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52 O ser humano sempre teve curiosidade em superar as suas condições

III.1 corpo-máquina e corpo-objeto

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emoções e inteligência. Se assim o quiséssemos poderíamos adquirir a força de Hércules, a sensualidade de Afrodite, a sabedoria de Atena ou a loucura de Dionísio.”48

Argumenta ainda que “o nosso compromisso ideológico para com a

vida humana nunca nos permitirá a mera aceitação da morte (…), seja qual for a causa, nós tentaremos dominá-la” e prevê que “os novos objetivos da humanidade

sejam a imortalidade, a felicidade e a divindade”49. O autor, mantendo

maioritariamente uma posição analista, contra-argumenta que acha pouco viável certas futurologias feitas por alguns investigadores da área, mas assegura que pelo menos um aumento da esperança de vida gradual (em vez da imortalidade) é bastante provável, credível e que por si só trará mudanças de paradigmas culturais profundamente significantes num futuro bastante próximo.

A contemporaneidade é descrita amplamente como um período de crise do corpo e alguns autores mencionam mesmo o “fim do corpo”50

ou a “morte do corpo”51. Este período de passagem é constituído por grandes

transformações e permite observar o que outrora foi a conceção de corpo, a que tem vindo a ser e a que poderá vir a ser. É já conhecido que as novas tecnologias, que se têm desenvolvido exponencialmente, abalaram a conceção de corpo e têm vindo a expandir cada vez mais as suas potencialidades. É através da ciência e técnica que o ser humano determina a sua transformação e desenvolvimento.

48. Harari, Homo Deus: História Breve do Amanhã, 33 49. Ibid., 31

50. Maria Augusta Babo, “Do corpo protésico ao corpo híbrido,” Revista de Comunicação e

Linguagens- Corpo, Técnica, Subjectividades, nº33 (junho de 2004):32

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“O mundo contemporâneo é testemunha do desenraizamento das arcaicas matrizes de sentido – fim das grandes narrativas (marxismo, socialismo, etc.), dispersão das referências da vida quotidiana, fragmentação dos valores. Neste contexto de desorientação, é o próprio indivíduo quem traça os seus limites, para o melhor ou para o pior, quem erige de forma volúvel e deliberada as suas próprias fronteiras de identidade, a trama de sentido que norteia o seu caminho e lhe permite

reconhecer-se como sujeito.”52

De forma semelhante a David Le Breton (Le Mans, 1953), José Bragança de

Miranda (Lisboa, 1953), denomina esta condição contemporânea de “corpo

utópico”53, afirmando que ocorre uma passagem do lugar da utopia do mundo

para o corpo. O corpo passa a ser o espaço da utopia, lugar de transformação e projeção de desejos, idealização e mudança. Nesse sentido, o corpo já não é visto como lugar de fronteira onde se localiza a identidade do sujeito, que se diferencia

de todos os outros objetos que o rodeiam.54 O corpo torna-se também um objeto

passível de ser utilizado, manipulado, construído pelo sujeito – torna-se “processo

(…) [e] projeto”55 do sujeito. O ser humano toma as rédeas da sua existência e

evolução, e “além de objecto de evolução passa a ser também sujeito. Além de produto é agente do seu destino evolutivo.”56

52. David Le Breton, “O Corpo Enquanto Acessório da Presença,” Revista de Comunicação e

Linguagens- Corpo, Técnica, Subjectividades, nº33 (junho de 2004):67

53. Miranda, “Corpo utópico”, 251

54. António Fidalgo e Catarina Moura, “Devir (In)orgânico- Entre a Humanização do Objecto e a Desumanização do Sujeito,” Revista de Comunicação e Linguagens- Corpo, Técnica,

Subjectividades, nº33 (junho de 2004):199

55. Ibid.

56. Luís Archer, “Tecnologias biológicas e liberdade,” Revista de Comunicação e Linguagens-

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Na mesma sequência de ideias, o corpo pode ser visto como “acessório

da presença”57 do sujeito, permitindo a este último redefinir-se, reinventar-se e

reposicionar-se no seu entorno, “para se tornar enfim si mesmo”.58 É esta “actual

afirmação do corpo [que] leva paradoxalmente à crise do corpo moderno”59.

Deste modo, em vez do dualismo clássico corpo e mente/alma (conforme foi desenvolvido no primeiro capítulo) pode-se pensar que a contemporaneidade é mais marcada pela oposição entre o ser humano/sujeito e o seu corpo físico.

