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O CORPO EM DESLOCAMENTO : TERCEIRO ELEMENTO DE UMA POSSÍVEL TRÍADE CONCEITUAL PARA OLHAR A MOBILIDADE

PRODUÇÃO DO ESPAÇO

1.6 O CORPO EM DESLOCAMENTO : TERCEIRO ELEMENTO DE UMA POSSÍVEL TRÍADE CONCEITUAL PARA OLHAR A MOBILIDADE

Na verdade, a globalização faz também redescobrir a corporeidade. O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a frequência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por contraste, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de apreender. (SANTOS, 1996, p. 251).

A abordagem pelo corpo [associado ao espaço e ao tempo e deles indissociável] parte da constatação de que o corpo é a menor unidade geográfica e seu deslocamento representa a manifestação de desejos e necessidades humanas. Em sua dissertação de mestrado, Costa, T. (2011) propõe o termo menor unidade geográfica como definição do corpo e tradução para a expressão the geography closest in da poetisa americana Adrienne Rich, traduzido como geografia mais próxima por Soja:

[...] nossa performance como seres espaciais tem lugar em diversas escalas, desde o corpo, ou aquilo que a poetisa Adrienne Rich denominou, em alguma o asi o a geog afia ais p i a , at toda u a s ie de geog afias ais distantes, que abarcam desde dormitórios e edifícios, casas e bairros, até cidades e regiões, Estados e nações e, em última instância, toda a terra – a geografia humana mais distante. (SOJA, 2008, p. 34, tradução nossa).

Diferentemente das geografias distantes, essa nossa geografia mais próxima se movimenta, se desloca, se move, e para pensar sobre esses movimentos/deslocamentos por outras geografias, devemos falar de desejos, necessidades e de decisões pessoais. Pretende-se considerar o corpo como dimensão de análise, principalmente pela (re)apropriação do próprio corpo em deslocamento. A percepção de que existem diferentes corpos e diferentes capacidades de locomoção é também um tema relevante, que pode ser pensado pela diferenciação dos corpos em deslocamento e dos artefatos que o envolve: corpos com dois pés; duas, três e quatro rodas; os corpos como enclaves motorizados (e cultura do automóvel). Parece uma afirmação óbvia dizer que toda e qualquer atividade do ser humano acontece em um espaço e exige um tempo e seu corpo. Os deslocamentos humanos são essencialmente uma relação do corpo através do espaço-tempo, expressa tanto em distância quanto em velocidade, mas também em fruição. A proposta de uma abordagem espacial para tratar da mobilidade urbana se desdobrou na explicitação da dimensão tempo e, por fim, no corpo dos

deslocamentos humanos. Nos conceitos de Milton Santos, é no sistema de ações que se encontra o corpo, naturalmente ações de sujeitos ou de indivíduos, mas [...] é sempre por sua corporeidade que o homem participa do processo de ação. [...] A corporeidade do homem

u i st u e to da aç o. (SANTOS, 1996, p. 51-52).

Por sua vez, parece evidente que é do corpo no espaço-tempo que Lefebvre está tratando ao propor a triplicidade do conceito de espaço – percebido, concebido e vivido – e sua associação respectiva aos conceitos de prática espacial, representações do espaço e espaços de representação. No dizer de Lefebvre (2000, p. 50, tradução nossa) o espaço social se reporta ao o po, pois a elaç o o o espaço de u sujeito e o de u g upo ou de u a sociedade, implica da sua relação com seu próprio corpo, e reciprocamente. A prática social to ada glo al e te p essup e o uso do o po , ou seja, o espaço percebido é percebido pelo corpo. Da mesma forma, Lefebvre associa as representações do corpo às representações do espaço (concebido) e é sobre o vivido corporal que Lefebvre define a complexidade deste te ei o espaço . A dimensão corporal do espaço também é retomada quando defende a superação das contradições do espaço abstrato pelo espaço diferencial (LEFEBVRE, 2000, p. 408) pelo resgate do valor de uso do espaço (contra o valor de troca característico do espaço abstrato), uma vez que no espaço diferencial é pela restituição do corpo, do desejo e do prazer.

