• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – FACETAS DA FENOMENOLOGIA EM TRÊS MOVIMENTOS

2.3.6 Corpo enlutado

Merleau-Ponty, pesquisador incansável das percepções sobre a vida, deixou-nos o legado do olhar existencial que transcende a ortodoxia da verbalização. O corpo exprime em uma linguagem tácita o que não cabe em palavras. Existe uma linguagem do enlutamento, cujas fases, preconizadas por estudiosos, principalmente na área psíquica, não conseguem captar, englobar. As perscrutações que envolvem o luto vão além das concepções limitadas aos estágios sobre o luto.

A fenomenologia envolve o universo de crenças e valores de cada pessoa e se ocupa com o estudo das essências, da percepção da vida, da consciência em relação a essa mesma

169SOMBRA, José de Carvalho. O Tempo: em toda parte e em parte alguma. (A fenomenologia do tempo segundo M.Merleau-Ponty) – Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC, 1998, p. 118.

170CAPALHO, Creusa. A filosofia de Maurice Merleau-Ponty: Historicidade e Ontologia. Londrina: Edições Humanidades, 2004, p. 93.

vida. Evidentemente há um mundo hermenêutico que envolve a fenomenologia, pois no seu método o sujeito exporá sua percepção e sentido de mundo, a partir de sua própria experiência. Nesse sentido, tanto o pesquisador como seu foco de investigação passam pelo processo de reaprender a ver o mundo. Salientemos que os estudos da fenomenologia se interrelacionam com facetas da vida humana no que tange às esferas sociais, políticas, econômicas, mas é na esfera do corpo que ressaltam os estudos de Merleau-Ponty.

Percebo outrem enquanto comportamento, por exemplo, percebo o luto ou a cólera de outrem em sua conduta, em seu rosto e em suas mãos, sem nenhum empréstimo a uma experiência “interna” do sofrimento ou da cólera e porque luto e cólera são variações do ser no mundo, indivisas entre o corpo e a consciência, e que se põem tanto na conduta de outrem, visível em seu corpo fenomenal, quanto em minha própria conduta tal como ela se oferece a mim. Mas enfim o comportamento de outrem e mesmo as falas de outrem não são de outrem. O luto de outrem e sua cólera nunca têm exatamente o mesmo sentido para ele e para mim.171

Merleau-Ponty oferece o horizonte advindo de significados por meio do corpo, como possibilidade de expressão do significado dado a determinado tema da vida. As afirmações do filósofo nos apontam algumas nuanças vitais para a compreensão do processo do luto e a práxis religiosa. A dor humana desencadeada no processo do luto é sentida na sua exteriorização no corpo. A dor da perda publica sua presença no corpo de diversas formas. É no corpo que o luto demonstra seu toque, sua presença, mas também a possibilidade de rever a maneira como se vive. Aqui vale uma pequena digressão.

2.3.6.1 Algumas pontuações sobre a relação entre religião e corpo

O contexto religioso é um espaço promissor para se pensar o luto também na óptica do corpo. Para José Comblin172 o corpo, na óptica da religião, designa símbolos:

Na religião, o corpo está subordinado ao simbolismo e serve para criar símbolos religiosos. O corpo está instrumentalizado. Tal instrumentalização varia de acordo com as várias religiões. Há religiões mais expressivas ou exigentes com relação ao corpo e outras mais moderadas ou discretas. Em geral o cristianismo oriental foi mais expressivo e o ocidental, mais moderado.

171Ibidem, p. 496.

172COMBLIN, José. Cristianismo e Corporeidade. Corporiedade e teologia. São Paulo: Paulinas, 2005. 300 p p. 9.

Com interpretações que consideram o corpo como espaço do pecado, a religião cristã

é devedora de estudos que discutam a existência e o sentido delas em meio aos desafios de temas como sofrimento e sexualidade, por exemplo. Os estudos sobre corpo vêm ganhando vulto em espaços de estudos da religião, principalmente nas pesquisas de gênero. Luiza Etsuko Tomita173 fez um estudo relevante sobre a relação entre corpo e cotidiano dentro do enfoque de gênero. Ao pesquisar sobre alguns movimentos populares de mulheres, trouxe de volta à memória a história do Cristianismo, que deixou marcas indeléveis sobre o controle do corpo, principalmente o da mulher.

