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O CORPO PERFORmáTICO LESbIANO FEmINISTA E mASCULINIZADO: ARTE, POLÍTICA, hISTóRIA E

RESISTêNCIA FEmINISTA

O corpo lesbiano feminista e masculinizado não é nem lésbico, nem trans masculino. É performance de gênero. Uma cópia de algo que não existe. Sem desconsiderar a fundamen- tal importância das teorizações sobre a discussão do gênero para o debate sobre as conformações dos rígidos padrões de feminino e masculino, que constituíram os parâmetros de sociedade na qual estamos todas e todos inseridas/os, talvez seja pertinente deslocar o pensamento para além. A compre- ensão de que tanto a cuidadosa fabricação de identidades masculinas em corpos femininos quanto a construção das identidades heteronormativas, na qual se pressupõe atender às demandas por uma relação direta entre corpo, sexo, gêne- ro e desejo, produzem uma imitação da cópia. As análises de Butler (2008) a respeito da performatividade parodística de gênero, realizadas pelas drags, podem fornecer elementos importantes para o que proponho discutir. Para a autora:

[...] no lugar da lei da coerência heterossexual, vemos o sexo e o gênero desnaturalizados por meio de uma

mecanismo cultural da sua unidade fabricada. [...] trata- se de uma produção que, com efeito – isto é, em seu efeito –, coloca-se como imitação. [...] No lugar de uma identificação original a servir como causa determinante, a identidade de gênero pode ser reconcebida como uma história pessoal/cultural de significados recebidos, sujeitos a um conjunto de práticas imitativas que se referem lateralmente a outras imitações e que, em conjunto, constroem a ilusão de um eu de gênero primário e interno marcado pelo gênero, ou parodiam o mecanismo dessa construção (BUTLER, 2008, p. 196-197, grifos da autora).

Com isso, é possível entender que todos os corpos são fabricados em atos performativos que imitam algo que não é real. Não há uma essência no que se refere a identidades de gênero. Toda a construção não é natural, nem dada pela geni- tália ou pelos significados que uma suposta genitália pode de- sencadear. Tudo é performance de gênero. Até mesmo aque- la identidade heterossexual regulada pelo patriarcado e pelo machismo, que se supõe no centro. Até mesmo a identidade que se constitui como mulher ou homem heterossexual pa- dronizada é uma performance.

A desnaturalização de constructos como o próprio corpo (BUTLER, 2008) possibilita pensar que o corpo lesbiano femi- nista masculinizado é fabricado em processos de afastamen- to das normas regulatórias do gênero. Esse corpo é feito arte, política e história. Desafia os limites binários e as fronteiras instituídas para o feminino e para o masculino. Subverte a ordem normativa e se coloca na fronteira da inteligibilidade social do que se pode pensar como gênero. Se (des)identifi- ca no processo de fabricação e coloca em cheque as confor- mações sociais do pensamento generificado e sexuado. É um

corpo que se afasta das classificações e das categorizações. É um corpo que escapa. Desliza por entre as normas de regula- ção do gênero e da sexualidade. E, por isso, causa estranheza, perplexidade, aversão, repulsa... ódio.

E porque não pensar que esse corpo e sua identidade po- dem ser agenciados politicamente para a negociação de polí- ticas públicas específicas? Talvez um dos mais expressivos di- lemas das políticas identitárias, adotadas por segmentos dos movimentos sociais, como o de LGBT, seja a luta por políticas públicas específicas. Afinal, se todas e todos se constituem como pós-identitárias/os e não por uma identidade especí- fica que reclama estar à margem das políticas públicas, todas e todos estão automaticamente inseridas/os nas políticas pú- blicas para a heterossexualidade. Ou seja, a luta política, tão fundamental como a dos movimentos LGBT, torna-se desne- cessária. Mas, é possível compreender sem muito esforço que não é desta forma que as coisas acontecem.

A experiência como Conselheira Nacional de Combate à Discriminação da População LGBT me ensinou que, para ne- gociar com gestoras/es que não compreendem e, muitas ve- zes, não demonstram interesse em entender a necessidade de equidade de direitos ao acesso às políticas públicas, é ainda necessário esquadrinhar identidades específicas. Isto signifi- ca dizer que, em uma mesa de negociação de políticas públi- cas com o Estado, ainda se faz necessário explicar, desenhar e – ai, que preguiça – dizer a verdade sobre seu corpo, sexo, gê- nero e desejo. Diante de gestoras/es que não compreendem o que significa ser lésbica no Brasil atualmente, e, pior, que não estão preocupadas/os em estudar, ler, dialogar e apreender sobre a experiência, é preciso, como afirmamos em nossos coletivos, colocar a buceta na mesa. Assim, considero que a

política identitária tem possibilitado ao movimento LGBT al- guns avanços políticos e algumas tímidas conquistas.

Entretanto, penso que essa assunção das identidades precisa ser agenciada política e performativamente e, não, essencializada. Tenho refletido, com base nas minhas andan- ças pelos coletivos dos movimentos sociais LGBT e feminista que, para ser uma lésbica você precisa atender a alguns crité- rios. Caso não atenda, deflagra-se um processo de exclusão por dentro, uma operação fascista de controle e governo dos corpos e das identidades que acaba por operacionalizar todo o preconceito e a discriminação contra os quais o movimento se propõe a enfrentar. Curioso, não?

O conceito de governo ao qual me refiro compõe o pen- samento foucaultiano na sua analítica do poder. Para Foucault (2012), o poder é da ordem do governo. Não tanto da ordem do combate entre adversários. Segundo Castro (2009, p. 190):

[...] quanto à noção foucaultiana de governo, ela tem, para expressá-lo de alguma maneira, dois eixos: o governo como relação entre sujeitos e o governo como relação consigo mesmo. No primeiro sentido, ‘ele é um conjunto de ações sobre ações possíveis. Ele trabalha sobre um campo de possibilidade aonde vem inscrever-se o comportamento dos sujeitos que atuam: incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, estende ou limita, torna mais ou menos prová- vel, no limite, obriga ou impede absolutamente. Mas, ele é sempre uma maneira de atuar sobre um ou vários sujeitos atuantes, e isso na medida em que atuam ou são suscetíveis de atuar. Uma ação sobre ações’ (apud FOUCAULT, 1994). Trata-se, em definitivo, de uma conduta que tem por obje- to a conduta de outro indivíduo ou de um grupo. Governar consiste em conduzir condutas. Foucault quer manter sua noção de governo a mais ampla possível. Mas, no segundo sentido, é também da ordem do governo a relação que se

pode estabelecer consigo mesmo na medida em que, por exemplo, se trata de dominar os prazeres ou os desejos. (FOUCAULT, 1984) Foucault interessa-se particularmente pela relação entre as formas de governo de si e as formas de governo dos outros. Os modos de objetivação-subjetivação situam-se no entrecruzamento desses dois eixos.

Parece-me que o que se coloca em jogo é a elaboração de uma ontologia crítica de nós mesmas/os, conforme Foucault (1988) demonstrou, a analisar tanto as limitações impositivas criadas historicamente, quanto as possibilidades de escape e de resistência a essas configurações sociais. Isso significa encontrar meios para empreender uma transformação radi- cal de atitude e de posicionamento político diante do mundo, diante de si e das/os outras/os, como sugere a elaboração de Rago (2002, p. 15):

Problematizar a relação estabelecida com o mundo, com [a]o outr[a]o e consigo mesm[a]o parece, assim, condi- ção fundamental para que se possam abrir novas saídas mais positivas e mais saudáveis para o exercício da liber- dade e a invenção da vida.

Se para lutar por políticas públicas específicas e para es- capar do governo dos outros faz-se necessário agenciar uma identidade inteligível, penso que é potencialmente produtivo agenciar. Desde que esta identidade seja modulada e não fixa, essencializada e excludente. Desde que esse se constitua em um processo potencialmente criativo e de deboche e não um processo carrasco que faz de nós algozes de nós mesmas/os.

O agenciamento político identitário de um corpo e de uma identidade lesbiana feminista masculinizada ou de ho- mem trans, nesta perspectiva, é da ordem do governo de si.

Esse se constitui em um processo no qual é fundamental es- tar atenta/o para resistir à normalização e a domesticação. O corpo lesbiano feminista masculinizado ou de homem trans pode ser agenciado politicamente. Mas, não precisa determi- nar o modo de vida de forma compulsória.

O AGENCIAmENTO POLÍTICO DAS IDENTIDADES: