• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 MORTE E LUTO NA EXISTÊNCIA HUMANA

1. A morte sob a óptica do cristianismo

1.3. Cuidado Pastoral: aspectos gerais

Quando nos remetemos à expressão “cuidado pastoral” observamos dois termos que se justapõem e que de fato são quase sinônimos. Quem cuida pastoreia e quem pastoreia cuida. Leonardo Boff tratou especificamente do primeiro vocábulo – cuidado – de forma

77KOVÁCS, Maria Júlia. Educação para a morte: desafio na formação de profissionais de saúde e educação. São Paulo: Casa do Psicólogo: FAPESP, 2003, p. 24.

78PESSINI LÉO, Barchifontaine Christian de P. (org). Buscar sentido e plenitude de vida: Bioética, saúde e espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 157.

ampla, com detalhes etimológicos que evocam a riqueza de uma expressão que foi adotada por várias instâncias que envolvem o humano, entre eles o contexto eclesial. O teólogo fala de um cuidado que integra várias dimensões de nós mesmos, como a ecológica, a saúde pessoal e a do planeta. Com tons junguianos, admite a necessidade de recuperarmos uma dimensão perdida de nós mesmos, o lado da ternura, da cordialidade, da compaixão. Boff foi buscar subsídios para a compreensão da palavra cuidado em mitos, símbolos antigos e reflexões de pensadores que resguardaram a categoria do cuidado como parte essencial do ser humano.

Mitos antigos e pensadores contemporâneos dos mais profundos nos ensinam que a essência humana não se encontra tanto na inteligência, na liberdade ou na criatividade, mas basicamente no cuidado. O cuidado é, na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental do humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir. 79

Boff traz também nuanças das filosofias da existência em sua busca pelo resgate da importância do cuidado80. Ele toca no cuidado da terra e dos relacionamentos e procura resgatar exemplos de atitudes concretas que fizeram diferença na sociedade em que vivemos. Reconhece que esses cuidadores são semeadores, na tarefa de todos nós – o cuidado mútuo:

Cuidado significa então desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Como dizíamos, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude. Conhecemos nas línguas latinas a expressão “cura d’almas” para designar o sacerdote ou o pastor cuja missão reside em cuidar do bem espiritual das pessoas e acompanhá-las em sua trajetória religiosa. Tal diligência se faz com cuidado e espirit de finesse, como convém às coisas espirituais. 81

Um destaque importante nas várias categorias de cuidado aventadas por Boff está no que ele denominou “Cuidado de nossa grande travessia, é internalizar uma compreensão esperançosa da morte”82.

A expressão “cuidado pastoral” tem sido utilizada como uma espécie de atualização de ação pastoral integral. Cuidado pastoral também é interpretado como a vocação do cura

79BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, Vozes, 2003, p. 11. 80Boff apreende o pensamento do filósofo Martin Heidegger. Segundo Boff, esse filósofo defendia a ideia de que o cuidado é uma dimensão essencial do ser humano. Boff afirmou: “nas palavras de Martin Heidegger: ‘cuidado significa um fenômeno ontológico-existencial básico’. Traduzindo: um fenômeno que é base possibilitadora da existência humana enquanto humana.”. Ibidem, p. 34.

81Ibidem, p.91. 82Ibidem, p.153.

d’almas.83 O termo “cuidado” evoca uma dimensão afetiva em todas as relações que pode estabelecer. Sobre o aconselhamento pastoral, uma das facetas indispensáveis do cuidado pastoral, pode-se afirmar que as heranças recebidas, principalmente estadunidenses, focaram uma dimensão clínica e individual. Um dos caminhos para ampliarmos as intervenções no cuidado pastoral é a inclusão de rituais de despedida como espaço de consolo. Esses podem viabilizar novas atitudes pastorais no aconselhamento, que extrapolariam o modelo clínico. O cuidado pastoral é definido como a prática da fé cristã por uma comunidade-igreja que atinge os relacionamentos interpessoais, promovendo a nutrição da fé entre seus membros. Portanto, trata-se de algo comunitário e que se dá por meio de interligações de várias áreas da igreja: educação, diaconia, aconselhamento, pregação, espiritualidade. Conforme Casiano Floristan: “por ação pastoral entendemos a totalidade da ação da Igreja e dos cristãos, a partir da práxis de Jesus, para a implantação do Reino de Deus na sociedade.”84 Portanto, o cuidado pastoral não diz respeito somente ao pastor e pastora, mas à comunidade-pastora que busca uma prática do cuidado em todas as situações enfrentadas por seus membros. O que caracteriza o cuidado pastoral é uma prática conjunta das comunidades que procuram, mediante atitudes, cumprir os valores disseminados pelo grupo. É importante afirmar que o termo práxis se aplica nessa definição, já que abarca a reflexão e a prática. Nesse sentido, não há como falar de cuidado pastoral sem incluir os dois polos da mesma expressão. Segundo James Farris, que inclui o tema do cuidado pastoral na discussão sobre Teologia Prática, “Nesta compreensão de Teologia Prática, o cuidado pastoral e o aconselhamento têm sido identificados com o diálogo entre teologia e psicologia dentro do contexto da experiência humana.”85

O aconselhamento focaliza indivíduos e grupos, promovendo o contato com sentimentos e pensamentos advindos de situações-limite. É um relacionamento construído no contexto da finitude e da impotência humana, de situações-limite gestadas por crises existenciais que alcançam o cotidiano das pessoas.

John Patton abordou a terminologia “aconselhamento pastoral comunitário”, cuja proposta envolve a poimênica (conceito desenvolvido por Howard Clinebell como ação

83Roger F. Hurding oferece uma abordagem geral sobre os modelos de psicoterapia e aconselhamento. O termo “cuidado pastoral” não é cunhado diretamente em sua obra. Hurding aborda as influências das várias escolas de psicoterapia nos modelos de aconselhamento. É uma pesquisa que pode subsidiar os estudos de aconselhamento que consideramos um “galho” da árvore denominada cuidado pastoral, fazendo uma analogia com o título do livro de HURDING, Roger F. A Árvore da Cura: modelos de Aconselhamento e de Psicoterapia. São Paulo: Vida Nova, 1995.

84FLORISTAN, C. Teologia Prática. Salamanca: Sígueme, 2002, p. 140-141.

85FARRIS, JAMES. Teologia Prática: cuidado e aconselhamento pastoral. Estudos de Religião. São Bernardo do Campo, no 12, dezembro de 1996, p. 19.

pastoral da comunidade) e comunidade terapêutica (conceito apreendido por Lothar Carlos Hoch, como ação da comunidade em prol da sua própria saúde).86

O aconselhamento pastoral comunitário contextual proposto por John Patton é realizado tanto por leigos como por clérigos e implica a ideia de uma comunidade que cuida porque ela é cuidada por Deus. Patton fundamenta esta perspectiva no paradigma do contexto bíblico, onde a lembrança do cuidado de Deus para com o seu povo aconteceu durante toda a história da tradição judaico-cristã.87

É indispensável afirmar também que a concepção de um aconselhamento pastoral comunitário pode contribuir de forma significativa com o cuidado pastoral, com a cidadania, bem como com uma sociedade marcada pela falta de atendimento e serviço em situações de luto.

Ronaldo Sathler Rosa, teólogo metodista brasileiro, afirma que o aconselhamento

pastoral tem amplas possibilidades de fomentar a dignidade humana e nutrir a auto-estima de forma comunitária. Pode-se dizer que a importância do aconselhamento pastoral para a vida da comunidade de fé é vital para o cuidado das pessoas entre si.

Portanto, cuidar do indivíduo é essencial, mas não é suficiente! É preciso cuidar da “casa”, dos sistemas que estruturam a vida das pessoas em sociedade, das múltiplas interações do ser humano. É ação pastoral direcionada a sistemas. Em sua fase de conhecimento da situação, a ação pastoral identifica distorções, desequilíbrios, injustiças que sejam obstáculos para a vida plena, para a cura e para a paz. É a dimensão da “denúncia profética”. Então, proclama as Boas-Novas por meio da Palavra e da participação na busca de alternativas. É a dimensão do anúncio. É voz profética nos domínios públicos, estatais, institucionais. O cuidado pastoral enraíza-se na esperança e na confiança de que é possível a mudança e fazer “novas todas as coisas” (Apocalipse 21.5) mediante ações das comunidades de fé e seus “cuidadores pastorais.”88