“A pós-modernidade assume a carne como material de trabalho e suporte dos avanços da técnica. Penetrada, modificada, desintegrada, a carne é o palco das fusões que anunciam não o fim, mas as possibilidades

do humano no futuro evolutivo da espécie.”60

Algumas das razões que estão na base desta tendência à construção

do corpo são potenciadas pela cultura de massas e pelos media, motivados por interesses económicos na exploração da mesma. Esta vontade do sujeito de se autoconstruir, é observável em situações atuais como a frequência excessiva do ginásio ou do culturismo, o uso crescente de piercings e tatuagens, a cosmética e as cirurgias plásticas e estéticas, entre outros exemplos. Segundo Ieda Tucherman, esta esteticização do corpo já se fazia notar na antiguidade grega, em que o corpo era treinado e aprimorado para chegar a um ideal. Este ideal de corpo grego alia-se a “princípios de uma estética da existência, que nos convida a uma existência da estética.”61

A estas práticas estetizantes aliam-se também uma crescente adesão a políticas

57. Breton, “O corpo enquanto acessório da presença”, 67 58. Ibid.

59. Miranda, “Corpo utópico”, 258

60. Fidalgo e Moura. “Devir (In)orgânico”, 199

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de género, na defesa dos direitos de diferentes “corpos” em minoria. Para Le Breton, a transexualidade corporaliza esta questão contemporânea:

“O corpo do transexual é um artefacto tecnológico, uma construção cirúrgica e hormonal, um retoque plástico apoiado numa vontade de ferro. Senhor da sua existência, o transexual pretende assumir por uma vez uma aparência sexual adequada ao seu sentimento pessoal. O seu sexo de eleição é resultado de uma decisão própria e não de um destino anatómico”62

Como vários dos autores previamente citados63 observam, o corpo

torna-se objeto quando é rompida a pele que o encapsula e protege, revelando o interior do corpo como um conjunto de sistemas interligados em funcionamento sistemático. Atribui-se, como causa desta, as primeiras experiências dos anatomistas, que ao realizarem autópsias e análises começaram a desmistificar o interior do corpo e a analisar o seu funcionamento, contribuindo progressivamente para a criação de uma imagem coletiva do mesmo. Posteriormente, devido a avanços tecnológicos na área, torna-se possível ter uma visão acessível do interior do corpo – em alguns casos, como a endoscopia, sem ter de o abrir ou perfurar, através do uso de variados dispositivos ópticos (câmera endoscópica, Raio-X, Ressonância magnética, …). Assim, cria-se no imaginário coletivo uma visão suficientemente consensual que altera/interfere na conceção de corpo próprio.

“a dissecação, revela o seu funcionamento mecânico, substituindo a alma pelo fluxo sanguíneo e pelas reações nervosas como fonte de

62. Breton, “O corpo enquanto acessório da presença.”, 71

63. Gil, Miranda e Breton mencionam a questão segundo a mesma perspetiva, enquanto Fidalgo e Moura o fazem, citando Breton.

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animização do corpo.” 64

Devido a esta imagem sobre o corpo orgânico, nasce uma noção de corpo

como uma máquina, sendo este um conjunto de elementos interdependentes. Partes de um todo que funcionam para um objetivo em comum. René Descartes (La Haye en Touraine, 1596-Estocolmo, 1650), ‘pai’ desta corrente mecanicista do corpo, comparava-o a um relógio ou a um sistema hidráulico, afirmando que as suas “funções biológicas (…) [poderiam,] então, ser reduzidas a operações quantitativas, ao choque de forças e tensões e a funções de causalidade”.65

Esta conceção leva à vontade de substituir estas perecíveis partes da máquina por outras ‘peças’ mais eficientes, mais duradouras ou até com outras capacidades. Através dos desenvolvimentos da bioengenharia e da biotecnologia, as perspetivas de melhorar a ‘máquina’ tornam-se cada vez mais reais. Aliada a esta temática surge o plano da prótese- um elemento que vem complementar ou colmatar uma falha do corpo ou suplementá- lo – a prótese como reconstrução e melhoramento do corpo com falhas e como superação dos limites do corpo. Não sendo já apenas para substituir um membro ou uma capacidade perdida, a prótese passa a ser suplemento daquilo que constitui o Ser Humano – o que implica que este vê como falha, que pode ser retificada, certos dos seus limites constituintes (morte,

doença, …). A evolução do ser humano, passa por uma “libertação do corpo”66

progressiva, que transforma gradualmente o corpo, ampliando e potenciando

64. Fidalgo e Moura. “Devir I(n)orgânico”, 201

65. Cláudia Murta, “O Autômato: Entre o Corpo Máquina e o Corpo Próprio.”

Natureza Humana, v.17, nº2 (2015):76, http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_

arttext&pid=S1517-24302015000200004 (acedido em julho 2019) 66. Babo, “Do Corpo Protésico ao Corpo Híbrido”, 39

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as suas capacidades. Essa libertação é feita através de “peças” externas, numa

