• Nenhum resultado encontrado

4 SBE como Estruturação

5 SBE como Experiência

5.1 Cotidiano, trajetos e subjetividades

Para compreendermos as relações entre as mobilidades pessoais dos usuários e seus processos de subjetivação partiremos do entendimento já desenvolvido anteriormente de que esta subjetividade se constrói em um campo de forças sociais que interagem sobre o usuário e se expressam, entre outras dimensões, nas suas escolhas relacionadas às mobilidades pessoais. Tais forças sociais se materializam em práticas voltadas para permitir deslocamentos eficientes nos espaços urbanos, já que os transportes não são um fim em si, mas antes uma mediação pela qual as pessoas, agenciadas, se dirigem aos locais onde realizam suas atividades diárias. Especificamente, “da mesma forma que uma determinada mercadoria se movimenta entre produtores e consumidores, também as pessoas precisam circular entre residências e locais onde se desenvolvem atividades de trabalho, de educação...” (PEREIRA, 2007, p. 9). E a mobilidade como um atributo da cidade possui condicionantes, modelos de desenvolvimento econômico, modos de apropriação do espaço e recursos tecnológicos que conferem características próprias aos sistemas de transporte urbano que tornam possível aqueles deslocamentos.

Como vimos, o ser contemporâneo é um ser em fluxo, seu cotidiano se organiza em uma rede de mobilidades físicas e virtuais, já que mover-se, cada vez mais, se estabelece

como valor dominante no capitalismo conexionista, contexto dos processos de subjetivação atuais. A aproximação com as mobilidades pessoais dos usuários requer que examinemos os espaços no qual eles se deslocam, bem como os deslocamentos que experimentam neste espaço. No nosso caso, a Região Metropolitana do Recife.

Vimos que se trata de uma Região em crescimento, pólo de desenvolvimento e alvo de investimentos públicos e privados. Tal contexto tem impulsionado a demanda por deslocamentos, o que por sua vez aumenta a aquisição e utilização de automóveis – dentro do modelo hegemônico de transporte urbano –, prejudicando cada vez mais a mobilidade da região à medida que o aumento do número de automóveis nas ruas é incompatível com as infraestruturas disponíveis. Acrescente-se a isso a alta densidade populacional, o traçado urbano originalmente composto de ruas estreitas e prédios antigos, o fato de ser uma região formada por ilhas, ser cortada por diversos rios e depender de várias pontes para o escoamento de fluxos intensos de veículos.

Além disso, tendo retomado o crescimento nos últimos anos, a Região apresenta, ainda, sérios problemas sociais como desemprego e concentração de renda – com um terço da cidade, aproximadamente 500 mil pessoas, residindo de forma precária em morros e sem acesso a maioria dos meios de transporte –. Tais informações foram já detalhadamente apresentadas no Capítulo 1 deste trabalho. A mobilidade da Região Metropolitana do Recife é fortemente condicionada pelos aspectos socioeconômicos e espaciais já apresentados, que contribuem decisivamente para as definições acerca dos trajetos diários de cada usuário, na medida em que constituem a estrutura e os serviços do sistema de transporte público de passageiros.

A perspectiva da mobilidade como experiência considera as escolhas diárias diante das múltiplas possibilidades disponíveis aos indivíduos. Constitui-se, assim, uma mão dupla de condicionamento na qual nossa experiência diária da mobilidade está ligada aos significados da mobilidade esabelecidos e aos seus processos de ressignificação. Ao mesmo tempo, tais significados estão ligados às formas pelas quais praticamos e incorporamos a mobilidade. Kellerman e Paradiso (2007), em seu estudo sobre os impactos da era da informação na definição dos espaços geográficos, também apontam para a importância do fator socioespacial e para o papel desempenhado por políticas públicas, cuja intervenção no espaço influencia as oportunidades de mobilidade promovidas tanto para cada pessoa como para a região como um todo. Tais características pessoais e regionais criam uma teia de possibilidades a partir das quais as mobilidades pessoais são configuradas.

Para compreendermos o modo como ocorre esta configuração partimos do modelo proposto por Kellerman (2006) acerca dos padrões de mobilidades pessoais, conforme Anexo F. Isso porque o autor aborda não apenas as necessidades e motivações relacionadas às decisões diárias sobre mobilidade e fixidez, mas o faz levando em consideração as forças sociais como fatores que constituem as decisões e podem proporcionar novas formas de mobilidade. Além disso, o autor reforça a importância de definir padrões a partir de uma perspectiva geográfica que privilegie as dimensões de frequência e destinos da mobilidade, tarefa desempenhada nesta etapa da tese.

A abordagem de Kellerman (2006), que contempla tanto as escolhas pessoais como forças socioeconômicas e espaciais, reforçando a utilização de padrões que ajudem a compreender as escolhas dos usuários a partir de seus trajetos, foi importante para esta etapa do trabalho. A contribuição decisiva, contudo, temos quando o autor afirma que “decisões sobre movimentos pessoais refletem o complexo pessoal, social e econômico da fixidez e mobilidade” (KELLERMAN, 2006, p. 48, tradução nossa). Com isso, considera que as mobilidades pessoais apontam também para as múltiplas posições que as pessoas ocupam no campo social. Tais posições estão presentes nas decisões tomadas em relação à mobilidade, desde sobre se movimentar, a direção e frequência dos movimentos e os modais a serem utilizados. Nesse sentido podemos relacionar os processos de subjetivação às circunstâncias de como se movimentar.