As expressões latino-americanas de cuidado pastoral têm-nos lembrado dos pontos axiais do cuidado pastoral em nosso continente. Nesse sentido, é vital que, ao trabalharmos o tema, não nos esqueçamos de olhar para o que está ao nosso redor, para o que constitui o ser

86Esses dois autores influenciaram consideravelmente os estudos de aconselhamento pastoral no Brasil. O primeiro é estadunidense, falecido em 2005. O segundo é brasileiro, reitor da Escola Superior de Teologia (São Leopoldo) da Igreja Evangélica de Confissão Luterana.

87Apud. STRECK, V. S. Terapia Familiar e Aconselhamento Pastoral. São Leopoldo, Sinodal, 1999, p. 115-116.

88SATHLER-ROSA. Ronaldo. Cuidado Pastoral em Tempos de Insegurança: uma hermenêutica teológico- pastoral. São Paulo: Aste, 2004, p. 50.

humano, para o que o dignifica como pessoa. O cuidado pastoral evoca também as perguntas existenciais que nos envolvem cotidianamente.

Nas agruras da vida, há que desenhar o cuidado pastoral de forma curativa e preventiva, bem como incluir o envolvimento das igrejas que se abrem à interlocução com outros grupos cujo objetivo primordial é o cuidado com o humano. Não há como definir cuidado pastoral, considerando somente sua faceta intraeclesiástica. Aliás, essa dimensão ainda está em processo de reinvenção em muitas comunidades que perderam os fios da rede de apoio ao ser humano. Cuidado pastoral está envolvido com educação para a vida. Pat Contreras Ulloa89 evoca uma “psicologia pastoral” profética.

Por isso, para promover saúde, a Psicologia Pastoral deverá entrar em contato com o sofrimento humano, não apenas para fazer companhia ou promover consolo, mas também para descobrir suas causas e desenhar formas de intervenção e harmonia profundas, para hoje e para as próximas gerações. Este é o nosso inegável trabalho profético, característico da teologia latino-americana.90

É vital afirmar que a influência da psicologia no cuidado pastoral é significativo e indispensável para a saúde integral das pessoas, grupos, famílias, sociedade. Porém, o cuidado pastoral, como já mencionado, vai além do psicológico. Sathler-Rosa enfatiza a importância da dimensão antropológica para a compreensão dos meandros do cuidado pastoral. É indispensável tocarmos em temas que dizem respeito ao vazio existencial que assola tantas pessoas e famílias atualmente.

Howard Clinebell influenciou muitos teólogos pastoralistas latino-americanos com seu conceito de poimênica. Talvez seja possível considerá-lo como uma das aproximações conceituais mais estreitas com o cuidado pastoral.

89 Pat Contreras Ulloa é docente, pastora e psicoterapeuta; coordena os programas de Psicologia Pastoral da Comunidade Teológica do México.

90 “Por eso, para generar salud, la Psicologia Pastoral ha de entrar en contacto con el sufrimiento humano, no sólo para acompañar o consolar sino también para descubrir sus causas y diseñar formas de intervención y armonía profundas para hoy y para las próximas generaciones. Ésta es nuestra innegable labor profética, propria de la teologia latinoamericana”. ULLOA, Pat Contreras. Por una Psicologia Pastoral que acompañe y desafíe. Dimesiones Del cuidado y Asesoramiento Pastoral: aportes desde América Latina y el Caribe. Buenos Aires:

Kairós, 2006, p. 26. Estamos considerando que terminologias como psicologia pastoral, aconselhamento pastoral, são ações de solidariedade dentro do cuidado pastoral que pode ser encarado por alguns autores (como Floristan como ação pastoral) e por outros (como Sara Baltodano – professora da Universidade Bíblica Latino- americana, psicóloga e presbítera da Igreja Presbiteriana). Christoph Schneider-Harpprecht, no livro Teologia Prática no contexto da América Latina, faz uma excelente reflexão, não especificamente sobre o cuidado, mas sobre o aconselhamento pastoral, que é de grande significado para a compreensão de terminologias diferenciadas que algumas vezes podem ser sinônimos; dependerá do contexto em que elas serão usadas.

