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1.1 SBEs, sistemas de transporte e mobilidade urbana

1.2 Discursos, tecnologias e subjetivação

Os atuais significados dominantes relacionados à mobilidade urbana e aos sistemas de transporte se constituíram sob hegemonia das indústrias automobilística e petrolífera, tendo como sustentáculo a produção de uma cultura da automobilidade privada. Como força capitalista estruturadora da economia, tais indústrias forjaram um espaço urbano resultante, por um lado, de políticas de favorecimento do automóvel e, por outro, de baixos investimentos transportes públicos e falta de incentivos a outros modais que não os rodoviários motorizados.

Diante dos evidentes limites deste modelo, observamos a proliferação de discursos críticos, articulados por organizações públicas e privadas, associações civis, movimentos sociais, uma vez que as questões relacionadas à mobilidade urbana e suas infraestruturas dizem respeito aos mais diversos setores da sociedade. Tais discursos buscam atribuir novos significados à mobilidade urbana propondo mudanças estruturais nos sistemas de transportes. Nesse processo, tais agentes estabelecem alianças a partir da convergência entre suas demandas neste campo de disputas, como postula a teoria do discurso de Laclau e Mouffe (2006).

Vale lembrar que os discursos em disputa não se apresentam em blocos monolíticos, ao contrário, podem apresentar alinhamentos, parciais e provisórios, na medida em que estão pautados em objetivos delineados em contextos específicas. Naturalmente, não temos a pretensão de elencar nesse estudo todos os discursos, mas sim trazer elementos que ajudem a problematizar os sentidos naturalizados nos sistemas de transporte e na mobilidade urbana.

O discurso em defesa dos transportes públicos se faz presente nas grandes cidades brasileiras apontando para a necessidade de investimentos no setor, de modo a ampliar sua oferta e melhorar a sua qualidade. Atualmente, dentro deste debate, o modelo VLT, os veículos leves sobre trilhos e os BRTs, ônibus de transporte rápido, além do modelo dos trens metropolitanos (METRO), são exemplos de alternativas que disputam a primazia nos investimentos atualmente direcionados à expandir o transporte público nas grandes cidades.

Vale lembrar que a defesa da radical substituição dos modais, como ocorreu nos casos já abordados, da hidrovia pela ferrovia, ferrovia pela rodovia, tem sido abandonada em direção às posições que expressam interesses pela complementaridade entre as modalidades, ou a chamada intermodalidade (MARTINS; CAIXETA FILHO, 1998; CABRAL, 2012; AROUCHA, [2012?]). O que não significa a ausência de disputas, a partir do entendimento de que os agentes buscam ampliar seus espaços sobre os concorrentes para tornarem-se hegemônicos.

Ainda no contexto do pensamento crítico ao modelo dominante, encontramos os discursos que emergem do campo das disputas ambientais. De modo geral, envolvem interesses ligados à substituição de matrizes energéticas, como a defesa do uso de fontes renováveis e a migração para as energias limpas em substituição aos combustíveis fósseis, de modo a reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Temos aqui uma pluralidade de posições em disputa, relacionadas a interesses nos setores de tecnologias, agronegócio, indústria petrolífera, indústria de produtos e serviços mitigadores de danos e suas respectivas cadeias produtivas.

O grau de radicalização dos discursos em defesa dos transportes públicos e questões ambientais irá aproximá-los das posições mais ou menos restritivas à automobilidade privada. Nesse leque, encontramos a defesa de ações restritivas ao uso de veículos particulares, em especial dos automóveis, de modo a aliviar as infraestruturas saturadas pelo número de carros em circulação. Seja por meio de políticas de tributação, tais como os pedágios urbanos, tributação sobre a propriedade de automóveis e consumo de gasolina, ou ainda a políticas de restrição à circulação desses veículos, por meio de zoneamentos, rodízios, supressão das vagas para estacionamento, entre outras.

Nessa direção, encontramos a defesa de políticas voltadas para a viabilização dos modos de transporte não motorizados em vias públicas. Com a predominância dos meios motorizados, as bicicletas, por exemplo, passaram a ser desconsideradas como modal de transporte. Como consequência, os modos não motorizados compartilham as vias com os modos motorizados em situação de desvantagem, sem condições de segurança e, principalmente, sem o devido respeito por parte de motoristas, já que são vistos como intrusos. Tais discursos criticam a apropriação privada do espaço público e defendem formas mais equitativas de uso das vias públicas nas grandes cidades.

Ainda na linha do pensamento contra-hegemônico, temos a defesa de mudanças estruturais no espaço urbano e na concepção de cidade, fundamentadas em novos modelos de

metrópoles. Por exemplo, com a demanda por um reordenamento urbano que reduza a necessidade de viagens motorizadas. De acordo com Affonso (2001), ações nesse sentido deveriam buscar o cumprimento da função social da cidade, sendo que um dos aspectos refere-se à coibição da especulação imobiliária e ao desenvolvimento de políticas públicas para a construção e ocupação dos imóveis.