Retomando a análise de Harvey sobre espaços e tempos individuais, mesmo sem destacar a evidente presença do corpo do indivíduo nos esquemas de Hägerstrand (suas trilhas são registros do movimento do corpo dos indivíduos em movimento), ele avança nas abordagens sociopsicológicas do tempo e do espaço citando Foucault e de Certeau. Para Harvey, Foucault trata o espaço do corpo como o elemento irredutível das práticas sociais, pois sobre ele (o espaço do corpo) é que se exercem forças da repressão, da socialização, da disciplina e da punição. Para Foucault, o corpo existe no espaço e se submete à autoridade ou cria espaços particulares de resistência e liberdade, as heterotopias. Já Michel de Certeau vai trazer a criatividade e o andar ao debate. Pois segundo Harvey (1996, p. 197), tal como Hägerstrand, ele começa sua história pelo começo, mas no caso, os pés na cidade, trazendo caminhos entrecruzados que dão sua forma aos espaços, unindo lugares e criando a cidade e sua espacialização, por meio de atividades e movimentos diários.

É em sua obra A ida otidia a o u do ode o , ue Lefe e dialoga o a uest o de mobilidade urbana de forma mais explícita, ao fazer uma breve análise do automóvel como Objeto-Rei (apresentada na citação que abre a Introdução) na perspectiva da cotidianidade programada (um dos temas centrais do livro), declarando ser seu melhor exemplo. Não é sem motivo que o período de expansão capitalista de quase todo o século XX é denominado de fordismo, pois se o automóvel Ford T é um dos símbolos do consumo em massa, a criação de uma vida cotidiana (e para isso, a produção da cidade foi fundamental) para facilitar seu uso e estimular seu consumo é evidente e amplamente conhecida. Lefebvre pretende la ça u a luz so e o Auto el, e sua elaç o o a otidia idade a pa ti de uat o a o dage s: Automóvel como objeto total; as hierarquias e performances; o caráter simbólico; e o código que compõe o corpus (LEFEBVRE 1991a, p. 110-114).

Ao apresentar o automóvel como objeto total que rege múltiplos comportamentos e domínios da e o o ia ao dis u so , at a s de p io idades e o po do u siste a é que Lefebvre conclui que concebe-se o espaço de acordo com as pressões do auto el , expressão utilizada na citação que abre a tese. O carro chega a ser um pedaço da moradia de muitos, confirmando que no trânsito, as pessoas e as coisas se misturam sem se encontrar, em um caso de simultaneidade sem troca, contribuindo para ia a psi ologia , ou elho , a psi ose do oto ista. Por outro lado, há um perigo e um risco em circular de carro, sendo um resto da aventura do cotidiano, um pouco de prazer e de jogo. Lefebvre situa o carro na est utu a dos li is : li i pa a o e otis o, pa a a a e tu a, pa a o ha ita e pa a a sociabilidade urbana. Ele tem um lugar importante, determina uma prática (econômica, psí ui a, so iol gi a, et . e se o side a s o o side a os i o s ie te e te o o jeto total. Ele tem um sentido (absurdo! : De fato e a e dade o a so iedade ue o Auto el o uista e est utu a , o cotidiano. O Automóvel impõe sua lei ao cotidiano, contribui fortemente para consolidá-lo, para fixá-lo no seu plano: para planificá-lo (LEFEBVRE, 1991a, p. 111, grifos do autor).

Outra contribuição à análise do papel do automóvel refere-se às hierarquias e performances, já que ele não se reduz a um objeto material, ele dá lugar às hierarquias: a hierarquia perceptível e sensível (tamanho, potência, preço) e se desdobra numa hierarquia mais complexa e mais sutil, a das performances. Um bom carro coloca seu proprietário em um degrau alto da hierarquia, mas seu uso (esportivo através de uma ultrapassagem com perícia

ou perigosa) pode fazer subir seu motorista alguns degraus apenas pela performance, como um atleta usa seu corpo. Há uma analogia entre o estatuto do corpo humano e do automóvel, uma hierarquia física (peso, força, tamanho) e hierarquia das performances, e uma correspondência à hierarquia social, não de forma homóloga, mas análoga.

