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CAPÍTULO 1 MORTE E LUTO NA EXISTÊNCIA HUMANA

1. A morte sob a óptica do cristianismo

1.2 O processo do luto: enfoques psicológicos

1.2.3 O luto e os vínculos afetivos

Quando falamos de luto, falamos também dos laços afetivos que construímos desde o

início da vida. Essa afirmação parte do trabalho de John Bowlby, psicólogo inglês. Suas pesquisas vincularam-se prioritariamente ao mundo da criança e ao apego a seus cuidadores. A Teoria do Apego, assim denominada por Bowlby, possibilita um conhecimento sobre como as pessoas vivenciam seus relacionamentos afetivos desde a infância. Psicanalista, ele dedicou os estudos ao luto infantil e sua relação com o desenvolvimento humano. Sua trilogia – Apego, Separação e Perda – evidencia esse lastro de sua pesquisa de forma ampla. Para Bowlby, há uma relação muito próxima entre a perda dos cuidados na infância e o desenvolvimento da personalidade.65 Afirma que há uma correlação da perda na infãncia com doenças psiquiátricas na fase adulta. Em linhas gerais, as fases explicitadas por Bowlby envolvem protesto, desespero e negação. Apesar de ter sistematizado essas etapas a partir de seus estudos com crianças, faz uma aproximação com todas as formas de luto. A discussão sobre essas etapas adentra no que ele denominou de luto patológico:

O exame dos elementos de demonstração sugere que uma das principais características do luto patológico é a incapacidade para expressar abertamente esses impulsos para reaver e recriminar a pessoa perdida, com toda a saudade do desertor e toda a raiva contra ele que esses impulsos implicam. Em vez de sua expressão aberta que, apesar de ser tempestuosa e estéril, leva a um resultado saudável, os impulsos de recuperação e

so frightening to many people. Especially those who put a high value on being in control of their own existence are offended by the thought that they, too are subject to the forces of death”. KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Death: the final stage of growth. New York, Touchstone, 1986, p. 5.[A tradução para o português foi feita por Daniele Alexandroni Prado.]

65Dentre as consequências na personalidade, destacam-se o caráter delinquente, estados de ansiedade e tendência à depressão.

recriminação, com toda a sua ambivalência de sentimentos, cindem-se e são reprimidos. Daí em diante, continuam como sistemas ativos na personalidade mas, incapazes de encontrar uma expressão direta e manifesta, passam a influenciar os sentimentos e o comportamento de um modo estranho e distorcido. Daí as numerosas formas de perturbação de caráter e doença neurótica.66

A teoria dos vínculos afetivos aproxima-se da busca de segurança e alegria, próprias do ser humano. O vínculo dialoga também com a capacidade de lidar com as frustrações e separações ocorridas desde a infância. Vínculos desfeitos na infância são os fundamentos das reações a lutos futuros. Bowlby67 organizou as fases do luto na vida adulta da seguinte forma:

1. Fase de torpor ou aturdimento, que usualmente dura algumas horas a uma semana e pode ser interrompida por acessos de consternação e (ou) raiva extremamente intensas.

2. Fase da saudade e busca da figura perdida, que dura alguns meses e, com frequência, vários anos.

3. Fase da desorganização e desespero.

4. Fase de maior ou menor grau de reorganização.

A primeira fase – de torpor – caracteriza-se por um choque físico e emocional diante da notícia da perda. Algumas pessoas têm inicialmente reações de calma, sem expressão dos sentimentos, para depois se encontrarem em outro extremo, com agitação e pranto. A fase da saudade é aquela na qual o enlutado busca a figura perdida e é capaz de confundir sons e, sinais, que interpreta como o retorno da pessoa que morreu. Essa etapa da vivência do luto também é demarcada pela exposição do choro e da raiva associados aos impulsos de busca da pessoa morta.

Nas fases da desorganização e desespero e da reorganização, a oscilação explicita a característica fundamental. É uma busca de novos parâmetros de vida para se reorganizar. Há uma espécie de redefinição do eu. A identidade busca uma remodelação e a pessoa descobre novos hábitos para o novo momento que está atravessando. Essa fase lembra que o luto promove o lidar com o que é desconhecido. Geralmente o desconhecido envolve medo e expectativa. A solidão torna-se um dos grandes “vilões” para a vivência do luto nesse momento. A reintegração social torna-se um alvo muito presente.

Essas etapas do processo do luto oferecem uma explanação geral sobre o fenômeno.

Outros estudos realizados por Bowlby envolveram correlações entre o luto e as perdas de filhos, de pais, bem como a relação entre o luto e certos tipos de morte como suicídio, morte

66BOWLBY, John. Formação e rompimento de laços afetivos. São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 78. 67BOWLBY, John. Perda, Tristeza e Depressão. São Paulo, Martins Fontes, 1985, p. 87

por doença repentina, morte violenta, morte por acidente. Fatores como idade, identidade, gênero, personalidade do enlutado, situação socioeconômica e crenças incluem-se nos estudos do autor sobre o luto.

Colin Murray Parkes68, psiquiatra inglês que trabalhou com Bowlby, deu continuidade a seu pensamento e pesquisa sobre o luto. Focou o tema na vida adulta e tem contribuído consideravelmente com os hospices69. Sua atenção está voltada com maior ênfase ao desenvolvimento psíquico e sua relação com o trauma, além de ter ampliado a relação da diversidade cultural com perdas humanas. Em sua pesquisa sobre o luto, Parkes defende a ideia de que há equívocos na compreensão do fenômeno. Sobre as fases do luto, afirma: “aqui se inclui o conceito de ‘fases do luto’, que tem sido amplamente mal-interpretado e tratado como se fosse uma sequência fixa pela qual toda pessoa enlutada precisa passar para se recuperar da perda.”70

O psiquiatra apresenta um horizonte mais amplo para as pesquisas sobre o luto. É importante ressaltar que ele não vê o luto como uma doença mental, mas como uma reação – com níveis diferentes – diante de uma perda. Ao interpretar o luto como um processo, Parkes insere na pesquisa relações entre o luto, o estigma social e a privação (ausência). A desconsideração do luto pela sociedade é uma constatação que tem impelido o pesquisador à busca de alternativas sociais e à valorização das instituições no oferecimento de suporte às pessoas enlutadas. Em suas pesquisas, Parkes estabelece correlações entre luto e índice de mortalidade de enlutados. Valoriza toda intervenção que abra novos caminhos de reintegração social ao enlutado, ao mesmo tempo em que critica algumas atitudes institucionais que desconhecem o processo do luto. As fases do luto definidas por ele são: do coração partido, do alarme, da procura, do alívio. A dor do luto perpassa essas fases e pode tornar-se pública atingindo instâncias não somente físicas e emocionais, mas também existenciais. Esse cenário do enlutamento pode ser visualizado por meio dos seguintes comportamentos71:

1. Alarme, tensão e estado de vigília; 2. Movimentação inquieta;

3. Preocupação com pensamentos sobre a pessoa perdida;

4. Desenvolvimento de um conjunto perceptivo para aquela pessoa;

5. Perda de interesse na aparência pessoal e em outros assuntos que normalmente ocupariam sua atenção;

68Parkes tem um de seus livros – Luto: estudos sobre a perda na vida adulta –, traduzido para o português. 69É uma casa que acolhe pessoas cujo diagnóstico de morte iminente é irreversível. Nesse lugar recebem cuidados paliativos e todo apoio psíquico e de convivência para um bem-estar no processo do morrer.

70PARKES, Colin Murray. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998, p. 15. 71Ibidem, p. 69.

6. Direção da atenção para aquelas partes do ambiente nas quais a pessoa perdida poderia estar; e

7. Chamar pela pessoa perdida.

Percebe-se que a pessoa trava uma luta interna para lidar com a ausência. A despedida e o recomeçar ou retomar a vida no seu curso são uma tarefa que para algumas pessoas tem um custo altíssimo. A continuidade da vida pessoal, familiar, profissional e social envolve o estímulo e, ao mesmo tempo, a desmotivação para viver. Como muitos estudiosos do luto, Parkes reafirma a importância de espaços de expressão do luto que sejam vistos com naturalidade pela sociedade.

Crenças e rituais que oferecem uma explicação para a morte e apoio social para a expressão do pesar deveriam reduzir a confusão sentida pelos recém- enlutados e, até mesmo, ter valor psicológico em ajudá-los a expressar sua dor. Como já foi observado, Gorer lamentou o declínio na prática de rituais de luto, hoje, e credita a isso a responsabilidade por muitos problemas de saúde mental de pessoas enlutadas. Em meu próprio trabalho, obtenho a ideia de que aqueles que não conseguem expressar sofrimento nas duas primeiras semanas após a perda tenderão a apresentar mais perturbações do que os que fizeram o contrário.72

Parkes vem somando esforços para colocar o luto no patamar das prioridades no mundo da saúde. Além disso, tem estimulado trocas entre culturas diferentes sobre o enfretamento do luto visando ao aprimoramento de intervenções no processo do luto.

Maria Helena Pereira Franco, pesquisadora brasileira, tem dado continuidade aos estudos de Parkes no Brasil. Um dos temas trabalhados por ela destaca a morte na família. O luto é visualizado como uma crise que atinge todo o grupo familiar direta e indiretamente.

O luto é definido como uma crise porque ocorre um desequilíbrio entre a quantidade de ajustamento necessário de uma única vez e os recursos imediatamente disponíveis para lidar com eles. Ou seja: o impacto da morte provoca uma demanda sistêmica sobre a família, de ordem emocional e relacional, além daquilo que a família pode dar conta, sem que seja preciso recorrer à ajuda externa. A crise vem, portanto, da necessidade de continuar desempenhando os diversos papéis, com a sobrecarga do luto dos demais elementos da família, agravada pelas reações próprias do luto individual. A reorganização só poderá se dar, portanto, após a superação dessa crise que sozinha obstaculiza qualquer mudança. Para encarar a morte na família é necessário um rearranjo do sistema familiar e, como consequência, a construção de uma nova identidade, um novo nível de equilíbrio.73

72Idem, p.202.