“evolução exógena”67 que pode ir desde o uso de utensílios diários ao uso do

telemóvel, do carro, do computador, etc... Por conseguinte, o corpo “acolhe a

técnica”68 deixando de ser um corpo limitado, unitário e fechado. A considerar

como prótese são também os medicamentos em crescente consumo, num ritmo de vida e sociedade para a qual o corpo não se encontra suficiente- são exemplo os antidepressivos, os ansiolíticos, suplementos, entre outros. São “próteses químicas (…) para regular matizes afectivos da relação ao mundo (…) contemporâneo, para manter-se à tona num sistema cada vez mais ativo

e exigente.”69 Atualmente a prótese externa como suplemento (em oposição

a complemento) não se restringe apenas a agrupar ou manipular objetos externos. A verdadeira evolução está-se a tornar a manipulação do orgânico em conjunto com o inorgânico, criando um híbrido, um outro, um humano depois

do atual: um “pós-humano”.70

“É a capacidade de explorar, acoplando, o inorgânico que acaba por definir o orgânico. O processo conhecido por hominização não se caracteriza pelo aparecimento de uma espécie nova mas antes pelo aparecimento de uma nova forma de vida.(…) incorporar ou interiorizar a técnica que opera uma transformação no corpo e ainda na própria ideia de sujeito ligada a um corpo mutável, num ser híbrido e mutante(no sentido de aberto, na sua existência mesma, à mutação) (…) [o] sujeito

deixa de ser o lugar do eidos imutável para se dar em constante devir.”71

67. Popper, O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente, 44 68. Babo, “Do Corpo Protésico ao Corpo Híbrido”, 31

69. Breton, “O corpo enquanto acessório da presença”, 71 70. Babo, “Do Corpo Protésico ao Corpo Híbrido”, 34 71. Ibid., 30-31

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Assim, o universo do pós-humano é caracterizado pela fusão entre

matérias de origem diferente. Ao biológico da natureza funde-se o que foi criado pelo ser humano – o natural alia-se ao artificial. Apesar desta noção de artificial, pode-se ver esta nova conceção de humano de outra forma. Se os seres humanos foram criação da natureza, tudo o que eles fizerem (inclusive mexer e alterar a ordem natural) pode ser considerado decorrente da natureza. Ou seja, a inovações tecnológicas podem não ser vistas como algo dito ‘artificial’, mas apenas uma decorrência natural que faz sentido em termos evolutivos. Popper faz uma crítica à teoria evolucionista na temática da manipulação genética para aperfeiçoamento da espécie humana. Segundo ele, não é possível decidir que tipos hereditários serão sempre melhores porque o ambiente altera-se imprevisivelmente, portanto, talvez fosse melhor deixar a natureza adaptar-se

naturalmente.72 No entanto, esta noção de corpo pós-biológico, simbiose entre o

artificial e o orgânico, transforma o “corpo num feixe de ligações”73

entre as diferentes realidades:

“O universo dos cyborgs é o mundo dos fluxos. Na ficção, especialmente fílmica, as células vivas podem responder a chips programados, como o que vemos em O Exterminador Implacável II. No campo da ciência, electrodos podem induzir movimentos em membros paralisados, retirando as pessoas dos limites da cadeira de rodas. Nos corpos

cyborg as funções orgânicas regulam-se pelo fluxo de informação e

estímulos entre as máquinas e os organismos biológicos conectados.”74

72. Popper, O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente, 71 73. Fidalgo e Moura, “Devir (In)orgânico”, 199

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Rebecca Horn (Alemanha, 1944) artista plástica, tem uma obra vasta

que vai desde a escultura à instalação, ao desenho, à performance, à videoarte e ao cinema. Durante os seus estudos em Hamburgo adoece seriamente devido a uma intoxicação pulmonar provocada pelo uso desprotegido de resina e polímeros. Teve uma recuperação longa num sanatório que a obrigou a estar imobilizada e isolada, sentindo o seu corpo limitado, fragilizado, impotente. O que a leva a focar-se na observação e na perceção do seu próprio corpo. Perto da altura da sua doença, ambos os seus pais falecem, deixando-a órfã. Nos seus trabalhos iniciais, volta-se para dentro, considerando e refletindo nas interações espaciais do corpo com o mundo em volta e nos seus limites físicos.

“My performances started out as body sculptures. All the basic movements were centred on movements made by my body and its extremities.”75

Esta viragem pode também ser vista como uma reconexão do corpo consigo mesmo e com o espaço, representativa do sofrimento e dor sentidos durante a doença e a posterior melhoria prolongada.

“Rebecca primeiro avalia o volume da percepção corporal individual: Caixa de Medida [Measure Box] (1970) mostra-a de pé dentro de uma construção aberta, semelhante a um cubículo; por cada um dos cantos dessa estrutura, uma série de hastes móveis é colocada na diagonal em direção ao centro onde ela está de pé. Em sucessão próxima, as hastes, como sensores, escaneiam seu corpo da cabeça aos pés. Quando ela sai da estrutura da caixa, o que permanece é o volume vazio criado pelos contornos de sua silhueta. Esse é o espaço de onde ela parte em suas performances. Trabalhando sem um público e sem um palco, seus

75. “Rebecca Horn- Body Fantasies,” Museum Tinguely, https://www.tinguely.ch/en/ ausstellungen/ausstellungen/2019/rebecca-horn.html (acedido em agosto de 2019)

da potência do corpo ao controlo da

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