• Nenhum resultado encontrado

Luto: a contribuição do pensamento de Sigmund Freud

CAPÍTULO 1 MORTE E LUTO NA EXISTÊNCIA HUMANA

1. A morte sob a óptica do cristianismo

1.2 O processo do luto: enfoques psicológicos

1.2.1 Luto: a contribuição do pensamento de Sigmund Freud

Freud tratou do luto em várias de suas obras. Não podemos dizer, entretanto, que ele tenha mergulhado a fundo no assunto. É auspicioso afirmar que o luto é uma espécie de tema

47 “Every life transition has a double perspective: looking back and looking forward. Is it the task of therapy and pastoral care to guide one’s view toward the past into a view toward the future? I do not know how to answer this question; what is important to me is to me is to preserve both directions. There exists a polarity between commitment and freedom, between saying good-bye and departing, between the process of breaking off, with all its pain, and what Rilke conjures up in the Twekfth Sonnet with the line: ‘Will the transformation. Be inspired by burning flame’”. Ibidem, p. 69

transversal na obra de Freud. Seu vínculo com temas como ansiedade, religião, infância e melancolia são correlações importantes para compreender o pensamento dele sobre o luto. Percebe-se em Freud uma relação muito estreita entre o luto e a ansiedade, já que ela corresponde a uma das primeiras reações ao luto, melhor dizendo, à perda do objeto. Freud tentou esmiuçar essa relação indagando sobre o vínculo entre ansiedade, luto e dor por ocasião da separação do objeto. Para ele, a felicidade e o amor estão ligados à tensão entre vínculo e perda do objeto amado. Portanto, há uma aproximação também com o tema do sofrimento, que tem sua dimensão pública e privada:

O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez seja mais penoso do que qualquer outro.48

Esse sofrimento está relacionado de certa forma ao desamparo vivenciado pelo ser humano, aliado a um suporte religioso que impõe regras morais, às vezes duríssimas. A busca do amparo na religião vem acompanhada pela hermenêutica bíblica do amor ao próximo. Freud demonstrou certa raiva na alusão ao primeiro mandamento: “Na verdade, se aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu próximo como este te ama’, eu não lhe faria objeções.”49 Assim, Freud teceu um pano de fundo para os estudos do luto aliado ao

sofrimento.

Um dos textos mais conhecidos de Freud que tratou especificamente sobre o luto é

Luto e Melancolia50, no qual fez distinções e aproximações entre as duas expressões. Porém, parece que sua preocupação essencial estava mais centrada na melancolia do que no luto em si. As conceituações permearam dois aspectos: o luto e a melancolia. De acordo com Freud, o luto é “a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”51. Em

si mesmo não era considerado uma patologia por Freud. A melancolia, por sua vez, é um

48FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão: O mal-estar da civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro:

Imago Editora Ltda. 1974, Vol. XXI, p. 95. 49Ibidem, p. 132.

50O texto Luto e Melancolia, encontra-se em: FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico; artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1996, Vol. XIV, p. 249. 51FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1996, Vol. XIV, p. 249.

[...] desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição.52

No caso do luto, a perda do “objeto amado” faz com que haja um movimento compensatório em relação a esse objeto. Para isso, o ego despende muita energia até ficar “livre” da sensação de desprazer causada pelo luto.

O luto profundo, a reação à perda de alguém, encerra o mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda de interesse pelo mundo externo – na medida em que esse não evoca esse alguém –, a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele. É fácil constatar que essa inibição e circunscrição do ego é expressão de uma exclusiva devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses. E, realmente, só porque sabemos explicá-la tão bem é que essa atitude não nos parece patológica. 53

Em relação à melancolia, a perda torna-se dolorosa não pelo fato de saber quem a pessoa perdeu, mas o que perdeu através dessa pessoa. Portanto, há um empobrecimento do ego e uma redução da autoestima. Na melancolia, as recriminações feitas ao “objeto amado” voltam-se para o ego da própria pessoa; amor e ódio se digladiam.

É inconcebível que a vida seja apenas uma preparação para a morte. As pulsões sexuais provam que realmente não pode ser assim: elas são as servas da vida. No mínimo, prolongam o caminho até a morte; no máximo, lutam por uma espécie de imortalidade. A mente, portanto, é um campo de batalha. Estabelecido esse enunciado, para sua satisfação, Freud se embrenhou no emaranhado da biologia especulativa moderna, e mesmo na filosofia, à procura de evidências comprobatórias.54

O sentimento de culpa, tema amplo e complexo estudado por Freud, também está relacionado ao luto. Como sabemos, a culpa está estritamente atrelada ao contexto religioso. Freud interpretou tal sentimento como associado à busca da felicidade. Evidentemente não é nossa intenção esmiuçá-lo, mas pontuar sua importância nos estudos do luto no contexto religioso.

Outro aspecto associado ao luto, nos estudos de Freud, é o Tabu. Em sua obra Totem e

Tabu, o estudioso teceu uma “antropologia psíquica” ligada principalmente aos princípios

52Ibidem, p. 250. 53Idem. [grifo do Autor]

morais, familiares e de convivência humana no contexto dos povos primitivos. Os tabus foram construídos para uma organização social e psíquica dos relacionamentos; eles evocam ambivalências emocionais que fazem com que, por exemplo, diante de uma ultrapassagem dos limites estabelecidos por um grupo, nasça um ato obsessivo. Ora, essa atitude está diretamente vinculada aos rituais religiosos que, de certa forma, aliviam a culpa da “quebra” do tabu. As proibições de tocar os mortos e falar sobre eles são tabus que expressam o medo de burlar um limite.

O luto tem uma missão psíquica muito específica a efetuar; sua função é desligar dos mortos as lembranças e as esperanças dos sobreviventes. Quando isto é conseguido, o sofrimento diminui e, com ele, o remorso e as autocensuras e, consequentemente, também o medo dos demônios. E os mesmos espíritos que inicialmente foram temidos como demônios podem agora esperar encontrar um tratamento mais amistoso; são reverenciados como ancestrais e lhes são dirigidos apelos em busca de ajuda.55

Os estudos de Freud que permearam o tema do luto tocaram também no que denominamos hoje de busca do sentido da vida. Tal tema está ligado diretamente ao amparo recebido desde a infância e que deve deixar uma matriz que ofereça suporte às pessoas no decorrer de suas vidas. O processo do luto precisa, portanto, de um “treino” infantil e que amadurece com a vida e com o saber lidar com frustrações e perdas ao longo do ciclo vital. A

Weltanschanuung (visão de mundo, expressão muito utilizada por Freud) inclui a busca pelo sentido da vida.