• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 MORTE E LUTO NA EXISTÊNCIA HUMANA

1. A morte sob a óptica do cristianismo

1.2 O processo do luto: enfoques psicológicos

1.2.2 Luto: uma crise de despedida

Os estudos de Elizabeth Kübler-Ross nos oferecem um convite: conhecer os meandros do processo de morrer. Kübler-Ross nasceu na Suíça em 1926. Formada em medicina, mudou-se para os Estados Unidos acompanhando o marido. Desde a infância interessou-se pela arte do cuidado em meio às perdas. Com ampla experiência em hospitais, começou, em 1960, sua pesquisa sobre a morte e o morrer. Atendia aos pedidos de quatro estudantes do Seminário Teológico de Chicago, que solicitaram sua ajuda para compreender as crises da vida humana, dentre as quais a maior seria a morte.

55 FREUD, Sigmund. Totem e Tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda. 1974, Vol. XIII p.

A partir desses seminários e das pesquisas sobre o processo do morrer, Kübler-Ross sistematizou esse momento por meio dos estágios do luto, tanto para quem está na fase terminal da vida como para aqueles que estão sofrendo a perda de alguém para a morte. São eles:

Primeiro estágio: negação e isolamento

O primeiro estágio é a experiência da recusa daquilo que está acontecendo consigo mesmo. A negação pode seguir-se ao choque inicial. Evidentemente é um mecanismo de defesa da pessoa diante do limite da vida. “Em suma, a primeira reação do paciente pode ser um estado temporário de choque do qual se recupera gradualmente. Quando termina a sensação inicial de torpor e ele se recompõe, é comum no homem esta reação: ‘Não, não pode ser comigo’.”56 As atitudes diante da negação absorvem a pessoa e podem incluir momentos de quase completa fuga da realidade.

Segundo estágio: raiva

O estágio da raiva expressa a impotência e a falta de controle para lidar com a situação. “Quando não é mais possível manter firme o primeiro estágio de negação, ele é substituído por sentimentos de raiva, de revolta, de inveja e de ressentimento. Surge a pergunta: ‘Por que eu?’.”57

A exposição sob a forma de raiva pode ser dirigida contra a equipe de saúde, a família, o clérigo, contra Deus, contra si mesmo e até mesmo contra a pessoa que morreu; por isso, nesse estágio é essencial a compreensão dessa expressão de raiva que vem do paciente: “Temos de aprender a ouvir os nossos pacientes e até, às vezes, a suportar alguma raiva irracional, sabendo que o alívio proveniente do fato de tê-la externado contribuirá para melhor aceitar as horas finais.”58 A raiva é uma etapa do contato íntimo com a dor da perda.

Terceiro estágio: barganha

O terceiro estágio é uma espécie de acordo do paciente com pessoas que significam segurança ou proteção. Geralmente as barganhas são feitas com Deus ou com quem representa uma âncora existencial. Elas estão ligadas a um sentimento de culpa. A culpa é a companhia da barganha. É uma dívida afetiva com alguém ou um comportamento realizado

56KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes: 2000, p. 47. 57Ibidem, p. 55.

pelo paciente no passado e “não aceitável” socialmente e que, no seu inconsciente, pode ter desencadeado a enfermidade. Segundo Kübler-Ross, a barganha, na realidade, é uma tentativa de adiamento; inclui um prêmio oferecido “por bom comportamento”, estabelece também uma “meta” autoimposta e uma promessa implícita de que o paciente não pedirá outro adiamento, caso o primeiro seja concedido.

No estágio da barganha, lembramos nossa capacidade de lidar com a perda por meio da crença de que se pode restaurar a ordem do caos existencial que foi instalado. Na barganha temos a oportunidade de olhar para o futuro!

Quarto estágio: depressão

Essa fase é marcada por grande sensação de perda. A percepção da perda de si mesmo é mais presente do que em estágios anteriores. Kübler-Ross apresenta dois tipos de depressão: “Se eu tentasse diferenciar estes dois tipos de depressões, classificaria a primeira como uma depressão reativa e a segunda como uma depressão preparatória.”59 A família precisa de acompanhamento no sentido de orientá-la a deixar o paciente expressar os sentimentos de perda.

Quinto estágio: aceitação

O estágio da aceitação advém quando cessam as possibilidades de tratamento e a morte se torna mais próxima. Kübler-Ross afirma que “é como se a dor tivesse esvaecido, a luta tivesse cessado e fosse chegado o momento do repouso derradeiro antes da longa viagem.”60 É também o período em que a família geralmente carece de ajuda, compreensão e apoio, mais do que o próprio paciente. Esse estágio não significa que está tudo bem e resolvido na vida do enlutado, porém há um reconhecimento de que a realidade da perda é irreversível. Geralmente a pessoa enlutada começa a se mover, a rever e a se abrir a novos relacionamentos (não necessariamente amorosos, mesmo que seja o caso de perda do cônjuge).

É relevante destacar que Klüber-Ross fez distinções dos estágios do luto, dependendo da situação em que o doente se encontra. Por exemplo, se esse está em estágio terminal de

59Ibidem, p. 92. 60Ibidem, p. 118.

vida, a negação (primeiro estágio) pode ser vivenciada de forma muito diferente, dependendo dos laços afetivos que unem o moribundo ao enlutado. 61

Kübler-Ross deixou-nos como legado a compreensão de que o processo de morrer vai além de estágios, visto que se relaciona também à maneira como podemos ou não ser acompanhados no processo de despedida da vida.

