, buscando romper com característica de valentia dos capoeiras de então.

Mestre Bimba também entrou para a capoeira ainda criança, na idade de 12 anos, tendo aprendido com o africano Nozinho Bento, conhecido por Bentinho, capitão da Companhia de Navegação Baiana. Dr. Decânio Filho (1996), em seu livro A herança de Mestre Bimba.

Filosofia e lógica africana da capoeira, conta sobre a vida de menino de Bimba: Por volta dos 15 anos de idade

O mestre já frenquentava as docas Executava pequenos serviços Para ganhar os seus vinténs!

Uma das tarefas era carregar os pães de sal

Que os estivadores compravam para levar para casa (DECÂNIO FILHO, 1996, p.75)

Bimba também teve experiências de moleque das ruas de Salvador que começaram a trabalhar desde cedo, como necessidade em suas vidas de meninos negros e pobres.

A forma de aprendizado daquela época era mais livre e espontânea. Pastinha escreveu em seu manuscrito que o aprendizado  da  “capoeira  de  antigamente  não  tinha  regras”,  era  tudo  na  base   da  “observação”.  Era  nas  vivências  da  batalha  do  dia-a-dia, nas rodas inesperadas da capoeira de rua, em encontros informais com capoeiristas mais velhos que se aprendia a arte.

Mestre Waldemar começou a aprender capoeira já com 20 anos de idade, em 1936, mas se considerava   “ainda   rapazinho”.   Isso   foi   em   Periperi,   subúrbio   ferroviário   de   Salvador.   Ele   menciona quatro mestres responsáveis pela sua formação: Telabi, Ricardo da Ilha de Maré, Siri de Mangue e Canário Pardo. Sobre o aprendizado, Waldemar conta:

Eles [os mestres] vinham para Periperi, aquela roda danada. Foi quando eu peguei a aprender com eles. Eu era rapazinho. Comprava duzentos réis de vinho tinto, aquele copo branco de  alça,  ele  tomava  e  dizia:  ‘pegue  na  boca  da  minha  calça!’  Eu  levava   pra pegar na boca da calça dele e ele virava aquela cambalhota desgraçada e já cobria [com]   o   rabo   de   arraia.   Quando   eu   ia   levantando   ele   dizia:   ‘não   levante   não,   lá   vai   outro!’  Os  alunos deles jogavam com a gente como que [se] a gente já era [fosse] bom (ABREU, 2003, p.16).

Nesse depoimento de Waldemar, ele confirma informações sobre os antigos jeitos de aprender/ensinar capoeira, denominados de oitiva. Abreu acrescenta que os esclarecimentos de Waldemar se assemelham a algumas informações dadas por Canjiquinha, sobre onde e como aprendeu capoeira, em 1935 (um ano antes de Waldemar) e do mesmo jeito – de oitiva (ABREU, 2003, p.16). Sobre a oitiva, Frede Abreu nos contou6 que é uma palavra que vem do   verbo   “ouvir”,   aprender   por   ouvir,   por   observar,   sem   métodos,   horários   ou   locais   pré- definidos para isso. Ele acrescenta em sua obra:

Era na roda, sem a interrupção do seu curso, que se dava a iniciação, com o mestre pegando nas mãos do alunos para dar uma volta com ele. Diferentemente de hoje em dia, quando é mais frequente se iniciar o aprendizado através de séries repetitivas de golpes e movimentos, antigamente o lance inicial poderia surgir de uma situação inesperada, própria do jogo: um balão de boca de calça, por exemplo. A partir dele se desdobravam outras situações inerentes ao jogo, que o aprendiz vivenciava orientado pelos   “toques”   do   mestre:   “não   levanta   não,   lá   vai   outro   [golpe]” (ABREU, 2003, p.20).

A  “prova” para saber se o camarada havia aprendido acontecia nos jogos com os alunos mais velhos e, por isso, como diz Mestre Waldemar (apud ABREU, 2003), o aluno tinha que aprender a se virar desde cedo. Assim como Pastinha, Waldemar também começou a ensinar com pouco tempo de capoeira, em 1940, quatro anos após ser iniciado, no Pero Vaz, Liberdade, bairro popular de Salvador. Waldemar conta que as rodas eram os momentos mais importantes para o aprendizado, assim como aconteceu com ele, pois era quando ele ia

mostrando aos seus alunos   o   que   deveriam   fazer:   “Ensinava   na   roda,   mas   tinha   os   dias   de   treino. Eles estavam jogando e eu fazia o sinal para fazer tesoura, fazia sinal para chibatear, fazia   sinal   pro   outro   abaixar”   (ABREU, 2003, p.20). Permanecia ali a importância da intimidade mestre/aprendiz, como forma tradicional de ensinar. Mesmo com todas as mudanças que vemos hoje em dia, a importância do ritual da roda no aprendizado da Capoeira Angola continua imprescindível. Para já trazer um exemplo, acontece frequentemente nas rodas do grupo Nzinga de os mestres   darem   “toques”,   dicas,   orientações   para   os   alunos   durante seus jogos nas rodas, principalmente para os muleekes.

Em relação ao tempo necessário para se começar a ensinar a capoeira, vimos que esses mestres – Pastinha, Noronha, Bimba, Waldemar – “pegaram   a   ensinar”   em   torno   três   ou   quatro anos depois que começaram a aprender, ainda que, no caso de Pastinha, ele tivesse apenas 12 anos de idade. Esse tempo pode acontecer também nos dias atuais, a depender da decisão do mestre e da dedicação. Mas hoje em dia, em um grupo de Capoeira Angola, o mestre é quem autoriza o aluno a ensinar. Naquela época, a relação entre mestres e discípulos parecia bem diferente da forma como hoje acontece dentro dos grupos. Havia grande proximidade e intimidade do mestre com seus discípulos, mas essa relação parecia ser mais livre e independente. No grupo Nzinga, por exemplo, os muleekes são estimulados a terem experiências de ensinar e já assumem essa função quando os mestres não se encontram. Mas isso acontece como uma função dentro do grupo, sob a coordenação e responsabilidade dos mestres e não de forma independente como acontecia antigamente.