O caráter simbólico identificado pelo autor aponta que a existência prática do Automóvel é apenas uma porção da sua existência social, possuindo uma dupla realidade, mais forte que em outros objetos: sensível e simbólica, prática e imaginária (LEFEBVRE, 1991a, p. 112). A hierarquização é ao mesmo tempo dita e significada e agravada pelo simbolismo, tanto de posição social quanto de prestígio. Sonho e simbolismo que sobrepõe o consumo dos signos ao uso p ti o. Sig o do o su o e o su o de sig os, sig os de feli idade e felicidade pelos sig os (LEFEBVRE, 1991a, p. 113). Enfim, o carro acumula papéis e condensa os esforços para sair do cotidiano, reintegrando-lhe o jogo, o risco, o sentido.

Por fim, Lefebvre ressalta a importância da existência de um código que compõe o corpus, que dá unidade ao objeto dando-lhe um caráter totalizante, e no caso do carro, é o Código de Trânsito. Poder-se-ia agregar outros documentos, textos legais, jornalísticos e literários para compor o corpus. Conclui e reforça Lefebvre que o cômico (ou pândego) é que o objeto destrói e se dest i: i útil de asta idades e a pos, pois ele hega , ais edo ou ais ta de, ao ponto de saturação. Ele caminha para esse limite, terror dos especialistas de trânsito: o congelamento final, a imobilidade coagulada do inextricável (LEFEBVRE, 1991a, p. 113). No li o F e Deus e p a t ua: ou po ue o t sito e lou ue e o B asil 26, Roberto

DaMatta, antropólogo brasileiro, desenvolve questões sobre o comportamento do brasileiro no trânsito a partir de uma pesquisa com diversos agentes da mobilidade realizada em Vitória. Os autores tratam de questões muito similares à análise de Lefebvre, em uma realidade brasileira de mais de 20 anos depois, principalmente no que se refere às hierarquias, que eles contrapõem igualdade ue de e ia i pe a os espaços pú li os. Nossa p i ipal contribuição é tentar democratizar a rua, fazendo com que ela, tanto quanto a casa, seja su etida a u digo igualit io DAMATTA; VASCONCELLOS; PANDOLFI, 2010, p. 9, grifo dos autores). A tese principal defendida é que, no Brasil, preferimos formas verticalizadas de

relacionamento social (hierarquias) e que a preferência por formas individualizadas de transporte apresenta um dilema, além de um retrocesso, para uma sociedade que se ode izou i í io do s ulo XX te do o t a spo te pú li o o o p edo i a te. E t e várias contribuições, esse livro caracteriza melhor a reação do brasileiro (seja motorista ou pedestre) frente aos espaços públicos e igualitários, onde as pessoas se tornam indivíduos, e por isso mesmo, menos merecedores de nossa deferência.

Richard Sennett, em Carne e pedra (2006), coloca o corpo no centro do discurso ao mostrar sua relação com as cidades de Atenas, Roma, Paris, Londres e Nova York, partindo da constatação da passividade do corpo, evidenciada em uma sessão de cinema no subúrbio a e i a o, o side ada u luga p opí io ao desf ute da iol ia o o fo to do a condicionado. O que parece motivar Sennett (2006, p. 17) é o efeito devastador da transferência geográfica das pessoas para espaços fragmentados, enfraquecendo os sentidos e tornando o corpo ainda mais passivo -, tem relação direta com a mobilidade urbana, pois é para ele a experiência física da velocidade que reforça o corpo u a o passi o, pois iaja-se com uma rapidez que nossos ancestrais sequer poderiam conceber. Com isso, dialogando com a rapidez diferenciada de Ollivro e os não-luga es de Ma Aug , ele afi a ue o espaço tornou-se um lugar de passagem, medido pela facilidade com que dirigimos através dele ou os afasta os dele o ue t a sfo a o espaço u a o e u si ples o edo , se qualquer atrativo para o motorista que só deseja atravessá-lo (SENNETT, 2006, p. 17-18). Enfim, esse corpo passivo está desprovido do desejo e desconectado de seu espaço-tempo e é preciso considerar os efeitos da mobilidade neste corpo.

