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DAS PRObLEmATIZAÇÕES àS (Im)POSSIbILIDADES Isso faz com que a experiência de ver os filmes e os sen-

tidos que damos a eles sejam não simplesmente volun- tários e idiossincráticos, mas relacionais – uma projeção de tipos particulares de relações entre o eu e o eu, bem como entre o eu e os outros, o conhecimento e o poder (ELLSWORTH, 2001, p. 19).

Os filmes podem instigar inquietações; especialmente nesse filme, inúmeras são as questões às quais podemos pen-

sar e refletir a partir deste artefato cultural. Com este aporte, pretendemos trabalhar no campo das desconstruções e pro- blematizações, tentando nos afastar dos rótulos, das ideias preconcebidas e das verdades constituídas como únicas, uti- lizando de ferramentas e mecanismos de estudos que nos permitem pensar novos caminhos, novas alternativas, a partir dos estranhamentos.

Pensando que os filmes têm uma enorme capacidade de penetrar e imprimir suas ideias nos sujeitos, esses artefatos culturais têm-se apresentado como recursos pedagógicos que servem de instrumentos para a construção de saberes e co- nhecimentos.

Por intermédio da película Madame Satã e seu forte pro- tagonista, pode-se evidenciar alguns aspectos importantes, a saber: Satã embaralhava a noção sobre qual seria o comporta- mento apropriado para um cara malandro do bairro da Lapa no Rio de Janeiro e assim o tornava queer5 em suas atitudes,

performances e posturas diferentes ao que era esperado. O nome do filme está relacionado ao apelido de João Francisco dos Santos, o Madame Satã, e esse é o nome que sintetiza muitas das possibilidades desse personagem. Ma- dame pode nos lembrar o feminino, sofisticado, delicado, importado da França, e o Satã, que nos remete ao masculino, violento, destrutivo, demoníaco.

5 Movimento político e teórico ligado aos estudos gays e lésbicos. A teoria queer am- plia a crítica feminista da identidade de gênero e sexual hegemônica (masculina e heterossexual), radicalizando a ideia de que a identidade é sempre instável e precária (SILVA, 2000).

Outras personagens também fogem dos enquadres6:

Laurita é mãe, é prostituta, e Tabu é covarde, mas também é corajosa. Eles subvertem o esperado, o padrão, a norma, e adotam uma estratégia de sobrevivência.

A teoria queer instiga-nos a repensar, a nos aproximar desse mito Madame Satã, considerando a reflexão de Silva (2011, p. 107):

O que eu faço num determinado momento pode ser in- teiramente diferente, até mesmo o oposto, daquilo que faço no momento seguinte. É aqui que o travestismo, a mascarada, a drag-queen tornam-se metáforas para a possibilidade de subverter o conforto, a ilusão e a prisão da identidade fixa. A identidade, incluindo a identidade sexual, torna-se uma viagem entre fronteiras.

Era uma figura que desafiava a todos, policiais, conhe- cidos, amigos/as e parceiros, tanto no sentido de estranho e diferente, quanto no de alguém que transgredia e resistia às classificações. E, ainda, a postura máscula e forte de João Francisco dos Santos, o negro e viril sujeito que dá vida à Ma- dame Satã e que nos lembrava no filme sempre que era insul- tado de alguma forma “Eu sou bicha porque eu quero e não deixo de ser homem por causa disso não”. Dessa maneira, o personagem escapava às classificações.

O filme nos faz viajar e nos permite pensar sobre a forte inscrição dos gêneros:

6 Na nomenclatura do sociólogo inglês Basil Bernstein, refere-se ao grau e controle do docente relativamente ao ritmo e às formas do processo de transmissão. Quanto maior o controle exercido pelo docente, maior o enquadramento. Assim, num currículo com alto grau de enquadramento, o docente controla totalmente o que será transmitido ao aprendiz, quando, e em que ritmo (SILVA, 2000, p. 49).

[...] feminino ou masculino — que ainda impera nos corpos, sempre, considerando uma determinada cultura e, portanto, com os marcadores dessa cultura. Além das possibilidades da sexualidade e das maneiras de expressão dos prazeres que também são socialmente instituídas e cifradas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade (LOURO, 2010, p. 6).

Aquele homem forte trabalhou muitas vezes na Lapa como segurança de casas noturnas e cuidava para que as me- retrizes não fossem vítimas de estupro ou agressão. Foi con- temporâneo e amigo de artistas famosos, como Noel Rosa, Francisco Alves, Ismael Silva e Heitor dos Prazeres. Há ru- mores de que a música Mulato Bamba, de Noel Rosa, foi feita para ele.

Não se escondia e buscava a inserção em locais frequen- tados pela elite carioca, mesmo quando algum segurança ten- tava impedir sua entrada, como numa passagem do filme em que Madame Satã e Laurita tentam assistir a um espetáculo num espaço que parece o teatro municipal no centro do Rio de Janeiro e o segurança diz “Aqui não entra puta nem vaga- bundo” e, então, Madame Satã utiliza sua habilidade como capoeirista e coloca todos para correr.

Anos depois, reapareceria para muitas pessoas como um antecessor das reivindicações do movimento negro e movi- mento gay.

[...] a partir do século XX, no qual as cidades e as in- dústrias cresciam, as comunicações se davam com mais facilidade em virtude da difusão do rádio, do te- lefone e da imprensa, das ferrovias e dos automóveis.

Movimentos populares exigiam uma gama variada de direitos que visavam maior igualdade entre as diferen- tes categorias sociais, assim como entre homens e mu- lheres e algumas comunidades negras também passa- ram a reivindicar espaço nessa sociedade que buscava mantê-las numa situação de inferioridade e marginali- dade (SOUZA, 2008, p. 125).

A audácia e a petulância de Madame Satã eram, de fato, sua marca maior; reivindicava, brigava por seus direitos, não se limitava a ser alguém apontado e rotulado por outras pesso- as, mas, se permitia em seus desejos e prazeres. Não se deixava encaixar na posição de inferior e marginalizado, não se cala- va diante de maus-tratos, fazia valer a sua voz, exigia respeito, quebrando o silêncio. Satã não levava desaforos para casa.