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A ImAGEm DA mULhER NEGRA bRASILEIRA COmO UmA bIOImAGEm

O cinema é uma tecnologia midiática, um dispositi- vo produtor de imagens que adquirem, de certo modo, vida própria, e passam a representar indivíduos que podem ser considerados estereótipos, ou seja, que existiram uma única ou nenhuma vez na realidade que conhecemos socialmente. Além destes indivíduos, as imagens cinematográficas podem produzir representações de coletivos, classes, categorias, de tipos sociais ou imaginários.

Assim, quando vemos mulheres negras representadas no cinema, podemos vê-las a partir dessas personagens fe- mininas negras e a partir delas realizar um complexo traba-

lho de identificações e diferenciações que produzem uma imagem viva, uma bioimagem que, segundo Mitchell (2011) adquirem vida própria e passam a existir e a atuar no mundo imaginário e real de forma quase independente.

A personagem (imagem) cinematográfica é mais que uma imagem técnica, é um dispositivo simbólico, mas, além de tudo, é, também, tudo aquilo que provoca e implica como ser vivente que interpela e interage com todo o demais.

Mesmo quem nunca foi ao cinema será de certo modo afetado por seus dispositivos-imagem e não apenas através daqueles que assistiram à exibição. Somos envolvidos por imagens vivas já deslocadas de seus contextos ontológicos, midiatizadas das mais diversas formas. Uma bioimagem ga- nha vida tanto através de sua propagação midiática quanto de sua acreditação no mundo real.

A imagem cinematográfica de uma mulher negra brasi- leira, por exemplo, que o cinema nacional tornou célebre é

Xica da Silva, de Cacá Diegues. Não seria a primeira vez que

uma personagem negra feminina tenha tido participação im- portante na história do cinema no Brasil, mas foi a imagem que, de certa forma, correspondeu à ideia mais corrente, até então, do que era a imagem da mulher negra no imaginário nacional. Ao usar o próprio corpo para galgar os degraus da fama, não o fez como através de uma arte exógena, mas en- dógena, o poder exercido sobre o homem branco através das artes do corpo, e mais propriamente, da sexualidade.

A invenção da mulata, por exemplo, faz parte de um con- junto de estereótipos criados ou cultivados pela arte e a tec- nologia cinematográfica permitiu a concepção concreta desse estereótipo a partir de Xica da Silva, primeiro através da tele-

visão, depois do cinema e, posteriormente, e novamente, pela televisão. A ideia ainda carnavalizada do corpo da mulher ne- gra, fruto de uma disposição quase geral, incluindo as próprias mulheres negras, é cultivada longamente, mesmo que adqui- ram sentimentos e representem personagens que lutam pelos seus direitos, o corpo negro feminino ainda carrega as cores da sexualidade assanhada e exposta, em detrimento de outras características femininas. A razão da força para este estereóti- po ser tão forte está justamente em seu contrário, na repressão cultural à sexualidade feminina de modo geral, o que vai gra- dativamente perdendo as forças no sentido em que a imagem da mulher, em geral, assume cada dia mais esse papel erótico.

A cultura machista branca, excludente, dominante no Brasil possibilita que a imagem sensualizada da mulher negra brasileira se reproduza como um clone (MITCHELL, 2011). Modelo que não deveria se aplicar ao Brasil, uma vez que nos- sa população componha uma espécie de degradê de cores que vão do branco caucasiano ao negro africano, e seus sujei- tos deslizam por uma palheta sem fim de colorações.

Ao observar o cinema como uma tecnologia, pode-se perceber que a calibragem técnica da captação de imagens e sons para uma personagem branca é diferente da calibragem que se supõe como exigência para captar imagens de indiví- duos negros.

A definição de posições subjetivas e políticas que, atra- vés da tecnologia, dão vida, clonam bioimagens que identi- ficam desde a crença superada do mito da democracia racial brasileira até a falsa ideia de descolamento de uma produção cinematográfica negra capitalista, sendo o cinema uma mer- cadoria, o cinema negro, a imagem da mulher negra é uma imagem viva que se vende como mercadoria.

Segundo Hall (2006, p. 75-76):

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo merca- do global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens in- ternacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identida- des se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente. Somos confrontados por uma gama de dife- rentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou me- lhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de supermercado cultural. No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e distinções culturais, que até então definiam a identida- de, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca inter-

nacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como

homogeneização cultural (grifos do autor).

Juntando os pontos, pode-se compreender que a própria identidade seja uma bioimagem ou uma mercadoria da qual nos dispomos como numa economia das trocas simbólicas (BORDIEU, 2005). Assim, é impossível escapar de uma per- cepção mercantil quando se fala em representação, em dispo- sitivos simbólicos, pois ambos foram por demais apropriados pela indústria cultural para serem ignorados como tal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, ao se compreender o cinema como uma tecnolo- gia que produz representações, neste caso, de uma mulher ne- gra, é perceber o filme como um objeto que revela a condição

humana desta mulher, a partir de suas imagens, de suas re- presentações. O cinema pode ser percebido, então, como um grande dispositivo produtor de simbólicos que envolve tanto o aparato tecnológico e a poética dos elementos linguísticos e artísticos, mas também elementos antropológicos, sociológi- cos, históricos, políticos e culturais. Enfim, todos os elemen- tos que permitem configurar uma identidade à essa mulher negra, mesmo provisória e cambiante. O cinema, como tec- nologia, para ser composto demanda uma série de ações inte- lectuais e operacionais, representações, sistemas simbólicos, regimes escópicos, estratégias e mecanismos que reúnem, a um só tempo, tecnologia e estética, linguagem e ética, história e subjetividade, num amálgama de significações do que seja uma mulher negra, do que a identifica e diferencia.

A linguagem cinematográfica possibilita produzir uma imagem através da qual se pode buscar compreender quem seja esta mulher negra assim representada, mesmo que cons- trangida a um estereótipo. Essa mulher exposta sob a forma de uma narrativa faz vislumbrar uma certa universalização man- tendo sua imagem em permanente estado de potência, redi- mensionando suas significações subjetivas e afetividades ma- teriais e imateriais.

REFERêNCIAS

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cinema, télèvision, littérature. Lausanne: L’Age d’Homme, 2011. AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2003.

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POR UmA ANTROPOLOGIA SIméTRICA: