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2 [M OBILI ] CIDADE : A MOBILIDADE COMO COESÃO DOS LUGARES DE COPRESENÇA

2.1 M OBILIDADE E CIDADE : PROCESSOS INDISSOCIÁVEIS

A mobilidade participa da definição da cidade. [...] São as avaliações das famílias e das empresas para organizar sua mobilidade em função de sua localização, e reciprocamente, que modelam e desenham a cidade. (WIEL, 2002, p. 16, tradução nossa).

As conceituações do urbanista francês Marc Wiel contribuem de forma decisiva e incisiva na associação (e indissociação) entre urbanismo e transporte, ao tratar da transição urbana ou a passagem da cidade pedestre para a cidade motorizada (WIEL, 1999)27 que nasce de sua

intuição de que a mobilidade tem um papel central na evolução urbana. Decorre dessa intuição uma sequência de obras como Cidade e automóvel (WIEL, 2002), Cidade e mobilidade, um casal infernal?, Espraiamento urbano e mobilidade e artigos como A mobilidade desenha a cidade e Mobilidade e equilíbrios urbanos. Mais que uma lista de títulos, essa breve apresentação da obra de Wiel esboça suas ideias e sua linha de pesquisa.

Em um texto mais específico sobre mobilidade, Questões de mobilidade, a mobilidade em questão, produzido especialmente para um curso do Instituto de Geoarquitetura de Brest, Wiel (2005) e pli a a tese ue se e de i spi aç o a esse apítulo: os fluxos de deslocamentos de um lugar a outro constituem o lado dinâmico de uma realidade cujo lado estático é a disposição geográfica dos estabelecimentos humanos (o que chamamos frequentemente agenciamento urbano28) (WIEL, 2005, p. 1, tradução nossa, grifo do autor). Para ele, a

mobilidade é a contrapartida desta fixidez relativa , uma consequência do fato de que os esta ele i e tos uda de atu eza ou de lo alizaç o t o le ta e te e elaç o o ilidade otidia a ue pa e e, o pa ati a e te, da o de de u a i essa te i aç o

27 Para o autor, a cidade pedestre foi estruturada em função do modo a pé e de suas características (velocidade,

alcance e uso do espaço público) e é mais densa e pensada pela proximidade; em contraposição, a cidade motorizada é decorrente dos efeitos dos modos motorizados - especialmente do automóvel - que permitiram ampliar o alcance e a velocidade, e trazendo o fenômeno do espraimento urbano.

28 No original, agencement, que seria o resultado dos processos de aplicação da legislação e planejamento

que podem ser considerados fixos. E, o lui: o e iste u te o pa a a aça estes dois aspe tos o ple e ta es est ti o e di i o da ealidade u a a , pois, para ele, a palavra cidade não consegue expressar essa relação. De fato, os termos adotados não conseguem expressar essa ideia e traduzem predominantemente um dos processos: ou de localização ou de deslocamentos. A forma grafada – [mobili]cidade - como título deste capítulo, é uma tentativa de expressar a ideia de cidade em movimento, pois Cidade e Mo ilidade s o indissociáveis, se coproduzem mutuamente, se explicam reciprocamente, fazem sistema, et ... WIEL, , p. 2, tradução nossa), mas é seguramente imperfeita. Na sequência da passagem utilizada para abrir esse capítulo, Wiel (2002, p. 16, tradução nossa) vai constatar que a não compreensão dessa indissociabilidade entre cidade e mobilidade pode levar a certos equívocos, como a autonomia excessiva da política de mobilidade em relação à política urbana, que ele ualifi a o o a fo te de todas as ossas difi uldades. Para Wiel, o que justifi a essa i o p ee s o ue pe sa os a idade o o u a fo a ate ial e si li a, portanto estática, e não como um sistema dinâmico se adaptando permanentemente às incessantes e flutuantes interações de seus ocupantes.