É importante ressaltar que o corpo é apenas uma das facetas dos estudos da fenomenologia, porém de intensa importância para seu método. O corpo é uma das expressões mais significativas do conceito do ser humano. Em Merleau-Ponty, ele se torna fundamento do conhecimento por intermédio da percepção. Na “síntese perceptiva”, encontramos um processo de conhecimento. A categoria “corpo-sujeito” procurou ser um contraponto à dicotomia “sujeito-objeto” inaugurada pela metafísica idealista de Descartes. O corpo torna-se, para Merleau-Ponty, uma “instituição mediadora” do conhecimento, que é possível quando encaramos sua relação constante com o mundo. Encontramos assim uma fonte do conhecimento e do autoconhecimento.

O corpo também explicita as incoerências entre importantes descobertas na área de saúde e da tecnologia e a convivência humana na proliferação das guerras e doenças. De certa forma, ao falarmos do método fenomenológico, que inclui a dimensão do corpo, nos aproximamos também do sentido dado à vida a partir das situações-limite e possibilidades de ampliar horizontes por meio da elaboração da finitude humana. É aqui que encontramos o tema do luto. Percebemos não só o sentido dado pelas pessoas que estão vivenciando situações-limite, mas também pelos cuidadores dessas pessoas. As relações humanas estabelecidas nesse cuidado também são palco dos estudos da fenomenologia. Por exemplo, o conforto oferecido às pessoas por ocasião de uma perda inclui uma percepção do mundo do outro, uma necessidade humana vital em momentos de enlutamento. Essa percepção vai além do olhar o corpo, percebe o corpo-existência. Portanto, envolve também os gestos, a fala, o toque que exprime respeito, dignidade e confiança no humano.

173Luiza Etsuko Tomita defendeu sua tese de doutorado com o tema Corpo e cotidiano: a experiência de mulheres de movimentos populares desafia a teologia feminista da libertação na América Latina . É um estudo valioso sobre as conceituações sobre corpo na tradição cristã, principalmente na dimensão de gênero. TOMITA, Luiza Etsuko. Corpo e cotidiano: a experiência de mulheres de movimentos populares desafia a teologia feminista da libertacão na América Latina. 296 p. Doutorado em POS-CIENCIAS DA RELIGIAO, São Bernardo do Campo, 2004.

Enfim, a morte não é desprovida de sentido, já que a contingência do vivido é uma perpétua ameaça para os significados eternos nos quais ele acredita exprimir-se por inteiro. Será preciso garantir que a experiência da eternidade não é inconsciência da morte, que ela não está aquém, mas além como aliás será preciso distinguir o amor à vida, ao apego à existência biológica. O sacrifício da vida será filosoficamente impossível, tratar-se-á apenas de “arriscar” sua vida, o que é uma maneira mais profunda de viver.174

Os estudos da percepção são outro destaque que podemos dar à contribuição de Merleau-Ponty para a pesquisa sobre o luto, pontuados anteriormente. A percepção é mais do que uma noção de mundo e de primeiro “instante” do conhecimento; é uma categoria dos sentidos, que envolve uma relação de interação com o ambiente. Isso não é desconhecido de nosso universo de conhecimento. Porém, em relação ao luto, esbarra num campo ainda pouco explorado nas ciências da religião que envolve a fenomenologia do luto, que pode ser categorizado, no luto de si mesmo, o luto do outro, por exemplo. Merleau-Ponty afirmou que “só sentimos que existimos depois de já ter entrado em contato com os outros”175. Correlacionando com o tema do luto, podemos arriscar afirmar ser possível, para alguns, que o sentimento de entrar em contato com o outro só ocorra quando se vivencia o luto de alguém que se foi. Ainda dentro dos estudos merleau-pontyanos sobre percepção, há uma correlação com os estudos teológicos do corpo, a partir da corporeidade176. Marcio Fabri dos Anjos, sacerdote católico que vem trabalhando há anos com bioética, nos chama atenção para esse vínculo:

