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da potência do corpo ao controlo da máquina

III.3 regeneração e especulação

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humanas e a relação do humano com o seu entorno, na perceção sensorial da realidade mutável (exterior e independente de si) – que, como observámos, é essencial na construção dele mesmo. Seria este mundo virtualizado uma realidade sem contradição nenhuma à vontade do sujeito? Esta possibilidade, ainda hipotética, de fim do corpo, “conecta-se diretamente à ideia de (…) um sujeito em crise, uma vez que esse corpo era a principal referência a partir da

qual [iria] construir a sua identidade.”82 Neste espaço-mundo virtual, o sujeito

por não ter ‘corpo’ é uma ausência mas é também uma “hiperpresença”83

pois pode estender-se em múltiplos corpos, em múltiplos lugares, em múltiplos tempos. Estará em lado nenhum, mesmo podendo estar em todos os lugares.

“crise da própria ideia de mediação, resultado de uma relação ao mundo da qual se ausenta progressivamente a noção de necessidade e instrumentalidade, abolidas por uma profunda intelectualização das ligações. A ideia de necessidade que preside historicamente à inovação técnica desvanece-se à medida que essa mesma técnica evolui para a logotécnica, para uma técnica racionalizada, tornada discurso,

desembocando numa crescente tendência para a imaterialização.”84

Mas se a matéria se torna desnecessária neste mundo virtual, como se construiria o humano sem as relações criadoras que com ela mantém ao longo de toda a sua existência? Embora incida mais sobre a questão da inteligência artificial, podemos pegar na afirmação de Damásio e concluir porque a perda do contacto com o mundo material(real)/matéria torna o humano deficiente em todo o seu desenvolvimento cognitivo, social e cultural: “Quando acontece uma coisa na mente há uma expressão automática

82. Fidaldo e Moura. “Devir (in)orgânico”, 204 83. Ibid.

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do sistema nervoso que se repercute no sistema não nervoso. Tudo está em continuidade e é por isso que não vai ser possível aos senhores de Silicon Valley pegarem em silicone, plástico e aço e fabricar qualquer coisa que pareça ter vida verdadeira e possa ter sentimentos. Porque os sentimentos se desenvolveram como parte do sistema de defesa do organismo contra a perda homeoestática. Temos sentimentos porque são úteis e necessários para que a vida continue. (…) Tens de ver os sentimentos como sendo os motivadores de tudo o que construímos culturalmente.”85

Sem corpo, sem matéria, a mente não se iria desenvolver da mesma

forma pois os sentimentos são motivados por uma questão de sobrevivência. Sem corpo e sem morte porque motivo haveria mente e sujeito? Se sem corpo, não pode existir mente, uma mente não pode subsistir sem corpo. Os sentimentos, que num caso de mundo virtual não ocorreriam da mesma forma (por não haver contacto sensorial semelhante), são essenciais para o indivíduo e imprescindíveis para a humanidade, em nosso entender.

“[o] cérebro humano resulta da prolongada evolução da espécie, que o dota logo à nascença de uma herança genética à qual se vai juntar uma biografia pessoal, feita das experiências singulares que cada um de nós coleciona ao longo da sua vida. Factores determinantes para a versatilidade da mente humana, dotada além do mais de livre-arbítrio, de uma capacidade de decisão ao mesmo tempo livre e influenciada por essas mesmas experiências pessoais, portanto totalmente oposta à rigidez da máquina, que não tem interesses autónomos nem mundo emocional.”86

Apesar do corpo se tornar objeto e propriedade do sujeito, aumenta

85. António Damásio, entrevista de Clara Ferreira Alves, “A Vida dos Sentimentos,” Expresso, 28 de outubro de 2017, 32

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obstruções no que diz respeito à liberdade do indivíduo (embora isso pareça paradoxal). Sinteticamente, Luís Archer (Porto, 1926- Lisboa,2011), reflete sobre este assunto referindo três categorias fundamentais da evolução humana que articulam esta relação entre o humano, a biologia/natureza e a tecnologia: são elas “liberdade de autodeterminação, liberdade de auto-realização e liberdade de autoperfeição”.87 Quanto à liberdade de auto-realização, o autor observa

que é bastante conseguida através das novas tecnologias porque, como já vimos anteriormente, através delas, consegue superar e contornar situações que o limitam (dor, doença, morte) conseguindo ter uma vida melhor e mais feliz, ou realizada. As outras duas categorias da liberdade – autodeterminação e autoperfeição – são, respetivamente, a liberdade do ser humano se autodeterminar

