• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – FACETAS DA FENOMENOLOGIA EM TRÊS MOVIMENTOS

2.3.4 Corpo e Mundo Vivido

Uma das dimensões mais presentes no pensamento de Merleau-Ponty é a da mediação do corpo para a consciência do mundo. A consciência do corpo está vinculada com a compreensão de mundo. Essa consciência, esse corpo que compreende o mundo é próprio do

status da natureza do ser humano.155

[...] pois se é verdade que tenho consciência de meu corpo através do mundo, que ele é, no centro do mundo, o termo não-percebido para o qual todos os objetos voltam a sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a

153MERLEAU-PONTY, Maurice. A Natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 122. 154Ibidem, p. 319.

155Podemos encontrar no livro A Natureza, obra de Maurice Merleau-Ponty, um estudo apurado das várias naturezas que encontramos no mundo e evidentemente a natureza do ser humano.

volta em torno deles e neste sentido tenho consciência do mundo por meio do meu corpo.156

Para Merleau-Ponty, nosso corpo vive uma ambigüidade; por exemplo, ele é ao mesmo tempo liberdade e servidão. No corpo, as percepções do mundo vivido podem apresentar recortes que são desdobramentos do meu olhar para o que está diante de mim. O corpo é o meio de comunicação com o mundo e lugar do afeto e do desafeto. O afeto pode ser compreendido como a díade corpo-sujeito. Dessa maneira, podemos aventar que o corpo é uma expressão de sua própria ambiguidade; podemos ver e nos lamentar diante do que percebemos. A ambiguidade é um conceito central em Merleau-Ponty; ela traz à tona a capacidade que nosso pensamento tem de distinguir diferentes relações entre as coisas. Ou seja, trata-se de uma tomada de consciência de que a vida humana se manifesta e se mescla entre lados aparentemente contrários (por exemplo, corpo e espírito). A ambiguidade se manifesta com nossa interação com o mundo e nas vivências desencadeadas nesse mesmo mundo. São as interrogações que emergem da vivência no mundo que permitem a presença da ambiguidade como parte da existência humana. Essa existência inclui o que Merleau-Ponty denominou subjetividade encarnada que é a relação que o ser humano estabelece dentro e fora de si, consigo mesmo e com o outro.

Na fenomenologia da percepção, Merleau Ponty trata de mostrar a partir da base perceptiva a presença do ser humano transcendental (não apenas a consciência), trata também de superar todo resquício de dualismo cartesiano, e sobretudo a visão de que a percepção é uma reconstituição humana do mundo e que requer interpretação ante a ambiguidade do corpo, da significação, da existência.

Outro cenário que nos é apresentado da relação entre o corpo e o mundo vivido é a experiência de comunicação entre meu próprio corpo e outros corpos, o que nos leva a tocar no tema da espacialidade; a do meu corpo próprio157 e a do espaço exterior a ele. Há uma

relação muito próxima entre a espacialidade e o movimento do corpo, estando a percepção intimamente ligada ao movimento. Além disso, a consciência do ser é dada no movimento do corpo.

A consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo. Um movimento é apreendido quando o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu “mundo”, e mover seu corpo é visar as coisas através dele, é deixá-lo

156Ibidem, p. 122.

157“Corpo próprio” é uma expressão que, em Merleau-Ponty significa a capacidade que o corpo tem de interpretar a si mesmo.

corresponder à sua solicitação, que o ser exerce sobre ele sem nenhuma representação.158

Merleau-Ponty afirmava que o corpo habita espaço e tempo com uma interligação presente na ligação com o mundo. O corpo não é somente um espaço expressivo, mas uma presença entre a essência e a existência que é vivenciada na percepção. Uma das metáforas mais presentes na obra de Merleau-Ponty sobre o corpo é nomeá-lo uma obra de arte.

Há uma ligação intensa entre o corpo e a comunicação, como já mencionado anteriormente. Tocamos em outro tema que levanta questões decisivas do pensamento de Merleau-Ponty: a linguagem. Ao falar dela estamo-nos referindo a pontos fulcrais de sentido que se espalham em várias dimensões e novamente nos remetem ao corpo.

A linguagem é pois, este aparato singular que, como nosso corpo, nos dá mais do que pusemos nela, seja porque apreendemos nossos próprios pensamentos quando falamos, seja porque os apreendemos quando escutamos os outros. Quando escuto ou leio, as palavras não vêm sempre tocar significações pré-existentes em mim. Têm o poder de lançar-me fora de meus pensamentos, criam no meu universo privado cesuras por onde outros pensamentos podem irromper.159

Linguagem e corpo se encontram como parceiros inseparáveis na relação com o mundo: encontram-se na memória, no tempo, no espaço, nos gestos, na fala, no silêncio, nas artes, na palavra escrita. Tudo expressa um mundo vivido, uma história. Na comunicação, o corpo transcende o visível; na experiência perceptiva compreende e dá sentido à linguagem e assim ao mundo. Não podemos, portanto, desconsiderar o valor intersubjetivo do vínculo entre corpo e linguagem.

Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer, retomar por minha conta o drama que o transpassa e confundir-me com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total.160

O corpo é a linguagem da existência. Por estar vinculado à existência, o corpo explicita nossa biografia desde o nascimento até a morte, como já o mencionamos, em sua

158MERLEAU-PONTY, Maurice. Op. cit., p. 193.

159MERLEAU PONTY, M, Signes, (In) Coleção Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita Ed.vol.61. 1ª Ed. fev.1975, fascículo n.62, p. 822.

relação com a história. Nesse sentido, falamos da relação do corpo com a sensação, mas também de sua capacidade de ir além dos sentidos. A sensação é uma dimensão do corpo.

Portanto, nós não reduzimos a significação da palavra e nem mesmo a significação do percebido a uma soma de “sensações corporais”, mas dizemos que o corpo, enquanto tem “condutas”, é este estranho objeto que utiliza suas próprias partes como símbolo geral do mundo, e através do qual, por conseguinte, podemos “frequentar” este mundo, “compreendê-lo e encontrar uma significação para ele.161

Merleau-Ponty considera a sensação como percepção por meio dos órgãos dos sentidos como a mais simples das percepções. É importante destacar que a relação do corpo com o espaço e o tempo é vital para compreendermos sua relação com o mundo. A percepção conecta meu corpo ao espaço e ao tempo, portanto o corpo é no espaço e no tempo.

A percepção se dá no corpo não por meio de uma sensação, mas pela atribuição do significado ao fenômeno que está diante de mim. Encontramos então limites e possibilidades da percepção do mundo. É uma abertura para novos mundos e o fechamento para o meu mundo e vice-versa.

O que é preciso compreender é que a mesma razão me torna presente aqui e agora e presente alhures e sempre, ausente daqui e de agora e ausente de qualquer lugar e de qualquer tempo. Essa ambiguidade não é uma imperfeição da consciência ou da existência, é sua definição. O tempo no sentido amplo, quer dizer, a ordem das coexistências assim como a ordem das sucessões, é um ambiente ao qual só se pode ter acesso e que só se pode compreender ocupando nele uma situação e apreendendo-o inteiro através dos horizontes dessa situação.162

A ambiguidade também se relaciona com o mundo inacabado, ou seja, com o mundo que está sempre se modificando a partir dos significados que atribuímos às nossas vivências. A percepção do mundo tem a capacidade criadora, pois ao interagir com o fenômeno que está diante de si é capaz de atribuir-lhe novos significados. Quando tratamos da percepção do outro, a ambiguidade está presente: posso vê-lo como objeto e como sujeito ou como sujeito- objeto, objeto-sujeito; a recíproca é verdadeira. A percepção do outro é uma faceta relevante do pensamento de Merleau-Ponty para o processo de conhecimento e de compreensão da existência. O que o filósofo denominou intermundo manifesta-se nas percepções minhas e do outro e vice-versa. É o que chamou também de intersubjetividade. Quando o olhar cruza com

161Ibidem, p. 317. 162Ibidem, p. 445.

o outro, se inicia o processo de percepção sobre cujos desdobramentos não temos o controle. Novamente tocamos no tema da linguagem, que aproxima ou rechaça as pessoas, mas é a potencialidade do diálogo que está presente nos mundos que se encontram quando nos relacionamos com outrem.

Sinto meu corpo como potência de certas condutas e de um certo mundo, sou dado a mim mesmo como um certo poder sobre o mundo; ora, é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante, como as partes de meu corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada momento o rastro que habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo.163

É importante lembrar que o corpo também fala de uma intencionalidade em relação ao mundo. Neste ponto, para que possamos compreender melhor o pensamento de Merleau- Ponty, é necessário que voltemos a Husserl. Vimos anteriormente que Husserl advoga a intencionalidade da consciência, cuja peculiaridade é justamente a capacidade de outorgar significado às coisas exteriores, de dar sentido às coisas: a consciência é sempre a consciência de alguma coisa.

Porém, é na 5ª Investigação que [Husserl] mais diretamente desenvolve a noção de Intencionalidade. Nesse ponto, ele parte de uma tripla consideração da consciência: a) A consciência como consistência fenomenológica real do eu empírico, como o entrecruzamento das vivências psíquicas na unidade de seu trajeto. b) A consciência como percepção interna das vivências psíquicas próprias. c) A consciência como nome coletivo para todo tipo de atos psíquicos ou vivências intencionais. Se tivéssemos que estabelecer uma ordem hierárquica de prioridade entre esses três conceitos de consciência, o segundo passaria a ocupar o primeiro lugar, pois, como aponta Husserl, o conceito de consciência como percepção interna das vivências psíquicas próprias é o “primitivo, o anterior em si”. Isso implica uma redução ao fenomenológico do eu empírico que tem como resultado uma “unidade da corrente de vivências”, unidade fechada em si realmente e que se desdobra no tempo. Porém, é a terceira noção a mais importante neste ponto e, para esclarecê-la, Husserl precisa abandonar os limites colocados por Brentano ao ato psíquico, para dar lugar à vivência intencional.164

163Ibidem, p. 474. 164

“Pero es en la 5ª Investigación donde más directamente desarrolla la noción de Intencionalidad. Aquí se parte de una triple consideración de la consciencia: a) La consciencia como consistencia fenomenológica real del yo empírico, como el entrecruzamento de las vivencias psíquicas en la unidad de su curso. b) La consciencia como percepción interna de las vivencias psíquicas propias. c) La consciencia como nombre colectivo para toda clase de actos psíquicos o vivencias intencionales. De estos tres conceptos de consciencia, si tuviéramos que establecer un orden jerárquico de prioridad, el segundo pasaría a ocupar el primer puesto, ya que, como senãla Husserl, el concepto de consciencia como percepción interna de las vivencias psíquicas propias, es el ‘primitivo, ela anterior

Merleau-Ponty apreende o conceito de intencionalidade husserliana, acrescentando-

lhe a noção de interação do corpo com o mundo. Ao interpretar Husserl, o filósofo destacou, dentre as noções de intencionalidade, o que denominou intencionalidade mais profunda, que é a existência. A percepção reveste de historicidade o meu pensamento, retomando acontecimentos e ampliando meu mundo reflexivo.

[...] eu compreendo o mundo porque para mim existe o próximo e o distante, primeiros planos e horizontes, e porque assim o mundo se expõe e adquire um sentido diante de mim, quer dizer, finalmente porque eu estou situado nele e porque ele me compreende. Nós não dizemos que a noção do mundo é inseparável da noção de sujeito, que o sujeito pensa inseparável da ideia de corpo e da ideia do mundo, pois, se só tratasse de uma relação pensada, por isso mesmo ela deixaria subsistir a independência absoluta do sujeito enquanto pensador e o sujeito não estaria situado.165

Outra dimensão indispensável do mundo vivido pelo meu corpo é a relação com a

temporalidade. O tempo nasce quando me relaciono com o mundo e assim destaco presente, passado e futuro que estão fundidos em minha biografia. O corpo vivido desdobra o tempo, pois ele está continuamente presente e não pode ser convertido em um absoluto. O tempo é o filme da “minha” história. Damos sentido ao tempo, na relação profunda com os acontecimentos, experiências, percepções, intencionalidades, corpo vivido. Portanto, o tempo está vinculado à minha subjetividade e à minha intersubjetividade, e conectado com minha relação com o mundo, comigo mesmo, com as coisas, com os outros. No encontro com o tempo abre-se a possibilidade de criar, recriar, retomar e refletir. Assim, o tempo está vinculado à espontaneidade.

Assim como meu presente vivo dá acesso a um passado que todavia eu não vivo mais e a um porvir que eu não vivo ainda, que talvez eu não viverei jamais, ele também pode dar acesso a temporalidades que eu não vivo e pode ter um horizonte social, de forma que meu mundo se acha ampliado na proporção da história coletiva que minha existência privada retoma e assume.166

en si’. Lo cual, comporta una reducción a lo fenomenológico del yo empírico que tiene como resultado una ‘unidad de la corriente de vivencias’, unidad cerrada en si realmente y que se despliega en el tiempo. Pero es la tercera noción la más importante en este punto y, para clarificarla, Husserl necesita abandonar los límites puestos por Brentano al acto psíquico, para dar lugar a la vivencia intencional.” MUÑOZ, J. Adolfo Arias. Op. cit., p. 43. 165Ibidem, p. 547.

Damos um sentido ao tempo que desvela um cenário existencial. O horizonte da minha percepção é ampliado pela historicidade que socializa meu olhar nos olhares dos outros.