Essa proposição de Marc Wiel explica e justifica muitos dos movimentos teóricos propostos, por estar exatamente entre a cidade e a mobilidade e por contribuir para a disputa e construção do conceito de mobilidade urbana sustentável, que associa a política urbana à política de mobilidade. O evidente protagonismo do uso e ocupação do solo como medidas de gestão de mobilidade urbana estão associados aos processos de localização que afetam as viagens urbanas em suas origens e destinos. As ideias de Marc Wiel ultrapassam os processos apresentados anteriormente (os círculos viciosos em favor do automóvel) e justificam sua sobreposição de forma imbricada e indissociável e essa é a tese central deste urbanista (WIEL, 1999), resumida e u a espi al , ue se asse elha aos p o essos j ap ese tados. O i tuito de Wiel, para além da constatação do processo, é mostrar a possibilidade de intervenção na fase final dessa transição urbana (passagem para a cidade motorizada) e, para isso, chega a te e p oposiç es. A ep oduç o dessa espi al a Figura 9, deve ser vista com algum cuidado, pois guarda muitas especificidades da realidade do processo de urbanização francês, mas seguramente é análoga em vários aspectos à realidade brasileira.

Figura 9 - Espiral da transformação da cidade pelas novas condições da mobilidade urbana.

Fonte: Elaboração própria a partir de Wiel, 1999 (p. 110, tradução e adaptação nossa).

A parte inferior do esquema de Wiel apresenta efeitos já conhecidos e evidenciados nos processos mostrados no Capítulo 1, como o aumento das distâncias de deslocamentos, da quantidade de veículos e necessidades maiores de investimentos. Nas duas etapas da parte superior da espiral de Wiel está sua contribuição para a análise espacial pretendida: os grandes processos de valorização e desvalorização do espaço; e a desagregação e recomposição da organização urbana.

São quatro fatores que caracterizam as melhorias que engendram efeitos de valorização ou

desvalorização seletiva do espaço, cada um correspondendo a um campo disciplinar

diferente (WIEL, 1999, p. 111-116):

Transformação que provoca um alongamento contínuo dos deslocamentos; e que desestimula

os modos de deslocamento que não sejam automóvel. Efeitos que estimulam uma transformação morfológica da

organização urbana (desagregação/recomposição) Melhorias que engendram efeitos de

valorização ou desvalorização seletiva do espaço

Tráfego necessita de melhorias de infraestrutura (vias, estacionamento) que permitem manter e, mais frequentemente,

aumentar a velocidade dos deslocamentos.

Esses dois efeitos sobre a mobilidade engendram um crescimento nulo ou fraco do total de deslocamentos mas um crescimento bem real do tráfego de automóveis, particularmente nas bordas

 O aproveitamento das potencialidades ofertadas é para o autor um processo que torna mais aguda a concorrência de todos dos elementos da oferta urbana (compras, escolas, lazer, etc.). Do campo da psicossociologia, trata-se do processo relacional do indivíduo com seu espaço, seu território, seu bairro. Na cidade pedestre, antes do automóvel, o bairro ocupava um lugar importante para busca da oferta urbana, que com a possibilidade de uso do veículo motorizado, passa a ser buscada em outros locais. Se antes o habitante tinha sentimentos de pertencimento a seu bairro e ao centro, atualmente o centro passa a ter uma função de representação e os habitantes possuem sentimentos de pertencimento nos diversos bairros que frequenta;

 O aumento geográfico da oferta imobiliária é o processo imobiliário de oferta fundiária disponível para habitação que provoca a mudança do preço de terrenos pela acessibilidade;

 A modificação da hierarquia dos lugares mais interessantes para implantação de atividades refere-se ao processo do ponto de vista do economista, onde se aplica a regra de concorrência entre equipamentos de proximidade, já que a o ilidade facilita o alargamento do espaço de escolha pelo conjunto de oferta urbana cujos elementos entram em concorrência, favorecendo os processos de concentração e/ou espe ializaç o WIEL, 1999, p. 111);

 Os impactos induzidos pelo tráfego trazem o ponto de vista ambiental, especialmente na desvalorização seletiva de espaços pelo tráfego e suas consequências.