enquanto indivíduo e “sujeito independentemente dos seus antecedentes”88

(sejam genéticos ou de outra ordem); e a liberdade de atingir a “realização plena (…) [assumindo,] conscientemente[,] o núcleo fundamental daquilo que é como natureza”.89 Quanto a estas últimas categorias, refere que são amplamente

negadas pelo progresso científico: o determinismo científico nega a natureza do ser humano e deixa pouco espaço para a indeterminabilidade e imprevisibilidade do sujeito que implicam a sua liberdade. Em forma de exemplo refere situações que atualmente nos parecem bastante próximas: “Ao proclamar o «direito» de escolher o sexo e outras características dos filhos, está a interferir-se com os determinantes da pessoa vindoura e a ofender a margem de indeterminabilidade que está na pré-história de toda a liberdade. É uma possessividade instrumentalizante do

87. Luís Archer, “Tecnologias Biológicas e Liberdade,” Revista de Comunicação e

Linguagens- Moderno/Pós-moderno, 1988:257

88. Ibid. 258 89. Ibid.

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nascituro, e que ofende a liberdade de autoperfeição de quem se deixa dominar por ela. Mais um passo nesta lógica, e a sociedade poderia arrogar-se o «direito» a escolher a raça do futuro, tirando-lhe a liberdade de ser diferente daquilo que tivessem sido os caprichos da geração produtora.”90 Imiscuindo-se em tudo o que lhe é originário, a ciência e a técnica tornam- -se dominantes do ser humano (ao inverso do original), que é subjugado por um crescente destino incontrolável e pelas consequências que dele advêm que só mais tarde (tarde demais) se poderá aferir. Archer refere-se a este destino, que se torna um paradigma negativo para a humanidade, como “Tecnocosmos”91. Define de seguida que o tecnocosmos é um cânone social onde a ciência e a técnica se tornam o poder da sociedade, regulando todo o mercado económico e afetando a gestão política, tendo como uma das consequências a redução de outras áreas de interesse e investigação da experiência humana. Afirma que o tecnocosmos irá invadir por completo toda a ação do ser humano, e que isso já se vem notando nas populações mais jovens. Deste modo, “o mundo será cada vez mais artificial”92 e a humanidade sentir-se-á mais liberta da natureza, para se submeter ao fatal destino ‘tecnocósmico’. Apesar de todas estas reflexões, é também observável que é crescente

a sensibilização aos aspetos negativos dos progressos cientifico-tecnológicos, que perspetivam, em vez da utopia do corpo, uma distopia geral para o ser humano e para o mundo que habita. Como Tucherman refere, “agora não se trata apenas do que podemos ser ou fazer, mas também, e principalmente, se

90. Ibid., 261 91. Ibid., 260 92. Ibid.

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podemos controlar aquilo que faremos e o resultado do que fizermos.”93

Desde sempre, tal como Tucherman afirma, o ser humano evoluiu

através da técnica, portanto não é correto separar esta última do ser humano e da sociedade. No entanto, pela velocidade atual a que os avanços se desenvolvem, é necessário pensar sobre o desfasamento que isso irá trazer e para os problemas que adaptações forçadas e repentinas poderão trazer. As mentalidades não evoluem à mesma velocidade que as tecnologias. Não só podem ser problemáticos os avanços em si, como podem potenciar situações catastróficas realizadas através de um mau uso dessas tecnologias (sobram em excesso exemplos na história de usos nocivos da tecnologia). As características fundamentais do ser humano que estão a ser postas em causa com estas mudanças irão provavelmente alterar mais do que se prevê na organização da humanidade-nomeadamente os avanços que põem em causa a mortalidade e a singularidade. Se por um lado haverão melhorias e avanços que sem dúvida causarão melhor bem-estar ao ser humano (tais como reabilitação física; cura de doenças precoces), também será inevitável aspetos negativos seja pela adição de situações prejudiciais, seja pela perda de características positivas da humanidade e do mundo – tais como o contacto com a materialidade (virtualização/imaterialização) e outras interações que valorizam a experiência humana. No plano do indivíduo, como já vimos, se por um lado ganha mais liberdade de escolha sobre a sua autoconstrução, por outro está sujeito a mudanças que não pode impedir, decididas e perpetradas por outros num coletivo que pode levar à sua extinção. Torna-se assim um momento de instabilidade, perigoso e decisivo para a humanidade, onde valores morais e éticos têm de ser bem discutidos e aplicados, no sentido de

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prevenir uma irremediável e forçada transformação nociva. Inevitável, também, será repensar o que constitui e representa a ideia de humano em concordância a não-humano e as suas características fundamentais.

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repensar o passado para pensar um futuro:

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