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CAPÍTULO 1 MORTE E LUTO NA EXISTÊNCIA HUMANA

1. A morte sob a óptica do cristianismo

1.1 Luto: enfoques teológicos

1.1.3 Luto e sofrimento

Dorothee Soelle nasceu na Alemanha no ano de 1929. Com um currículo vasto de conhecimento, dedicou-se a filologia clássica, filosofia, teologia e germanística. Seu campo de atuação foi reconhecido de forma significativa nas áreas teológica e literária. Era uma pessoa engajada nas questões sociais e políticas. O clássico livro que é o elo de seu pensamento com esta tese é Sofrimento. Soelle convida-nos a nos embrenhar no diálogo sobre o sofrimento na esfera teológica imbuídos de uma atitude de solidariedade.Questionamentos como “o que gera o sofrimento?” não são inquietações que buscam um bode expiatório na sociedade. Soelle critica o sofrimento dos inocentes. O sofrimento pode ser encarado como um processo de aprendizado na história de uma pessoa e também como consequência de injustiças na de outra pessoa. O que Soelle questiona é a “aceitação” passiva do sofrimento. Dessa maneira, inclui em sua teologia do sofrimento o tema da justiça.40

Para muitos teólogos, o problema do sofrimento leva diretamente e de forma mais natural à questão da Teodicéia. Como um Deus bom poderia permitir tal dor? Soelle, em consonância com a política e os teólogos da libertação com os quais se identifica, direciona sua atenção teológica a questões a respeito da condição humana e da justiça. O que acontece com as pessoas em situações que são opressivas e que ameaçam o bem da existência, senão a própria vida? Soelle tem certamente tentado se afastar de uma preocupação excessiva em justificar o poder e a bondade de Deus com aqueles que são diretamente afetados pelos efeitos do sofrimento. O seu interesse teológico parece estar menos em perguntar “Por quê?” do que “Como?”. Como os humanos lidam com o sofrimento, especialmente quando ele ameaça a vida humana e quando é causado por forças sociais e políticas?

O sofrimento não pode sobrepujar a vida. O sadismo, encontrado em algumas hermenêuticas cristãs, acolheu o sofrimento como instrumento divino para a educação na fé. Aí adentramos na concepção que temos de Deus, bem como na que consideramos que Deus

40For many theologians, the problem of suffering leads directly and most naturally to the question of theodicy.

How could a good God allow such pain? Soelle in concert with the political and liberation theologians with whom she identifies, directs her theological attention to questions about the human condition and about justice. What happens to people in situations that are oppressive and that threaten the goodness of existence, if not life itself? Soelle has rightly tried to move away from excessive concern with justifying God’s power and goodness and toward the effects ad dynamics of suffering on those who are directly affected by it. Her theological interest seems to be less ins asking ‘Why?’ than ‘How?’. How are humans to deal with suffering, especially when it threatens human life and meaning and when it is caused by social and political forces?”. KESHGEGIAN. Flora. A. Witnessing Trauma: Dorothee Soelle’s Theology of Sufferring in a World of Victmization. Harrisburg: Trinity Press International, 2003, p. 93. Esta obra é um compêndio da teologia de Dorothee Soelle: apresenta os últimos textos de Soelle, dentre os quais destacamos sua preocupação com a situação do mundo e sua ênfase na justiça como uma dimensão indispensável para um mundo diferente. As outras partes do livro evocam algumas facetas da teologia de Soelle como: novas formas de linguagem teológica, sofrimento e redenção, misticismo e teologia da libertação.

tem de nós. Deus seria um carrasco? Desse modo, Soelle tece uma crítica à conceituação do sofrimento masoquista. Outro braço da discussão trazida por Soelle é a apatia social diante do sofrimento. A negação do sofrimento é um sofrimento velado. Soelle afirmou: “Desejar para si mesmo uma vida sem dor significa desejar morrer.”41 Nesse sentido, encontramos um dos paradoxos do tema do sofrimento: a fuga da expressão dos sentimentos e a banalização da dor. Somos capazes, protegidos em nossa casa, de assistir ao sofrimento de milhares de pessoas, sem que isso nos comova.

Pessoas há em nossa sociedade que consideram a dor uma fatalidade (de

fatum). No entanto, o significado de toda a concepção cristã do sofrimento é precisamente a recusa de qualquer representação fatalista, pela qual o homem é reduzido a joguete de um destino inarredável. (...) Talvez em nenhuma época tenha sido tão comum como na sociedade altamente industrializada de hoje refugiar-se na apatia para escapar da dor. Nela se coisifica o sofrimento como fatalidade, dele só se logra fugir isoladamente. “Fatum” (fatalidade), destino, sorte, sina e variante conjugam-se.42

O culto à insensibilidade diante da dor está presente na apatia social descrita anteriormente. Assim, cria-se uma sociedade que “mata” a dor e fere a percepção da realidade. Procura-se não ver o que existe, na imaginação imatura que foge da realidade e que não cria condições de enfrentar a dor e o sofrimento. Soelle estabelece também o que denominou de fases do sofrimento: a fase do sofrimento mudo, a fase da queixa e a fase da mudança. São chamadas também de isolamento, expressão e solidariedade.43 Nessa sistematização, Soelle incluiu duas dimensões da imagem de Deus: o Deus que silencia e o Deus que fala. A linguagem do sofrimento transcende a verbalização, envolve gestos que expressam a dor e questiona os fundamentos do sentido da vida. Evidentemente o sofrimento pode ser encarado nas esferas do físico, do psíquico e do social.

Há também a dimensão da aceitação do sofrimento advogada pela teologia mística na Idade Média. Soelle interpreta essa atitude não apenas como a postura de amor incondicional a uma causa – no caso cristão, a Deus – mas também como uma postura masoquista. Para aprofundar o debate entre sofrimento e aceitação, Soelle utilizou a narrativa bíblica sobre Jó.

41SOELLE, Dorothee. Sofrimento. Tradução de Antônio Estevão Allgayer. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 47. 42Ibidem, p.53.

43PINNOCK, Sarah K. A Postmodern Response to Suffering after Auschwitz. Harrisburg: Trinity Press International, 2003, p. 132. Pinnock faz uma interpretação das fases do sofrimento aventadas por Soelle no contexto de um dos maiores ícones do sofrimento humano mundial: Auschwitz.

Caberia perguntar se o cristianismo postula efetivamente essa “aprendizagem a partir do sofrimento”. Não tem sido sua resposta invariavelmente direcionada à pura submissão, a exemplo do que é ainda hoje exigido pelos amigos de Jó? A submissão ao sofrimento pessoalmente experimentado tem por sequela a insensibilidade no contexto da apatia social face ao sofrimento alheio. O cristianismo atual configura em grande parte uma religião livre de sofrimento, num mundo concebido como isento das agruras da dor. Veio a ser a religião dos ricos e dos sábios das nações industrializadas, sendo que seu Deus é um ente brando e apático. O sofrimento nessa religião ficou reduzido à instância particular, sem interesse coletivo, porquanto os grandes sofrimentos, sobre os quais as referidas nações erigem o seu bem-estar, situam-se a grande distância de nossa percepção imediata. Ao mesmo tempo, tais sofrimentos, situados longe de nosso alcance visual, são facilmente enquadráveis em grandes referências que nada tenham a ver conosco, como a explosão populacional, a industrialização e o subdesenvolvimento.44

Soelle destaca o fato de que, nas lutas populares, o sofrimento advém de uma luta

contra o próprio sofrimento do povo e, portanto, está imbuído da busca de um bem-estar da comunidade. Faz uma correlação com os sofrimentos vivenciados por Cristo, que demonstra uma nova maneira de considerar as pessoas fracas e oprimidas em nossa sociedade. A prioridade do Reino de Deus é o fraco. Poderíamos resumir afirmando que o sofrimento é uma condição humana que pode ser encarada passivamente ou não, como espaço de aprendizado ou de paralisação no viver, com infinitas perguntas teológicas ou com o silêncio que pergunta sem som. A força advinda do sofrimento é fruto de gestos solidários que espalham sementes de esperança em meio à dor.

É importante salientar que a teologia de Soelle ultrapassou as fronteiras das discussões políticas e sociais sobre o sofrimento humano. Sua interlocução com a teologia latino- americana esteve presente em seus escritos, principalmente pela teologia da libertação na óptica feminista. Além disso, encontramos alguns espaços em sua teologia dedicados ao tema da morte. A obra O mistério da morte foi um dos seus últimos escritos, na qual refletiu sobre o próprio processo de morrer. A concepção de Soelle sobre a morte envolve os medos, o questionamento da morte como o último inimigo, as mulheres e a morte, a mística da morte, o amor e Deus, a casa e o cosmos.

Uma das concepções teológicas de Soelle sobre a morte é seu vínculo com os ritmos da vida. Lembra o Capítulo 3 do Livro de Eclesiastes. Porém, a interlocução de Soelle é com a teologia da criação e concepção de que Deus criou o mundo com um ritmo – dia e noite, verão e inverno, juventude e velhice.