Além disso, junto com o tempo e o espaço, o corpo parece ser uma dimensão natural a ser tratada, que permite dialogar com a antropologia urbana e que contribui para reflexões sobre o papel do automóvel como objeto e mercadoria e ao mesmo tempo extensão do corpo, agora motorizado. A tríade espaço, tempo e corpo como prisma para entender os deslocamentos cotidianos na cidade, tem como objetivo facilitar as reflexões propostas, criando diálogos e conexões entre as teorias lefebvrianas (entre produção do espaço e vida cotidiana).

Apesar de recorrer frequentemente a Milton Santos e Lefebvre como fundamentos para sustentar a proposição da tríade espaço-tempo-corpo, esta ideia não aparece de forma explícita na obra desses autores, muito menos sua aplicação aos deslocamentos cotidianos.

Se essa tríade parece estar sintetizada no conceito de espaço de Milton Santos, já que a materialidade e as ações se dão através do corpo no espaço e no tempo, Lefebvre nos revela no capítulo final de A vida cotidiana no mundo moderno que esse encontro de termos se aplicava perfeitamente a seu pensamento, ao defender:

Que o cotidiano se torne obra! Que toda técnica esteja a serviço dessa transformação do cotidiano! Me tal e te, o te o o a o desig a mais um objeto de arte, mas uma atividade que se conhece, que se concebe, que reproduz suas próprias condições, que se apropria dessas condições e de sua natureza (corpo, desejo, tempo, espaço), que se torna sua obra. Socialmente, o termo designa a atividade de um grupo que toma em suas mãos e a seu cargo seu papel e seu destino social, ou seja, uma autogestão. (LEFEBVRE, 1991a, p. 214-215, grifo do autor).

Não se trata de coincidência encontrarmos essa tríade associada ao desejo como descrição de um processo de apropriação (no caso, do cotidiano tornado obra) neste ponto da obra de Lefebvre. Muito menos é por acaso que ele conclui A produção do espaço (LEFEBVRE, 2000, p. 483-485, tradução nossa) de forma similar, dizendo que a abertura (nos termos lefebvrianos: a possibilidade de ruptura do subsistema) identificada por ele como a necessidade da t a sfo aç o da so iedade e de seu espaço pela o f o taç o, te de a ult apassa as separações e dissociações, notadamente entre a obra (única; objeto portando a marca de um sujeito , o iado , o a tista, e de um momento que não voltará mais) e o produto (repetido, resultado dos gestos repetitivos, portanto reproduzível, levando ao limite a reprodução auto ti a das elaç es so iais . Lefe e ta est fala do de apropriação (do espaço), principalmente ao descrever o processo de superação das contradições do espaço em direção ao espaço diferencial ao longo desse livro e conclama ao final que a espécie humana produza um espaço como obra coletiva e suporte social de uma vida cotidiana transformada. Esse importante conceito de apropriação (em Lefebvre sempre de inspiração marxista e associado ao valor de uso em contrapondo à propriedade associada ao valor de troca) está presente de forma latente na proposta da tríade espaço-tempo-corpo que pretende possibilitar e facilitar as reflexões propostas, criando diálogos e conexões com entre diversas categorias lefebvrianas e a mobilidade urbana em Belo Horizonte.

Enfim, a tríade espaço-tempo-corpo apresentada nesse capítulo como uma proposição teórica será considerada ao longo de toda a tese como três dimensões indissociáveis que mantém estre si uma relação dialética e que ajudam a analisar e entender a mobilidade urbana.

2 [MOBILI]CIDADE: A MOBILIDADE COMO COESÃO DOS LUGARES DE

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