Poimênica é o ministério amplo e inclusivo de cura e crescimento mútuos, dentro de uma congregação e de sua comunidade, durante todo o ciclo da vida. Aconselhamento Pastoral, que constitui uma dimensão da poimênica, é a utilização de uma variedade de métodos de cura (terapêuticos) para ajudar as pessoas a lidar com seus problemas e crises de uma forma mais conducente ao crescimento e, assim, a experimentar a cura do seu quebrantamento.91

Clinebell abriu o cenário para a interpretação de um cuidado pastoral não apenas na dimensão individual. Sara Baltodano ampliou a dimensão social do cuidado pastoral (a que ela denomina acompanhamento pastoral), principalmente em sua obra Psicologia Pastoral e

Pobreza, na qual oferece aos cuidadores orientações importantes para reflexão sobre o que assola muitos países da América Latina.

O acompanhamento pastoral popular, ao contrário da perspectiva individualista ou pessoal, parece ter uma visão estrutural. Esta considera que as pessoas empobrecidas são os agentes de sua própria libertação, a qual não se realiza a partir de fora, mas de dentro. Quando os empobrecidos, como corpo coletivo, lutam por sua própria libertação, não há dúvida que haverá conflito e mudança estrutural.92

O estímulo a um cuidado pastoral que inclua a atenção a esses fatores é indispensável. Aspectos relevantes para a pesquisa sobre cuidado pastoral no contexto brasileiro devem permear a diversidade cultural, o imaginário religioso, as discussões sobre gênero, a sociologia da emoção93, o diálogo entre diversos campos do saber. Dentro do cuidado pastoral, o aconselhamento é relevante e indispensável na atenção ao luto. Lothar Carlos Hoch adverte-nos para a necessária atenção ao tema do luto nas igrejas protestantes históricas.

Nas igrejas históricas fazem-se necessárias tanto a discussão teológica quanto a elaboração, em forma escrita, de subsídios práticos que sirvam de orientação àqueles e àquelas que pretendem fazer uso de recursos terapêutico-pastorais junto a pessoas enfermas e moribundas. Nossas igrejas não podem continuar ignorando essa temática nem permitir que obreiros/as

91 CLINEBELL, H.J. Aconselhamento Pastoral. São Paulo: Paulinas. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1987, p. 25.

92 “El acompañamiento pastoral popular, al contrario de la perspectiva individualista o personal, parece tener una visión estructural. Esta considera que las personas empobrecidas son los agentes de su propia liberación la cual no realiza desde afuera sino desde adentro. Cuando los empobrecidos, como cuerpo colectivo, luchan por su propia liberación no hay duda que habrá conflicto y cambio estructural”. BALTODANO, Sara. Psicologia

Pastoral y Pobreza. San José: Universidade Bíblica Latinoamericana, 2003, p. 97. A tradução para o

português foi feita por Eduardo Panik.

tenham que improvisar por conta própria novas formas litúrgicas para tais ocasiões.94

Numa linha semelhante de pensamento, Johann Baptist Metz alerta para a necessária inclusão, nos estudos sobre a morte, da teologia da recordação, da memória para a expressão da solidariedade com as perdas que acontecem com as pessoas no decorrer de suas vidas.

A solidariedade memorativa cristã com os mortos não é determinada por um interesse abstrato e também não, primordialmente, pelo cuidado: o que acontece “comigo” na morte?, portanto, com os outros, especialmente com aqueles que sofrem (e só em conexão com isto pela preocupação com a própria identidade na morte). Na sua estrutura dupla: místico-política, a solidariedade surge, por isso, como categoria da salvação do sujeito onde este está ameaçado: pelo esquecimento, pela opressão, pela morte; como categoria do empenhamento em favor do homem, para ele se tornar sujeito e permanecer sujeito.95

O que Metz denominou de solidariedade memorativa é um caminho promissor para aprofundamentos na reflexão teológica dos sentidos da morte no mundo cristão. Além disso, nos lembra a importância do cuidado no momento da morte. Isso nos faz recordar marcas históricas que acompanharam a atenção do cristianismo para o tema da morte. Nesse sentido, é vital que incluamos algumas concepções da história da morte como contemplada por alguns de seus mais importantes expoentes: Philippe Áries e Jean Delumeau.