Como apresentamos no Capítulo 2, Kellerman (2006) enfatiza a importância de se definir tipos de mobilidade a partir dos vários padrões que emergem dos trajetos cotidianos. Tais definições, além de partirem de uma perspectiva geográfica, acentuam duas dentre várias dimensões: a frequência dos movimentos e seus destinos (KELLERMAN, 2006, 2011). A partir dos tipos definidos pelo autor, já abordados, consideramos os objetivos e as características de nosso estudo para chegarmos a quatro categorias básicas de movimentos: o movimento pendular; os movimentos circulares rotineiros, os movimentos circulares ocasionais e os movimentos rizomáticos. A seguir apontaremos as características de cada uma dessas classes de movimentos.

Os movimentos pendulares são aqueles deslocamentos repetidos, de ida e volta, para o trabalho e/ou para a escola, em um padrão geral casa-trabalho-casa/casa-escola-casa. Tais movimentos estão na base da produção e reprodução econômica e também da vida social,uma vez que por meio deles os trabalhadores e estudantes se dirigem diariamente ao seu local de trabalho ou estudo, espaços de produção e formação. Por sua abrangência, os movimentos

pendulares representam um elemento central para a compreensão da mobilidade dos centros urbanos.

Além desse, Kellerman (2006, p. 46, tradução nossa) aponta a possibilidade de delinearmos outros tipos mais complexos de movimento, como por exemplo, “trajetos físicos com múltiplos propósitos ou múltiplos destinos, tais como fazer compras no caminho do trabalho para casa.”, além de afirmar noutro estudo que “outras combinações entre circularidade e direcionalidade também são possíveis” (KELLERMAN, 2011, p. 732, tradução nossa). Estes movimentos são motivados por vários fatores, destacando-se por serem mais flexíveis às escolhas dos usuários diante de possibilidades apresentadas por cada circunstância. Por exemplo, Kellerman (2011, p. 735, tradução nossa) defende que em qualquer população,

podemos identificar três categorias principais em relação à escolha entre mobilidades corporais públicas e privadas: há aqueles que sempre prefeririam a liberdade de ler e descansar oferecida pelo transporte público, há outros que sempre prefeririam dirigir seus próprios carros, enquanto que um terceiro grupo curte justamente a escolha entre os dois modos de mobilidade, fazendo uso dos dois modos dependendo das circunstâncias.

Tais movimentos circulares, diferentemente dos pendulares, possuem repetições menos frequentes e são muito mais variados quanto aos destinos e atividades desempenhadas pelas pessoas. Os movimentos pendulares, em comparação, apresentam muito menos variedade, disciplinados que estão pelos agenciamentos do capital, enquanto que os demais, ainda que motivados por forças sociais, costumam ser mais flexíveis e permeáveis a decisões pessoais relacionadas a oportunidades e conveniências.

Adaptando as categorias de Kellerman (2006), classificamos estes movimentos como circulares rotineiros, circulares ocasionais e rizomáticos. São movimentos circulares devido à partida e retorno a um mesmo ponto de origem – geralmente, mas não somente, a própria moradia –. Sua classificação como rotineiro ou ocasional depende da frequência com que ocorre. Movimentos sem ocorrência previsível, que não se repetem ou muito pouco frequentes, podem ser denominados como ocasionais. De modo geral, são motivados por necessidades pontuais, uma urgência de saúde ou de manutenção do carro podem ser exemplos. Diferentemente, os movimentos circulares rotineiros se repetem com frequência e geralmente é possível prever quando essas repetições ocorrerão – como visitas semanais a parentes, por exemplo – ou, têm uma probabilidade grande de se repetir, mesmo que dias ou datas específicas não tenham sido marcadas com antecedência – como ir ao supermercado para abastecimento do domicílio, pagamentos. É necessário ressaltar que em todos estes casos

que caracterizam movimentos circulares, sejam rotineiros ou ocasionais, as forças sociais que constituem as necessidades motivadoras são diferentes, em termos de estruturação e disciplinamento, daquelas que motivam os movimentos pendulares.

Por fim, os movimentos rizomáticos, não são movimentos circulares, mas deslocamentos caracterizados como desvios introduzidos nos movimentos pendulares ou circulares, na forma de “saídas da rota” de modo a realizar, de maneira planejada ou como oportunidade, algumas das atividades de manutenção do domicilio, cuidados pessoais ou atividades sociais.

De modo a conhecer como o VEM Trabalhador e o VEM Estudante se integram aos padrões de mobilidade de seus usuários, apresentamos a seguir uma síntese dos movimentos, seus padrões e motivações obtidos com base no monitoramento dos trajetos e entrevistas pessoais.