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1.1 SBEs, sistemas de transporte e mobilidade urbana

Hipótese 2: Os SBEs são sistemas discursivos que, ao constituem as mobilidades pessoais de

2 Tecnologias, mobilidades e subjetivações

2.4 Identificação, identidade e subjetivações

Apresentar cartões de identificação tem sido uma exigência frequente quando se busca por serviços de saúde, bancários, educacionais, para acessar ambientes de trabalho ou de lazer e para utilizar transportes públicos dos centros urbanos, dentre muitas outras situações rotineiras. Embora tal modo de identificação não seja recente, no decorrer das últimas décadas, os cartões de identificação foram adquirindo novas características à medida que neles foram sendo introduzidos dispositivos tecnológicos, como as tarjas magnéticas e depois os microchips, atualmente presentes em quase todos eles. Com isso, de acordo com Lyon (2009), os cartões de identificação se tornaram elemento central de sistemas de informações, o que expandiu o acesso das organizações aos dados de clientes/usuários, e com isso, a capacidade de controle e vigilância sobre eles.

A transformação dos cartões e do processo de identificar foi possível pela ocorrência de alguns fatores. De modo geral, a identificação ganhou destaque nas prioridades dos governos, em suas políticas voltadas para a segurança, com destaque para as mudanças após os atentados de 11 de setembro21. Outro fator, segundo Lyon (2009), é que o aumento da

21 Data dos ataques suicidas, coordenados pela Al-Qaeda, em diversos pontos dos Estados Unidos, que

mobilidade, advindo da globalização, evidenciou a questão da identificação, nos mais diferentes sistemas, em diferentes lugares e para diferentes grupos. Todos esses fatores foram levando ao desenvolvimento e à ampliação de novas formas de identificação, em especial nas tecnologias voltadas para essa finalidade.

De modo geral, os cartões de identificação têm sido empregados para associar, a uma pessoa em particular, informações produzidas a partir do inteligenciamento do banco de dados, que podem ser consultados, “alimentados” ou modificados por novos registros relacionados à utilização dos cartões. Os cartões de identificação podem se apresentar de diversas maneiras e, ainda que possuam características comuns, variam consideravelmente em termos dos recursos tecnológicos empregados. Em uma primeira aproximação, na qual se destacam os benefícios advindos de suas funcionalidades, surgem questionamentos acerca dos impactos sociais destes novos processos de identificar pessoas (GANDY, 2002; LYON, 2009; MARX, 2001; RAAB, 2009), cujas proposições acreditamos serem pertinentes na análise dos sistemas de bilhetagem eletrônica.

As questões relacionadas ao controle e vigilância têm sido reacesas nos debates em torno dos cartões únicos, com sistemas digitais e banco de dados centrais, o que tem ocorrido em diversos países americanos e europeus. Tendo em vista marcas históricas, a identificação única muitas vezes tem suscitado precauções em relação ao controle do Estado e suas instituições. Setores da sociedade civil passaram a considerar que tais sistemas pudessem levar à invasão de privacidade diante de tamanha capacidade de monitoramento do Estado na vida dos cidadãos. Em alguns países europeus, o número único para identificação remete aos excessos estatais, diante de experiências de autoritarismo, como a ditadura franquista e salazarista.

No Brasil, como apontam os trabalhos de Kanashiro e Doneda (2012), este debate encontra-se ausente. Os autores citam como exemplo o caso do RIC - Registro de Identificação Civil e do documento único de saúde no SUS, nos quais, apesar do estágio avançado do processo de implantação, não encontramos destaque na imprensa, nem em associações da sociedade civil. Segundo os autores, a falta de participação e transparência na implementação de um documento único pode trazer ameaças futuras, consequências de aceitação irrefletida de medidas que são impostas de cima para baixo.

Debates em torno dos possíveis desdobramentos do uso disseminado de cartões eletrônicos de identificação, ainda que no caso brasileiro circunscritos ao âmbito dos especialistas, demonstram que o uso desse tipo de cartão envolve vários outros aspectos além

de técnica e eficiência. Como vimos acima, os cartões integram sistemas de identificação, sendo porta de acesso para uma rede de bancos de dados, cerne de seu funcionamento como identificador. Tal característica lhe confere uma capacidade de controle e vigilância, introduzindo potencialmente um desequilíbrio nas relações entre as organizações e os cidadãos. Assim, por um lado, os registros em bases de dados podem garantir segurança aos cidadãos, apresentando-se como algo tranquilizador. Mas, por outro lado, o inteligenciamento dos registros nos bancos de dados se fundamenta na construção de categorias utilizadas para classificar pessoas ou perfis, o que pode representar riscos. Por isso, o modo como os cartões de identificação podem ser um fator de segurança, mas também de controle e vigilância é uma das principais questões relacionadas ao tema.