A segunda contribuição da espiral proposta por Wiel está no que ele denomina desagregação e recomposição da organização urbana, que são os efeitos que estimulam uma

transformação morfológica da organização urbana, tendo de um lado a mobilidade facilitada

e de outro a mobilidade restrita (ou restringida). Para ele, a organização urbana é induzida tanto pela facilidade dos deslocamentos quanto por sua dificuldade, em um processo em continua transformação, onde os espaços obsoletos (desvalorizados pelos fatores descritos anteriormente) são substituídos pelos espaços novos (agora valorizados):

 Os processos urbanos franceses na produção e acesso à habitação são essencialmente e t ífugos , ge a do a pe iu a izaç o es i e to da idade e u a pe ife ia p i a, e os de sa e e os alo izada , o e po e i e to e guetifi aç o de

bairros com populações de classes sociais mais baixas e o esgarçamento das bacias de empregos, fazendo com que pessoas de uma mesma família encontrem trabalho em lugares totalmente diferentes e muitas vezes distantes.

 Por outro lado, os efeitos que estimulam a transformação da morfologia da organização urbana pela localização das atividades são mais complexos, já que há uma forte resistência ao movimento centrífugo em alguns locais, o que provoca, principalmente, a dissociação e distanciamento entre habitação e atividade.

A dinâmica descrita, apesar de trazer alguns elementos específicos da realidade francesa (como a periurbanização), mostra processos bem gerais que se aplicam à realidade das cidades brasileiras e que provocam transformação da organização urbana. No caso brasileiro, podemos identificar outros elementos, como a criação de condomínios fechados e distantes para classes médias e altas, os alphavilles (deliberadamente grafado com letra minúscula, nome comum e não nome próprio) que se associa aos processos de segregação que serão destacados neste capítulo, fundamentais na formação das isotopias que inspiram a proposição de análise da cidade aos pedaços. A segregação é tema recorrente nas reflexões de Flávio Villaça, que identifica nas cidades brasileiras as estratégias das classes de alta renda na ocupação urbana em áreas de melhor localização e maiores atrativos e a sua autossegregação. Villaça ide tifi a ue, desde a segu da etade do s ulo XIX, ―as lasses de mais alta renda começaram a exibir um processo de segregação que segue, até hoje, a mesma tendência. Em todas elas, sem exceção, a tendência é dessas classes se segregarem em uma mesma região geral da cidade (VILLAÇA, 1997, p. 1377). Essas formas de segregação decorrentes de uma expansão urbana baseada nos enclaves fortificados identificados por Caldeira (1997) como locais em que é difícil manter princípios básicos de livre circulação e abertura dos espaços públicos, estão diretamente relacionadas com o padrão de mobilidade adotado pelas grandes cidades brasileiras.

Na reflexão sobre o papel dos transportes na produção do espaço urbano, parte-se da premissa que o modo de produção das metrópoles contemporâneas (pós-modernas) além de levar a espaços fragmentados, segregados social e culturalmente, apresenta forte relação com o modo de transporte predominante: o carro nos espaços segregados de alta renda e o modo a pé nas favelas localizadas próximas aos centros. O capítulo se desdobrará em quatro temas, sendo o primeiro, a discussão sobre a (falsa) superação das barreiras espaciais e a relação

entre os mecanismos de localização e de mobilidade e o segundo sobre as distâncias entre os lugares de copresença, discutindo o próximo e o distante. Em seguida, apresenta-se a escolha dos pedaços como escala para olhar para a cidade e, ao final, destaca os fatores de formação e conformação desses pedaços como isotopias e heterotopias urbanas.

2.2 D

ESMISTIFICANDO A TÉCNICA

:

A

(

FALSA

)

SUPERAÇÃO DAS BARREIRAS ESPAÇOTEMPORAIS NA

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