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2 ASPECTOS HISTÓRICO-CONCEITUAIS EM TORNO DE DEFICIÊNCIA NO OCIDENTE

2.1 CORPO, HARMONIA E DEFICIÊNCIA NO MUNDO GRECO-ROMANO

A noção de corpo no Ocidente percorreu conceitos, definições, subjugações, valorizações e uma cansativa tentativa de melhor entendê-lo e encaixá-lo nos propósitos das sociedades (RODRIGUES, 1999). Ora, desde a Antiguidade Clássica, a importância do corpo enquanto signo está vinculada a concepções estéticas e morais que influenciam as próprias relações sociais (SANT`ANNA, 2000). Assim, conforme Goellner (2003, p.28):

O corpo é uma construção sobre a qual são conferidas diferentes marcas em diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos, etc. Não é, portanto, algo dado a priori nem mesmo é universal: o corpo é provisório, mutável e mutante, suscetível a inúmeras intervenções consoante o desenvolvimento científico e tecnológico de cada cultura bem como suas leis, seus códigos morais, as representações que cria sobre os corpos, os discursos que sobre ele produz e reproduz.

O corpo é também o que dele se diz e aqui estou a afirmar que o corpo é construído, também, pela linguagem. Ou seja, a linguagem não apenas reflete o que existe. Ela própria cria o existente e, com relação ao corpo, a linguagem tem o poder de nomeá-lo, classificá-lo, definir-lhe normalidades e anormalidades, instituir, por exemplo, o que é considerado como corpo belo, jovem e saudável. Representações estas que não são universais nem mesmo fixas. São sempre temporárias, efêmeras, inconstantes e variam conforme o lugar/tempo onde este corpo circula, vive, se expressa, se produz e é produzido. (GOELLNER, 2003, p.29, grifo nosso).

A linguagem e a cultura, portanto, instituem o que pode ser considerado como padrão de normalidade e de “anormalidade”. Ora, na Grécia Antiga, a beleza, a perfeição e a simetria foram atributos de tal maneira, essenciais, que “as relações sociais foram construídas e consolidadas pelo corpo” (GONÇALVES, 1994, p.18)10

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Articulada às dualidades perfeição/ imperfeição e simetria/ assimetria, surgem as diferentes concepções em torno de deficiência no Ocidente. Ora, durante muito tempo na história Ocidental as pessoas com deficiência foram vistas como óbices para a sociedade, tratadas através da segregação, e quando não eram mortas chegavam a ser desprezadas, à própria sorte. O Ocidente durante muito tempo perseguiu, ignorou, explorou e rejeitou as pessoas com deficiência, frequentemente considerados possuídos por espíritos demoníacos ou vítimas da sina diabólica e feitiçaria (PESSOTTI, 1984).

No mundo greco-romano, e particularmente em Esparta, os indivíduos do sexo masculino dos 7 (sete) aos 37 (trinta e sete) anos, deveriam estar à disposição do serviço militar. Devido este motivo, exigiam-se homens saudáveis, capazes de proteger a nação durante as constantes batalhas. Contudo, aqueles que tivessem algum tipo de deficiência não possuíam aptidão para o exercício da guerra. Concomitante a esse cenário, no decurso do seu nascimento os bebês foram conduzidos a uma espécie de comissão oficial organizada por anciãos de autoridade eminente, de acordo com os dispositivos legais:

[...] lhes parecia feia, disforme e franzina, como refere, Plutarco, esses mesmos anciãos, em nome do Estado e da linhagem de famílias que representavam, ficavam com a criança. Tomavam-na logo a seguir e a levavam a um local chamado Ápothetai, que significa depósito. Tratava-se de um abismo situado na cadeia de montanhas Tahgetos, perto de Esparta,

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GONÇALVES, Maria Augusta Salim. Sentir, Pensar, Agir – Corporeidade e Educação. Campinas – SP: Papirus, 1994.

onde a criança era lançada e encontraria a morte, pois, tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela vivesse, visto como desde o nascimento não se mostrava bem constituída para ser forte, sã e rija durante toda a vida (SILVA, 1986, p. 122).

Em Atenas, reconhecida por muitos historiadores como o berço da civilização, o cuidado para com as pessoas com deficiência não recebia distinção daquele tratamento dado na civilização espartana. No caso do nascimento de um bebê com alguma deficiência, o próprio genitor deveria matá-lo. O extermínio de crianças com deficiência era tão normal que, mesmo os maiores pensadores épicos estavam de acordo com esses hábitos. Platão (428 348 a.C.) ao discorrer como deveria ser uma república afirma: “no que concerne aos que receberam corpo mal organizado, deixa-os morrer (...) quanto às crianças doentes e às que sofrerem qualquer deformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro desconhecido e secreto” (Platão apud Silva,1986, p. 124). Quanto a Aristóteles (384 322 a.C.), sua concepção resumia-se no seguinte pensamento: “quanto, a saber, quais as crianças que se deve abandonar ou educar, deveria existir uma lei que proíba alimentar toda criança disforme” (Aristóteles apud Silva, 1986 p. 124).

Cícero, que viveu entre 106 a.C. e 43 a.C., comenta em sua obra "De Legibus", que nas Leis das Doze Tábuas havia uma determinação para o extermínio de crianças consideradas como anormais. Tábua IV (Sobre o Direito do Pai e Direito do Casamento): Lei III: O pai imediatamente matará o filho monstruoso e contrário à forma natural do gênero humano que lhe tenha nascido há pouco (CÍCERO, 1967). Este mesmo pensador externou seu ponto de vista a respeito do como se deveria proceder em relação as pessoas com deficiências múltiplas:

[...] reunamos agora todos esses males num só indivíduo. Que ele seja surdo e cego e que prove atrozes dores ele será logo consumido por esses sofrimentos e, se por falta de sorte eles chegarem a se prolongar, por que suportá-los? A morte é um refúgio seguro que o abrigará dessas horrendas misérias (CÍCERO, 1967 apud SILVA, 1986, p.141).

Na Lei das XII Tábuas (451 a.C.) de Roma, a regra era que o filho nascido com alguma anomalia tinha que ser morto após o nascimento. “Olho por olho, dente por dente”, reiterava a crença de que deficiência era algo negativo e quando alguém possuísse alguma deficiência é por que fazia jus. Neste caso, a pena de mutilação do nariz e das orelhas era aplicada como castigo comum estigmatizador ou como vingança contra inimigos capturados pelas legiões romanas. Caio Júlio César (100 a 44 a.C.), em sua obra de “De Bello Gallico”,

conta que essa pena era aplicada nos seus soldados em casos de faltas graves contra a disciplina militar ou de desistência. Nos tempos dos Césares, muitas pessoas com deficiência também eram consideradas incapaz e estranhas e serviam a atividades ligadas a circos romanos, tavernas, estabelecimentos comerciais e bordeis, havendo, muitas vezes, nestes últimos, meninas cegas sendo exploradas sexualmente.

2.2 CORPO, ABOMINAÇÃO E DEGRADAÇÃO: O CRISTIANISMO E AS PESSOAS