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corpo congénito e degenerativo

II.2 nazareth pacheco

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Figura 6

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1997

Cristal e agulhas de sutura, 90 x 16 x 6 cm

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

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uma fusão dos dois instintos.”28

As temáticas que aborda podem ser vistas como uma transposição para o contexto sociológico da sua experiência pessoal (do individual para o coletivo), onde o lugar do corpo, especialmente o da mulher contemporânea, se torna muito presente. Este inserido num contexto de questionamento dos padrões de beleza vigentes, potenciados, por exemplo, pela cultura de massas (aos quais as mulheres sofrem uma pressão acrescida para se enquadrarem, muitas vezes recorrendo a adornos estéticos ou a cirurgias plásticas). Ainda neste sentido, a autora aborda também várias situações de transformação do corpo feminino, por exemplo em casos como na gravidez ou em processos de prevenção da mesma. Embora os seus trabalhos sejam sobre o corpo, a grande maioria não apresenta uma representação explícita e concreta do corpo. Trata-se de um corpo ausente com uma estética de limpeza aparente. A referência ao corpo é feita, geralmente, através de objetos que estabelecem uma relação com o corpo, normalmente para serem usados por ele ou agirem sobre ele -cadeiras, baloiços, vestidos, colares, instrumentos hospitalares, ou seja, “o corpo visto através dos instrumentos que

são utilizados para examinar seus órgãos, ou para abordá-lo cientificamente”.29

Segundo a artista, esses objetos materializam a ideia de “invasão e manipulação”

do corpo, remetendo para “corpos que foram muito invadidos”.30 Objetos frios,

exteriores ao corpo que o invadem e tocam o seu interior, causando dor.

28. Lisette Lagnado, “Uma Lógica do Adorno,” Catálogo da 24ª bienal de São Paulo-

Nazareth Pacheco, 1998

29. Aracy Amaral, “Espelhos e Sombras,” Catálogo 24ª Bienal de São Paulo- Nazareth

Pacheco, 1998

30. Nazareth Pacheco, Gilete Azul, vídeo, 16 min., realizado por Miriam Chnaiderman, 2003

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Figura 7

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1995

Saca miomas, saca-rolha e borracha, 30x 25 x 3 cm

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

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Figura 8

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1989

Cobre e borracha, 140 x 50 x 2 cm

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

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Figura 9

Nazareth Pacheco

Sem Título, 1994

Espéculos, Coleção mamsp

Imagem retirada de Catálogo 24ª Bienal de São Paulo-

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O trabalho de Pacheco pode ser visto numa perspetiva de busca de

prazer, numa tentativa de viver bem com o sofrimento e prosseguir em vista à sobrevivência, focando-se no “questionamento das normas que definem o bem-estar do organismo”, criando uma “negociação sem fim entre saúde física e saúde mental”31. Nas palavras do pedagogo, médico e crítico de arte Paulo

Cunha e Silva (Beja, 1962- Porto, 2015) os trabalhos da artista “[s]ão sedutoramente repulsivos e repulsivamente sedutores. Por isso, apesar de estranhos, são-nos extremamente conviviais. A história da Dor, do Sofrimento é uma história coletivamente individual. Todos nós sofremos, mas o sofrimento de cada um (podendo ser comunicável) não é partilhável. A artista precipita e clarifica essa

comunicação através da manufatura destes espelhos da dor”.32

No contexto deste relatório de projeto, é de salientar a grande ligação ao contexto médico e hospitalar que o trabalho de Nazareth Pacheco traz ao espetador. Juntamente com essa questão, a ideia de degeneração, dor física e frieza, aliadas à doença e ao sofrimento individual numa situação de sobrevivência. Comunicação de dores pessoais, materializadas e “cristalizadas” em objetos plásticos que surgem de uma experiência pessoal vivida, analisada e posteriormente exteriorizada. Também pertinente comparar, em relação à componente prática deste relatório, a abordagem plástica que vem de uma temática sobre o corpo que não apresenta o mesmo de forma direta, como previamente mencionado.

31. Lagnado, “Uma lógica do adorno”

32. Paulo Cunha e Silva, “Cristais de dor,” Catálogo Galeria Canvas- Nazareth Pacheco, 2000

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No percurso natural de um corpo é esperada uma evolução e

transformação ao longo do tempo que, num processo mais ou menos progressivo, leva à morte. Por vezes esse percurso é “interrompido”/ antecipado por certas doenças ou por fatores externos (ex.: acidentes, acontecimentos). A doença pode levar à morte, em caso último, ou pode limitar o ser (seja limitação física ou mental). Para se refletir sobre a falência do corpo físico, orgânico, podemos separar duas situações distintas: Em caso de doença provisória, leve, passageira, em que é visada uma recuperação total das funções perdidas é feita uma pausa e uma espera; noutra situação diferenciada, no caso de doença aguda prolongada, em que pode ser expectável a recuperação parcial das funções normais do organismo ou pode ser uma situação irreversível. Uma situação em que o organismo se continuará a deteriorar e, eventualmente, levar a uma antecipação/ aproximação da morte – o que pode ser um processo mais ou menos prolongado, mais ou menos sofrido. Em caso de mau funcionamento é necessário, por sobrevivência, tentar resolver o problema. É procurada a cura, a desaceleração para a morte ou melhoramento da vida. O apoio médico/medicina é vulgarmente o caminho para uma solução mais proeminente e o contexto hospitalar é o espaço onde ocorre a recuperação, a espera, mas também a morte. Atualmente, o ser humano comum continua sem conseguir resolver sozinho os problemas de saúde a que eventualmente estará sujeito (até por invalidez

33. Nancy, “Cinquenta e Oito Indícios sobre o Corpo”, 15

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efemeridade e constrangimento

10) O corpo é também uma prisão da alma. Ela expia nele uma pena cuja natureza não é fácil de discernir, mas que foi muito grave. É por isso que o corpo é muito pesado e muito penoso para a alma. É-lhe necessário digerir, dormir, excretar, suar, sujar-se, ferir-se, adoecer.” 32

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por exemplo). É, portanto, uma necessidade recorrer a terceiros (profissionais de saúde) que possam ajudar a reparar o funcionamento do corpo ou tornar mais confortável a existência. Isto implica uma crença no sistema que oferece esse serviço e dar crédito às pessoas constituintes que nele operam. Implica também depositar confiança e entregar o corpo às falhas de outros sujeitos/ corpos. Invasão do corpo por outro corpo- permissão para outro corpo tocar o primeiro. Invasão e Penetração: quando o corpo é tocado em áreas internas que nunca foram “tocadas” por corpos exteriores.

“A rudez da carne surge no corpo que falha, e que o faz porque a carne fica doente ou é tocada pelo não-conhecido não-humano. Quando isto se dá, como invasão da physis na experiência, vivida como sofrimento e como dor, todos os conhecimentos e todos os esforços são convocados para reinstaurar a imagem do corpo, “alma secularizada” que deve impor-se à presença da carne, expulsando-a da visão. O corpo é assim

uma idealização da carne, espécie de outra pele invisível.”34

O constrangimento e a dor provocados no sujeito pela manifestação

ou falha do corpo são sempre processos individuais. A impossibilidade da partilha da dor prende-se com o caso de não ser possível sentir o mesmo que outro ser. Apesar de poder ser representada e comunicável, não é partilhável. Isso torna a dor um processo individual e solitário, embora possa haver empatia e compaixão por parte de um outro. “A dor como

o que mais nos empurra para fora do mundo e para dentro do corpo.”35

A dor atinge a sua dimensão por ser impartilhável o que é garantido pela sua resistência à linguagem36 :

34. Tucherman, Breve História do Corpo e dos seus Monstros, 92 35. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação

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“Physical pain does not simply resist language but actively destroys it, bringing about an immediate reversion to a state anterior to language, to the sounds and cries a human being makes before language is learned (…)”37

Refletir sobre esta questão da falência do corpo (e do constrangimento

adjacente) num sentido mais amplo. Ver a mesma não só num contexto de confronto individual com a falência do próprio corpo, mas pensá-la no contexto da alteridade e inserção sociocultural. Como reagir à questão quando observada num sujeito próximo? A sociedade não está (na sua prioridade) formulada e organizada para corpos/seres disfuncionais que apesar de serem situações naturais, expectáveis, inevitáveis e frequentes não são a ‘norma’. Um corpo de um ser é esperado socialmente que esteja em funcionamento pleno e otimizado- quando está doente é esperada a sua recuperação o mais depressa possível. Segundo Norbert Elias (Breslávia, 1897- Amesterdão, 1990), a sociedade ocidental é marcada por uma geral regulação de “impulsos emocionais” e

por uma “reticência quanto às funções corporais de outras pessoas” 38, Ambas

podem ser vistas como falhas indesejadas de um corpo que não é controlado e otimizado. Isso demonstra uma individualidade inerente e uma frieza quanto ao outro visto de uma forma coletiva, que Elias identifica como sendo uma

