• Nenhum resultado encontrado

SObRE O CORPO E O AGENCIAmENTO POLÍTICO IDENTITáRIO

Leonete Maria Spercoski Ribas2

INTRODUÇÃO

Neste texto analiso alguns atos performativos (BUTLER, 2008) do corpo lesbiano feminista masculinizado e/ou tran- sexual masculino que provocam o desejo de governo dos ou- tros, de encaixe e de definição pela sociedade, por meio de suas normas regulatórias de gênero e sexualidade.

Inicio apresentando quatro atos os quais experienciei em minha trajetória e que me provocaram a pensar sobre a necessidade que a sociedade contemporânea tem de gover- nar e definir nossos corpos cotidianamente.

1 Uma versão desse texto foi apresentada no I Seminário Internacional (Des)fa- zendo Gênero, no grupo de trabalho intitulado Olhares feministas sobre a arte, o corpo e a política, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no período de 14 a 16 de agosto de 2013.

2 Articuladora Estadual da Liga Brasileira de Lésbicas – LBL. Articuladora Nacio- nal da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL), até 2013. Idealizadora do Instituto de Pesquisa e Formação Frida Kahlo.

Na primeira parte do texto apresento uma análise teóri- ca sobre as condições de possibilidades históricas pelas quais a pergunta sobre a normalidade pode ser feita pela primeira vez na história. Questiono também o porquê de meu corpo e minhas perfomances de gênero despertarem nos outros o desejo de governo.

A segunda parte analisa as diversas construções conceitu- ais do gênero a partir de elaborações de teóricas feministas im- portantes. Detive-me mais às teorizações de Butler (1998; 2000; 2008) nessa parte do texto por me identificar com suas concep- ções teóricas e ofereço uma provocação a qual denominei de deboche, porque intencionalmente se ri das normas de gênero.

Na terceira parte, abordo a possibilidade de um agencia- mento político das identidades para a tão necessária luta por políticas públicas específicas, protagonizada pelos movimen- tos sociais de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexu- ais (LGBT), do qual faço parte. Não entendo identidade agen- ciada politicamente como essência. É importante escurecer. Na minha análise, quem tem essência e fixação é perfume...

A quarta parte apresenta uma possibilidade de se des- locar o pensamento a partir das teorizações queer. Propo- nho que pensemos em (des)identidades sexuais e de gênero como forma de escape às estratégias de regulação de gênero e sexualidades vigentes em nossa sociedade contemporâ- nea e para forjar uma rede de inteligibilidade para as me- sas de negociações de políticas públicas específicas. Afinal, sabemos nós, ativistas dos movimentos sociais organizados, que quase sempre essas negociações não são tranquilas com gestoras/es que desconhecem as experiências de gêne- ro para além das normas regulatórias e que têm um colapso

nervoso quando se deparam com corpos que colocam suas certezas em cheque – como o meu – será que é mulher ou homem?...

1º Ato

Não adianta você dizer que você não é trans! Olhe para você! Olha para a sua perna peluda, para a sua roupa masculina, para o seu jeito de bofe... Sua identidade é masculina. Meia hora de conversa com você e tenho cer- teza de que você vai se reconhecer um Homem Trans!!! (Carla Amaral – Liderança do movimento de Travestis e Transexuais do Paraná, Curitiba, 2010).

2º Ato

Você é um bofe lindo! Tinha que ser meu! Não posso te ver, fico doida! Por que você tem que ser lésbica? (Cho- pelli – Liderança do movimento Nacional de Travestis e Transexuais, Brasília, 2011).

3º Ato

Lésbica masculinizada entra no Aeroporto de Brasília e pergunta à servidora da limpeza: _ Onde fica o banheiro feminino, por favor? A servidora responde com a locali- zação do banheiro. A lésbica entra no banheiro e, logo em seguida, é surpreendida por batidas fortes na porta e com uma voz grave que diz: _ Vamos cara! Você entrou no banheiro errado, saia já daí! A lésbica abre a porta e indaga: _ Olha, acho que está havendo algum engano. O segurança do aeroporto reafirma que ela teria que acom- panhá-lo. Neste momento, a lésbica estufa o peito e afir- ma, com veemência: _ Está havendo algum engano, com certeza! O segurança, então, repara no volume dos seios, olha para a servidora da limpeza e sai, sem ao menos um pedido de desculpas. As pessoas em volta que acompa- nharam a confusão, com um olhar acusatório, se afastam (Brasília, 2010).

4º Ato

Mesa de Sujeitos3 do II Encontro Estadual de Educação

LGBT, curso de formação continuada, ofertado pela Se- cretaria de Estado da Educação do Paraná – SEED, Coor- denação da Educação das Relações de Gênero e Diversi- dade Sexual – CERGDS, em parceria com a Liga Brasileira de Lésbicas – LBL para professoras/es da Rede Estadual de Educação Básica do Paraná. Lésbica masculinizada faz sua apresentação sobre a sua experiência escolar. Logo em seguida, a mulher transexual faz a sua fala. Am- bas abordam a questão da utilização do banheiro escolar, defendendo que a identidade de gênero e o direito ao uso do banheiro escolar devem ser respeitados. Ao final de todas as falas, os sujeitos desfazem a mesa e circulam pe- los espaços do curso, dialogando com as/os professoras/ es em relação as suas dúvidas. Então, a lésbica masculi- nizada é surpreendida por um grupo de professoras que dizem: _ Nós achamos super estranho uma lésbica mas- culina no banheiro feminino. Por que, ah, sei lá né? Ela pode querer agarrar a gente à força. Já a trans tudo bem, né, porque ela é uma mulher. A gente está vendo! (Pontal do Paraná, 2011).

Os quatro atos relatados aconteceram comigo, em mo- mentos diferentes da minha experiência de lesbianidade masculinizada ou seria de homem trans? Essas situações, 3 A metodologia denominada Mesa de Sujeitos foi idealizada pela professora

mestra Dayana Brunetto Carlin dos Santos e, de acordo com a sua definição: “É uma mesa de contra discursos hegemônicos, pois neste momento, os sujeitos historicamente discriminados: lésbicas, transexuais, travestis, transgêneros, bis- sexuais, gays, mulheres feministas, mulheres negras e Yalorixá do Candomblé, assumem uma posição de docentes de um curso de formação de professoras/es e relatam suas experiências escolares de exclusão, preconceito e discriminação. É um momento bem interessante, porque professoras/es que só conhecem esses sujeitos, muitas vezes pela televisão, em tempos de Parada LGBT ou do Carnaval, de uma forma estereotipada, podem conversar e olhar nos olhos dos sujeitos, o que, de certa forma, humaniza e materializa a discussão” (SANTOS, 2010, p. 29).

dentre tantas outras corriqueiras na minha experiência, ins- tigaram-me aos questionamentos que pretendo desenvolver neste texto. Frequentemente, alguém ou alguma instituição quer definir o que sou, com base no meu corpo e na minha performance4 de gênero. Lésbica feminista masculinizada

ou Homem Trans? O mais curioso é que eu mesma/o, fun- damentada nas leituras que tenho feito e analisando o meu modo de vida, não acredito em definições fixas, estáticas ou definitivas. Por que tenho que me encaixar em uma das defi- nições? Por que meu corpo desperta esse desejo de governo?