73BROMBERG, et al. Vida e Morte: Laços da Existência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996, 2a edição, p. 104.

Maria Júlia Kovács74, também pesquisadora brasileira, tem feito um levantamento significativo sobre a morte em vários matizes. Ela nos lembra de que a morte está presente no processo do desenvolvimento humano.

A morte faz parte desenvolvimento humano desde a mais tenra idade. Nos primeiros meses de vida a criança vive a ausência da mãe, sentindo que esta não é onipresente. Estas primeiras ausências são vividas como mortes, a criança se percebe só e desamparada. Efetivamente, não é capaz de sobreviver sem a mãe. São, no entanto, breves momentos ou, às vezes, períodos mais longos, porém logo alguém aparece. Mas esta primeira impressão fica carimbada e marca uma das representações mais fortes de todos os tempos que é a morte como ausência, perda, separação, e a consequente vivência de aniquilação e desamparo.75

Nessa dimensão psicológica do luto, há uma percepção dele vinculada à existência humana. Há uma “historização” da concepção de morte no ser humano que paradoxalmente é uma pedagogia da vida. Ou seja, a morte nos ensina a viver, a perder e, talvez indiretamente, a lidar com a frustração e a desesperança; ela evoca também os sentidos que damos ao que nos propomos ser e fazer no decorrer de nossa história. Não é à toa que Kovács defende uma educação para a morte que, diga-se de passagem, é uma educação para a vida. Como Franco, Kovács tem aberto novas portas para o estudo do luto no Brasil.

A morte no século XXI é vista como tabu, interdita, vergonhosa; por outro lado, o grande desenvolvimento da medicina permitiu a cura de várias doenças e um prolongamento da vida. Entretanto, tal desenvolvimento pode levar a um impasse quando se trata de buscar a cura e salvar uma vida, com todo o empenho possível, num contexto de missão impossível: manter uma vida na qual a morte já está presente. Essa atitude de tentar preservar a vida a todo custo é responsável por um dos maiores temores do ser humano na atualidade, que é o de ter a sua vida mantida à custa de muito sofrimento solitário na UTI ou no quarto de hospital, tendo por companhia apenas tubos e máquinas.76

Kovács oferece também alguns caminhos para lidar com o tema da morte e do luto, por meio da educação para a morte, a qual envolve desde leigos até profissionais de saúde.

74Maria Júlia Kovács é um dos nomes mais respeitados nos estudos psicológicos sobre a morte no Brasil. Além da contribuição no amplo levantamento bibliográfico estampado em livros e artigos, ela tem aprofundado suas pesquisas em temas como Cuidados Paliativos e Bioética.

75KOVÁCS, Maria Júlia. Morte e Desenvolvimento Humano. 4ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002, p. 3.

76KOVÁCS, Maria Júlia. Bioética nas questões de vida e da Morte. São Paulo. Psicologia/USP. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. USP-IP, 2003. Vol. 1, n.1, p. 115-167.

Negar a morte pode dar a ideia de força e controle, entretanto, uma perda seguida de precária ou “má” elaboração do luto – não se permitindo a expressão da tristeza e da dor – tem trazido graves consequências como a maior possibilidade de adoecimento. É por isso que a depressão é, atualmente, a doença que mais ocupa os profissionais da área de saúde mental. O luto mal elaborado está se tornando um problema de saúde pública, dado o grande número de pessoas que adoecem em função de uma excessiva carga de sofrimento sem possibilidade de elaboração. Esse mal também está afetando os profissionais de saúde que cuidam do sofrimento alheio e que, muitas vezes, não têm espaço para cuidar de sua própria dor, levando a seu adoecimento [...]77

Como evidenciado por Kovács, é importante para a saúde pública que a elaboração do luto inclua um diálogo com a teologia e com a espiritualidade das pessoas. A pesquisadora destaca a tensão existente entre a consciência da finitude e a fé em Deus.

É preciso que se perceba como o paciente entende, interpreta e vive a sua experiência de estar doente, como é tocado pela finitude e como relaciona isso com sua fé em Deus ou em outra figura de crença. Neste contexto aparecem muitas visões em relação à doença, tais como: castigo ou punição, teste, destino, fatalidade, expressão de fim, possibilidade de transformação da vida, entre outras expressões. Também podem surgir desapontamentos, sentimentos de abandono ou revolta em relação a Deus para aqueles que são religiosos. Outros podem aprofundar a sua fé. É necessária a tolerância, paciência, sensibilidade do cuidador espiritual. É preciso poder acolher sentimentos controversos, sem ter a necessidade de modificá-los imediatamente e, principalmente, não repreender ou censurar. Neste lugar o atendente espiritual não deve oferecer sermões ou penitências.78

O desafio em relação às vocações que lidam com o cuidado das pessoas é um tópico promissor para a compreensão do fenômeno do luto. São os cuidadores que vivenciam, juntamente com as pessoas que passam por perdas, os significados que são dados a um dos momentos mais ambíguos da vida: o luto.