“característica dos últimos estágios de um processo civilizacional”.39

É também pertinente contrapor que, apesar das questões acima

Fraser e Monica Greco (Routledge, 2005), 325 37. Ibid.

38. Norbert Elias, “Civilization and Psycossomatics”, The Body: A Reader, ed. Mariam Fraser e Monica Greco (Routledge, 2005), 96

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descritas se focarem numa perspetiva talvez mais negativista, houve uma significante melhoria e avanço civilizacional nesta questão de apoio, inserção e melhoria do corpo disfuncional. Por exemplo, num contexto da natureza animal(irracional) selvagem, indivíduos disfuncionais têm muito menos possibilidades de sobrevivência comparativamente a outros da mesma espécie. Numa outra perspetiva, tendo em conta a evolução tecnológica e civilizacional, Yuval Noah Harari (Qiryat Atta, 1976) chama-nos à atenção para um crescimento de consciência e responsabilidade humanitária, notando que isso se deve ao progressivo desenvolvimento cientifico-tecnológico do último século. Afirma que, no contexto ocidental atual, se há uma falha ( inclusive a morte) é se pensada uma causa para essa mesma e encontrado um responsável, ou é feito um esforço em tentar perceber o que provocou essa falha “técnica” no sentido de a superar:

“Atendendo ao que conseguimos alcançar no séc. XX, se as pessoas continuarem a ser afetadas pela fome, pelas epidemias e pela guerra já não poderemos culpar Deus ou a Natureza. Melhorar as coisas e reduzir ainda mais o sofrimento são objetivos ao nosso alcance. Mesmo as pessoas comuns que não estão envolvidas em investigação científica habituaram-se a pensar na morte como um problema técnico. Quando uma mulher vai ao médico e pergunta se tem algum problema, o profissional de saúde poderá dizer-lhe que tem uma gripe, tuberculose ou um cancro. Mas o médico jamais lhe dirá que o problema dela é a morte. Toda a gente sabe que a gripe, a tuberculose e o cancro são problemas técnicos para os quais talvez um dia seja encontrada uma solução técnica.” 40

Da condição humana fazem parte o erro/falha, a degeneração e a

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inexorável e, até agora, irreversível morte. Pertence-lhe assim uma noção de duração e efemeridade que lhe é indissociável da qual o tempo é agente. Estas condições criam no sujeito um constrangimento e angústia por ser algo para a qual não há concretamente uma explicação, uma falta que as diferentes crenças culturais e religiões vêm colmatar. O medo da ideia de um fim. Harari afirma que, ao longo dos tempos, as religiões mostraram-se bastante tolerantes em relação à morte pois perspetivavam sempre uma existência posterior além da terrena, o que fazia com que não se “[consagrasse] a vida enquanto valor

supremo”.41 Recentemente, como vimos anteriormente, a cultura moderna, a

tecnologia e a ciência propiciam uma abordagem diferente sobre a doença e a morte, tornando-as “um problema técnico que pode e deve ser resolvido”.42 Estas perspetivas possibilitam o sujeito de se libertar das falhas desagradáveis do seu corpo. No seguimento desta ideia, segundo Jean Baudrillard (Reims, 1929- Paris, 2007), “[a]penas no espaço infinitesimal do sujeito individual da consciência a morte adquire um sentido irreversível” e que, portanto, “há que esconjurar esta morte que está por toda a parte na vida, (…) [e] localizá-la num ponto preciso no espaço e no tempo: no corpo”.43 41. Ibid., 33 42. Ibid.

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“15) O corpo é um invólucro: pois serve para conter aquilo que depois há que desenvolver. Desenvolvimento interminável. O corpo finito contém o infinito,

que não é a alma, nem o espírito, mas antes o desenvolvimento do corpo.”44

44. Nancy, “Cinquenta e Oito Indícios sobre o Corpo”, 16

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