Outra série de questionamentos no interesse deste trabalho, desenvolvida por (2009) e Marx (2001), refere-se às relações entre os sistemas de identificação e identidade. Como vimos, os cartões são parte de sistemas de identificação que se tornaram importante infraestrutura para a gestão de diversos processos organizacionais, públicos ou privados. Por meio desses sistemas, para que sejam controladas em seus movimentos físicos e virtuais, em seus acessos a diversos serviços, as pessoas devem ser identificadas. E o que significa, afinal, identificar alguém?

Tal reflexão de modo algum é tomada pelos especialistas quando desenvolvem sistemas de identificação, ao contrário, estes são assumidos como um processo unicamente técnico, ignorando a reflexão teórica das ciências sociais sobre construção de identidade e processos de identificação. Marx (2001) considera que identidade e identificação existem uma em relação à outra. A diferença entre como eu me identifico e como eu sou identificado pelos outros – ou atualmente, como os sistemas podem me identificar, não pode ser tomada como uma distinção absoluta. Assim, o autor questiona os efeitos da dimensão dominante da identificação como categorização social sobre os outros modos de expressar quem somos, provocando, com sua força, um apagamento de origens e histórias sobre si mesmo.

O processo de classificação tem um caráter político uma vez que se trata de uma ação prescritiva, um ordenamento social, um modo de dizer como as pessoas são. Assim, podemos dizer que identidades institucionais são categorias que expressam pontos de vista dominantes de lugares preferenciais na estrutura social. Tais lugares, contudo, nem sempre deixam claros os mecanismos a partir dos quais as pessoas são classificadas. Além disso, desconhecem as consequências sociais de tais categorizações, decorrentes, por exemplo, das ações tomadas com base em tais perfis e seus impactos na vida dos perfilizados. A identidade e a diferença

são polos relacionados, criados a partir de uma nomeação, por meio da linguagem, sujeitos, portanto, às propriedades da linguagem, como afirma Silva (2000).

Como vimos na segunda seção deste capítulo, identidades resultam de práticas articulatórias, das disputas nos processos de significação. Isso faz com que identidades tornem-se relações sociais, não são simplesmente definidas, mas impostas em um campo que envolve uma disputa pelos recursos simbólicos e materiais da sociedade. Assim, ainda nas palavras de Silva (2000), a identidade e a diferença não podem ser consideradas relações neutras ou técnicas. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença relaciona-se com as estruturas mais amplas do poder e a classificação está na base da produção da identidade. É central nas formas de ordenamento social, sendo que as classes nas quais o mundo social é dividido não são simples agrupamentos simétricos, mas encontram-se hierarquizados, a partir de diferentes valores que lhes são atribuídos.

Por fim, o processo de produção da identidade oscila entre dois movimentos: de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la. É um processo semelhante ao que ocorre com os mecanismos discursivos e linguísticos nos quais se sustenta a produção da identidade. Tal como a linguagem, a tendência da identidade é para a fixação. Entretanto, tal como ocorre com a linguagem, a identidade está sempre escapando. A fixação é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade.

Relacionando-se ao processo de identificação, Butler (1999) analisa a performatividade, conceito que imprime a ideia de movimento e transformação na produção da identidade. Assim, por exemplo, quando utilizamos palavras como idoso, estudante, deficiente, obeso, gestante para classificar alguém, não se trata apenas de uma descrição relacionada a alguma característica da pessoa, mas sim sua inserção em um sistema linguístico, que reforça positividade/negatividade atribuída à identidade, isso independe da intenção de quem utiliza a palavra. Outro elemento do aspecto performativo da produção da identidade, de acordo com Silva (2000), é que sua eficácia depende da repetição ou da possibilidade de sua repetição, que confere a força ao ato linguístico, já que uma característica essencial do signo é que ele seja repetível. Nesses termos, o que distingue a linguagem (como uma extensão da escrita) é sua citacionalidade, uma vez que ela pode ser sempre retirada de um determinado contexto e inserida em um contexto diferente.

Essas colocações acerca do modo como se constituem as identidades se contrapõem à ideia de uma subjetividade humana atemporal própria dos seres humanos como espécie, ao

lado da noção cartesiana de sujeito racional, reflexivo, no comando de seu pensamento e sua ação, que está na base do pensamento social e foi predominante até meados do século XX (MOTTA, 2008). Desde então, diversas tradições nas ciências humanas questionam esta visão do sujeito e do modo como as subjetividades são constituídas, procurando destituí-lo não apenas do lugar de condutor dos processos sociais, mas também de senhor do seu próprio destino.