Dentre as consequências mais importantes que um relacionamento pode acarretar, está a aceitação da finitude da vida e de seu ritmo natural No centro de uma relação diferente, não-antropocêntrica com a vida, deve haver uma reflexão multifacetada a respeito da morte, como fizeram as mulheres latino-americanas. A espiritualidade que é buscada nesse relacionamento é uma das mudanças fundamentais de que precisamos. Aceitar a finitude da vida e a transitoriedade do eu nos relaciona com todos os outros seres vivos como irmãos e irmãs. É assim que nós podemos aprender a ter uma razão para cantar: “Cada parte dessa terra é sagrada para o meu povo”. Até o cemitério.45

Soelle deixa evidente que a morte é uma dimensão natural da vida. Com a reflexão sobre os direitos em vida, inclui também todas as dimensões ligadas a ela. Soelle afirma que a morte é uma educadora do amor e da vida. Na reflexão sobre a morte, compreende-se de forma mais profunda a presença de Deus em nossa finitude.

Uma das reflexões teológicas mais provocantes de Soelle situa-se no diálogo entre vazio existencial e morte. É importante lembrar que seu contexto é europeu e ela teologiza a partir de seu cenário vivencial. Com um olhar crítico para as políticas desumanizadoras, Soelle expõe uma das marcas mais profundas do continente europeu como fruto de guerras e falta de sentido nas ações humanas.

Os seres humanos não vivem só de pão. Na verdade, somente do pão, nós morremos, uma onipresente e terrível morte: a morte pela mutilação, a morte pela sufocação, a morte de todos os relacionamentos. Ter apenas do pão nos garante o tipo de morte em que podemos continuar a vegetar por um tempo porque a máquina ainda está funcionando, a morte terrível pela falta de conexão: continuamos a respirar, continuamos a consumir, a eliminar, fazemos as coisas acontecerem, produzimos, até balbuciamos palavras, e, no entanto, não estamos vivos.46

Diante do vazio existencial que perseguiu muitas pessoas no contexto europeu da época e, principalmente, diante das atrocidades cometidas por humanos contra humanos, a autora questiona sobre o que fazer diante da realidade da morte. Soelle colocou em pauta o

45 “Among the most important forms that relationship takes is to accept the finitude of life and to consent to its natural rhythm. At the heart of a different, nonanthropocentric relation to life must be multifaceted reflection on death such as that contributed by Latin American women. The spirituality that is sought in this relationship is one of the fundamental changes we need. Accepting the finitude of life and the transitoriness of the I relate us to all other living and users into brothers and sisters. That is how we can learn to have of a reason to sing, ’Every part of this earth is holy for my people’. Even the cemetery.” SOELLE, Dorothee. The

Mystery of Death. Minneapolis: Fortress Press, 2007, p. 50.

46 “Human beings do not live by bread alone. In fact, we die from bread alone, an omnipresent, terrible death. Death by bread alone is the death by mutilation, death by suffocation, the death of all relationships. Bread alone guarantees the kind of death where we can continue to vegetate for a while because the machine is still running, the terrible death by lack of connection: we continue to breathe, keep on consuming, we eliminate, we get things done, we produce, we still mutter words, and yet we are not alive.” Ibidem, p.118.

cuidado pastoral em ocasiões em que ocorre a transição da vida para a morte e as palavras podem calar. Esse cuidado toca na dimensão histórica da vida humana, ou seja, em seu cotidiano e o desafio do cuidado pastoral está em considerar todos os lados de um momento de transição. São mudanças de estação nas quais ter uma companhia pode nos ajudar a atravessar as fronteiras em direção a mais uma etapa da vida.

Toda transição de vida tem uma dupla perspectiva: a de olhar para trás e a de olhar para frente. Será tarefa da terapia e do aconselhamento pastoral guiar a visão voltada ao passado para uma visão voltada para o futuro? Eu não sei como responder a essa pergunta; o que é importante para mim é preservar ambas as direções. Há uma polaridade entre o comprometimento e a liberdade, entre dizer adeus e partir, entre o processo de rompimento e toda a sua dor, e que Rilke evoca no Décimo Segundo Soneto com a frase: “Desejem a transformação. Sejam inspirados pela flama ardente”.47

Nas perspectivas teológicas que traçamos sobre a realidade da morte, da finitude, do sofrimento, da esperança, encontramos avenidas importantes pelas quais podemos trafegar para lidar com o fenômeno do luto. Sabemos que tais avenidas nos remetem a outros caminhos que podem oferecer amparo e ampliar nossos horizontes de percepção no processo do conhecimento. Um desses fulcros pode ser a perspectiva do luto pela psicologia.