Na corporeidade, a teologia recebe uma expressão exuberante. Na corporeidade, a teologia encontra-se com a emoção, com o afeto, com as necessidades básicas do cotidiano, com o prazer, e também com a dor, as opressões e contraposições da vida. As variações culturais nesses espaços afetam, assim, a teologia, a menos que esta as ignore. Por isso talvez se deva dizer que, de uma forma ou de outra, “olhar o corpo” seja um passo metodológico necessário para a teologia. E que, nos tempos de hoje, pelas marcas que vão aparecendo nos corpos, a teologia poderá deparar-se mais

174Ibidem, p. 344. 175Ibidem, p. 48.

176A conceituação apregoada por Maria Inês de Castro Millen e Maria Clara Lucchetti Bingemer é extremamente útil para a compreensão dessa relação entre percepção em Merleau-Ponty e o desafio apontado por Fabris. “A palavra corporeidade é mais abrangente, refere-se ao ‘eu espiritual-corpóreo’ que vive uma experiência única e irrepetível e indica a inteira subjetividade humana sob o aspecto de sua identidade pessoal. Corporeidade é, portanto, a expressão, o reflexo visível e a realização do ser humano uno e indiviso. É uma noção mais ampla de corpo e, na verdade, refere-se à totalidade da pessoa. Assim, é função de sua condição corpórea que o ser humano assume sua vida segundo as peculiaridades que lhe são próprias: a historicidade, a individualidade e a pertença a uma comunidade humana, sua imanência no mundo e sua vocação à autotranscendência, sua capacidade de revelar-se e de ocultar-se, sua propensão à relacionalidade e ao encontro.” MILLEN, Maria Inês de Castro; BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Corporeidade e violência: o templo profanado. Corporeidade e Teologia. Soter – Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (org.). São Paulo: Paulinas, 2005, p. 180.

realisticamente com as interrogações da subjetividade, dos avanços tecnológicos e das relações globais177.

Outra reflexão de Merleau-Ponty e que converge para o tema do luto é a reflexão sobre a morte de si como inspiração para a convivência com o outro.

[...] se não penso minha morte, vivo em uma atmosfera de morte em geral, há como que uma essência da morte que está sempre no horizonte de meus pensamentos. Enfim, como para mim o instante da minha morte é um porvir inacessível, estou certo de nunca viver a presença de outrem a si mesmo. E todavia cada um dos outros existe para mim a título de estilo ou de meio de coexistência irrecusável, e minha vida tem uma atmosfera social assim como tem um sabor mortal.178

Nossa caminhada neste capítulo procurou compreender o surgimento do movimento fenomenológico e sua relevância na busca do conhecimento. Para isso, escolhemos três dos principais teóricos da fenomenologia, com cujo pensamento esta pesquisa está diretamente envolvida. Elegemos Maurice Merleau-Ponty como aquele com quem nossa interação será mais ampla, por nos identificarmos com sua maneira de compreender o ser humano, com suas categorias de análise – como percepção, linguagem, temporalidade, historicidade, corpo – e por sua aproximação mais estreita com as ciências humanas, especialmente a psicologia, com quem também interagimos nesta pesquisa. O exame dos temas merleau-pontyanos trouxe à luz várias nuances que podem ser vinculadas ao tema do luto e que ampliam sua compreensão.

No próximo capítulo adentraremos a pesquisa de campo realizada com enlutados por morte. Descreveremos nossa trajetória de pesquisa, os sujeitos envolvidos e os resultados das entrevistas realizadas. A pesquisa de campo propôs-se e aceitou o desafio adicional de ir até o sujeito que vivenciou a experiência do luto a fim de buscar compreender o fenômeno a partir de quem o experimenta.

177ANJOS, Marcio Fabri dos . O corpo no espelho da dignidade e da vulnerabilidade. Corporeidade e

Teologia. SOTER – Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (org). São Paulo: Paulinas, 2005, p.91.