Sobre esse processo de destituição, Hall (1999) apresenta uma síntese na qual afirma que o estruturalismo operou o primeiro descentramento, situando o sujeito como efeito de estruturas movidas pelas forças da história. Na psicanálise, o segundo descentramento, o sujeito, encontra-se dividido entre razão e inconsciente e surge como uma fantasia de si mesmo e lugar de uma identidade impossível. A linguística que representa o terceiro descentramento, o coloca como prisioneiro da linguagem, camisa de força que o antecede, lente imperativa, por meio da qual percebe o que o cerca. O quarto vem com o pensamento de Foucault (1998), que revela o sujeito como encruzilhada de posições discursivas instáveis, um corpo dócil, disciplinado pelas biopolíticas. Como atribuir, então, autonomia e liberdade a um sujeito-efeito, cindido, falado, fragmentado e domesticado, por estruturas que o produzem? Estas teorias problematizaram a noção de sujeito como portador de uma identidade estável, apontando os limites psicanalíticos, sociais e históricos que marcam sua constituição.

A remoção do sujeito do lugar central nas ciências sociais contemporâneas levou a mudanças na noção de subjetividade, como afirma Laclau (1983). Ao invés de encarar o sujeito como a fonte de significado do mundo, temos nele o entrecruzamento de posições no interior dos diferentes discursos. Para o autor, não há nenhuma relação prévia entre os discursos que formam o sujeito, o que torna impossível tomá-lo como uma entidade unificada em torno de uma posição necessária. Ao contrário, é o reconhecimento da pluralidade das posições de sujeito das quais ele é constituído que nos fornecerá pistas para o entendimento da crescente autonomização das esferas sociais na sociedade contemporânea. Mas de que maneira estas estruturas atuam na constituição das subjetividades contemporâneas? Ou onde se encontram a identificação e as subjetividades?

As práticas de identificação e a produção da subjetividade estão intimamente relacionadas. Negri (2003) identifica na obra de Michel Foucault três formas de subjetivação: a princípio, a constituição do sujeito se dá pelas diversas maneiras pelas quais o conhecimento adquire o estatuto de ciência, se consolidando através do dispositivo da linguagem; a segunda forma de subjetivação seria a partir das práticas de divisão e classificação do sujeito dentro de

si ou em relação aos outros. Esse é um momento central na ligação, pois a classificação é um elemento importante dos processos de identificação, quando se separa o idoso, o deficiente, o estudante; a terceira forma é a que caracteriza o biopoder, a adoção das divisões científicas e classificações nas técnicas de disciplina e controle. Aqui temos o reconhecimento do papel impositivo das classificações institucionais em suas ações sobre os perfis e sobre todo o tecido social. As novas tecnologias da informação transformam a capacidade de produzir conhecimento que embasa a classificação, expandindo seu potencial de controle, vigilância e inteligenciamento dos bancos de dados (RAAB, 2009).

A vigilância contemporânea, mais do que o olhar sobre o indivíduo, focaliza mobilidade, fluxos de pessoas e informações (KANASHIRO, 2009). A crescente capacidade de obter informações acerca das diversas formas de mobilidade tem sido apontada como fator de enriquecimento na construção de perfis, o que torna possível a discriminação mais precisa de pessoas e grupos, tanto no que diz respeito à vigilância dos consumidores, como naquelas voltadas para a segurança, que monitoram os espaços públicos e privados: ruas e praças, locais de trabalho, aeroportos, shoppings, museus, escolas, meios de transporte.

Lyon (2002) analisa que os sistemas de vigilância estão se tornando onipresentes no monitoramento das práticas cotidianas, suprimindo as fronteiras entre o público e o privado. A vigilância de mobilidades que acompanha o indivíduo por toda parte: no trabalho, compras, lazer, saúde, escola, deslocamentos físicos, oferece um mapa completo da vida diária, tornando cada vez mais difícil o estar anônimo. Os movimentos podem ser observados, registrados, armazenados e inteligenciados, deixando de ser um meio de fuga da vigilância para ser um de seus principais objetos.

E quais serão as implicações da impossibilidade do anonimato? Lyon (2002) fala da imobilização diante da constatação de que não há um lugar onde se esconder. Poderá ser ainda mais racionalização e controle (BENIGER, 1986), a partir de um auto-monitoramento em virtude da consciência de que se está sob constante avaliação. Mesmo em relação à vigilância voltada para a segurança, a consciência de que se está sob controle, ou que se poderia potencialmente estar em análise, pode mudar comportamentos de forma não intencional. Ao mesmo tempo, e como acontece com outros sistemas de vigilância, pode haver a tentação de jogar com o sistema de vigilância, ou mesmo enfrentá-lo. De acordo, com Hardt e Negri (2006), o direito de controlar seu próprio movimento é uma demanda definitiva do cidadão global, demanda que se torna radical na medida em que desafia o aparato básico do controle imperial.

Com os conceitos da teoria da construção social da tecnologia, como é o percurso de sua produção, partindo dos agentes relevantes situado em um quadro tecnológico, com suas demandas até um fechamento. Trouxemos os conceitos da teoria do discurso para compreendermos o modo como ocorre este fechamento: articulação das demandas convergentes em torno de um ponto nodal. E as mobilidades pessoais? No nosso caso, as mobilidades pessoais vinculam-se ao sistema por meio do cartão de identificação, que contem as configurações possíveis para aquele trajeto.