Os Sistemas Inteligentes de Transporte, entre os quais os SBEs, como vimos, têm sido relacionados à busca pela eficiência das infraestruturas de transporte existentes. Com suas promessas de inteligência, velocidade, controle e segurança integram o discurso dominante da tecnologia nos sistemas de transporte. De modo geral, este discurso se ancora em uma visão instrumentalista, que significa os artefatos tecnológicos como portadores “naturais” de progresso e bem estar. Apesar de bastante difundida no senso comum, nossa perspectiva teórica considera que trata-se de uma visão ingênua acerca da natureza da tecnologia. Isso porque os sistemas tecnológicos são sistemas socialmente construídos, por processos de significação, que por sua vez caracterizam-se por uma disputa por significados relacionados aos sistemas de tranportes e a mobilidade.

Com base na teoria do discurso podemos dizer que os sistemas tecnológicos, sendo sistemas discursivos, participam da constituição do social. Um dos modos mais diretamente observáveis de como isso ocorre é por meio da atribuição de identidades sociais, personificadas nos cartões de identificação dos sistemas de bilhetagem. Cartões estes que posicionam os usuários, interpelando-os e produzindo subjetivações, ao participarem da constituição de suas mobilidades. Na perspectiva discursiva, as identidades emergem da articulação de elementos significantes de sistemas históricos, contemplando qualquer prática relacional (LACLAU; MOUFFE, 2001). No mundo contemporâneo, as identidades se tornaram algo complexo e plural, o sujeito passa a ter várias posições e estas influenciam em suas identificações (MOUFFE, 2003).

Mas como os sistemas tecnológicos podem participar dos processos de subjetivação? Uma das suposições centrais nos trabalhos de Gilles Deleuze e Felix Guattari, Michel Foucault, Louis Althusser é de que a subjetividade não é algo a priori, mas sim uma construção que ocorre no campo de forças sociais e, ainda para a qual, o modo como se caracteriza cada formação social possui importantes implicações. Na contemporaneidade, o ser é um ser em fluxo, seu cotidiano se organiza em torno de uma rede de deslocamentos, por meio dos sistemas de transportes que lhes são acessíveis, este é o atual contexto onde ocorrem os processos de subjetivação.

Temos então que, por um lado, agentes sociais produzem os sistemas de bilhetagem eletrônica, e suas configurações de utilização; por outro lado, o sujeito, usuário do sistema, é interpelado pelas posições estabelecidas pelo sistema, que passam, assim, a constituir suas rotinas diárias no que se refere às mobilidades pessoais. Esta constituição poderá ocorrer de diversos modos, pois as configurações tecnológicas são um campo em aberto, cujo fechamento se dará a partir das articulações dos agentes envolvidos. Assim, neste trabalho, defendemos que os sistemas de bilhetagem eletrônica são sistemas discursivos, que posicionam os sujeitos com base nos cartões que estabelecem para seus usuários e deste modo participam dos seus processos de subjetivação.

Os cartões de identificação têm sido cada vez mais requeridos nas atividades rotineiras, caso não apenas dos cartões do sistema de bilhetagem, mas também dos cartões de crédito, carteiras de estudante, cartão do SUS, como também para a inclusão em programas sociais do governo federal, tais como bolsa-família e outros. Nas últimas décadas, como aponta (KANASHIRO, 2009), os cartões de identificação passaram a contar com dispositivos tecnológicos, tais como microchips e biometria, que o transformaram em um elemento de um complexo sistema de informações, e tal capacidade têm levantado novas questões relacionadas aos processos de identificar pessoas (LYON, 2009). Em linhas gerais, essas questões dizem respeito à privacidade, à vigilância e ao desequilíbrio de poder nas relações entre cidadãos e as organizações públicas e privadas.

Outra questão em pauta são as implicações sociais destes cartões, pensando em termos das relações entre os processos de identificação e a construção da identidade. Na sociedade atual, a identidade tornou-se múltipla, flexível e, segundo Marx (2006), cada vez mais um complexo com elementos do corpo e dos processos sociais, os quais ela integra: o nome da pessoa, localização, e outros códigos que podem ser desde senhas, cartões ou também as categorizações sociais. Estas últimas diferenciam os indivíduos que as compartilham dos demais, já que as categorias de identificação, assim como as identidades, existem umas em relação às outras. É o caso de grupos como gênero, etnia, religião, idade, classe social, educação, região, orientação sexual e, no nosso caso, os perfis de usuário do sistema de transporte público: trabalhador, estudante, idoso, portador de necessidades especiais. Raab (2009) defende que identificação e categorização são processos políticos, e a identidade é um processo social que desenvolvemos junto aos outros, a partir de equivalêncas e diferenças. Por ser também aquilo que os outros sabem sobre nós, a categorização atua na formação de identidades públicas, tornando-se um processo predominantemente político na medida em que

torna-se um artefato para construir relações sociais ou ainda, em uma forma de ordenamento social.

De modo a buscar elementos para desenvolver as hipóteses que nos auxiliem a refletir sobre o modo como essas questões se expressam em nosso campo empírico, na próxima seção vamos aprofundar nosso estudo tendo como base os sistemas de bilhetagem do Recife e sua Região Metropolitana, que apresentamos a seguir.