No entanto, se a pessoa tem outro ser humano que se importa com ela, pode atingir um estágio de aceitação. Mas esse processo não é apenas típico daqueles que estão morrendo; na verdade, não tem nada a ver com a morte. Nós só o chamamos de “estágios da morte” por falta de uma expressão melhor. Se uma pessoa perde um namorado ou uma namorada, ou se perde o emprego, ou se for transferido da casa onde morou durante cinquenta anos para a casa de repouso, e mesmo que apenas perca um periquito ou suas lentes de contato, pode passar pelos mesmos estágios da morte.62

Conflitos morais podem transformar-se em vitrines de angústias mais profundas do ser humano, desencadeadas pelo medo de morrer sem “completar” o ciclo da vida. Como exemplo, Kübler-Ross apresentou casos de “resistência” a determinado tipo de tratamento motivados por valores religiosos. Destaca-se também o seu intenso acompanhamento a crianças que se defrontam com a morte. Por meio dos desenhos das crianças, Kübler-Ross estabeleceu com elas um diálogo a respeito do processo que estavam atravessando. Algumas contribuições podem ser destacadas de seu trabalho:

• Compreensão do modo como as crianças enfrentam a morte; • Orientações para o diálogo com pacientes terminais;

• Observação dos pacientes gravemente enfermos (reações, necessidades, comportamentos dos cuidadores);

• Convite a um paciente para participar de entrevista, gravada com a autorização do médico e, principalmente, do próprio paciente, esclarecendo a finalidade e o objetivo dela;

• Discussão sobre a entrevista com os participantes do seminário;

• Sigilo dos nomes e da identidade dos pacientes na elaboração dos trabalhos no final do seminário;

• Presença do conforto verbal e não verbal, por palavras e gestos;

61O livro On Grief and Grieving, de Elisabeth Kübler-Ross, apresenta concepções mais amplas sobre os estágios do luto relacionados a situações diferenciadas de perdas. KÜBLER-ROSS, Elisabeth; KESSLER, David. On Grief and Grieving: finding the meaning of grief through the five stages of loss. New York: Scribner, 2005. 235p.

62KUBLER-ROSS, Elisabeth. O Túnel e a Luz: reflexões essenciais sobre a vida e a morte. Campinas: Verus,

• Trabalho de equipe interdisciplinar;

• Orientação sobre o diálogo entre os membros da família a respeito do processo de morrer; • Estímulo às pessoas para falar sobre o processo de morrer;

• Presença de familiares, religiosos e amigos com a pessoa que está enfrentando o processo de morrer;

• Comunicação no processo de morrer (o uso da linguagem simbólica, como por exemplo, desenhos).

Para lidar com tantas situações adversas, Kübler-Ross enfatizou a necessidade da expressão de emoções tais como raiva, tristeza, medo, visto que sua experiência indicava que a não externalização da raiva causava um sofrimento ainda maior às pessoas. É importante destacar também que acompanhar as pessoas no processo de morrer levou Kübler-Ross a refletir sobre as crises existenciais, os conflitos com a medicina e a possibilidade da criação de equipes multidisciplinares para o cuidado com pacientes em processo de morrer. Como ressaltou, “havia muito o que aprender sobre a vida escutando os pacientes terminais.”63

Kübler-Ross contribuiu de forma significativa para a emergência de uma nova maneira de encarar a morte a partir do universo da medicina. É importante perceber essa dimensão porque, como cientista, sua forma de estudar o fenômeno da morte produziu muitos desdobramentos em outras áreas do cuidado humano, como a psicologia e a teologia.

Morrer é parte integral da vida, tão natural e previsível quanto nascer. Mas enquanto o nascimento é motivo de celebrações, a morte tornou-se um assunto aterrorizante, do qual não se pode falar, evitado de toda forma possível em nossa sociedade moderna. Talvez porque a morte nos faça lembrar que podemos atrasá-la, mas não escapar dela. Nós, tanto quanto os seres irracionais, estamos destinados a morrer no final de nossas vidas. E a morte nos afeta indiscriminadamente – não se preocupa com status ou com a posição ocupada por aqueles que são escolhidos; todos irão morrer, sejam ricos ou pobres, famosos ou comuns. Até mesmo as boas ações não irão salvar quem as faz da sentença de morte; os bons morrem tanto quanto os maus. Talvez seja essa qualidade de ser inevitável e imprevisível que torne a morte tão temida para muitas pessoas. Especialmente aqueles que agregam um valor alto ao fato de estarem no comando de suas vidas devem se sentir mais ofendidos em pensar que também estão sujeitos às forças da morte.64

63 KÜBLER-ROSS, Elisabeth. A Roda da Vida: Memória do Viver e do Morrer. São Paulo: Sextante, 1998, p. 145.

64“Dying is an integral part of life, as natural and predictable as being Born. But whereas birth is cause for celebration, death has become a dreaded and unspeakable issue to be avoided by every means possible in our modern society. Perhaps it is that death reminds us of our many be able to delay it, but we cannot escape it. We, no less than other, nonrational animals, are destined to die at the end of our lives. And death strikes indiscriminately – it cares no at all for the status or position of the ones it chooses; everyone must die, whether rich or poor, famous or unknown. Even good deeds will not excuse their doers from sentence of death; the good die as often as the bad. It is perhaps this inevitable and unpredictable quality that makes death

Kübler-Ross deixou-nos um legado importante para a reflexão sobre a existência humana. A morte horizontaliza nossa visão do ser humano. A perspectiva socioeconômica não é mais a definição única de quem é o ser humano, mas sim, como procurou desfrutar da vida. As últimas pesquisas de Kübler-Ross permearam as experiências da quase-morte e da vida após a morte e trouxeram grande inquietação no mundo científico, que recebeu com imenso ceticismo suas afirmações. A estudiosa transmitia muita coragem e paixão pelo que fazia, além de apresentar desprendimento em prol do que mais acreditava, a vida. Por isso, sua dedicação à medicina e ao cuidado com as pessoas expressavam claramente que viveu intensamente.