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A CRÍTICA AO CONCEITO DE GÊNERO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES NO ÂMBITO DA TEORIA CRÍTICA E DO SERVIÇO SOCIAL

3 GÊNERO, FEMINISMO E SERVIÇO SOCIAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA O DEBATE

3.1 A CRÍTICA AO CONCEITO DE GÊNERO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES NO ÂMBITO DA TEORIA CRÍTICA E DO SERVIÇO SOCIAL

O conceito de gênero, amplamente discutido em suas mais diversas variações nas Ciências Sociais, começou a ser utilizado a partir dos estudos sobre a mulher no âmbito acadêmico. Conforme aponta Piscitelli (2002), os estudos de gênero objetivavam superar problemas relacionados a utilização de algumas categorias centrais nos estudos sobre as mulheres, se destacando enquanto um conceito controverso entre as teóricas feministas. De acordo com Cisne (2012, p.79),

Desde o seu surgimento e no decorrer de seu desenvolvimento, ainda em curso, o conceito de gênero, foi/é dotado de diversas perspectivas.

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Conforme aponta Evangelista (2007, p. 75), “[...] o pensamento pós-moderno se afirmaria como expressão intelectual de uma nova ordem societária que está se formando em contraposição a modernidade em crise”. A crítica à razão moderna polemiza a realidade enquanto totalidade complexa e contraditória. Para Duriguetto (2009, p.03-04), “para a maior parte das concepções pós- modernas, a realidade é um todo fragmentado, marcado pela efemeridade, pela fragmentação e pela indeterminação, o que impossibilita existir, uma narrativa ou metanarrativa, capaz de explicar a totalidade da vida social. Ou seja o real não é possível de ser explicado e entendido em sua globalidade, podendo apenas suas partes serem descritas de forma isolada e fragmentada”.

Diversidade esta, provocada tanto pelas polêmicas teóricas e políticas no interior das ciências humanas e exatas, quanto por ser uma categoria que possui um estudo relativamente recente.

Para entender melhor seu uso nos diversos estudos feministas, é importante compreender seu surgimento. Foi a partir de 1968, que o conceito de gênero começou a discutido através de um trabalho científico intitulado “Sexo e Gênero”54 do autor Robert Stoller, na área da Psicologia. Neste trabalho, Stoller discorre acerca do gênero enquanto categoria psicológica ao analisar o ser humano, no entanto, traz para as Ciências Sociais algumas contribuições pontuais acerca da discussão sobre a formação da identidade sexual.

A partir deste espaço, algumas autoras passaram a se debruçar sobre o conceito, elaborando maiores reflexões e contribuições no âmbito da sociologia e antropologia, como é o caso da autora Gayle Rubin, que em 1975 publicou a obra “O Tráfico de Mulheres: Notas sobre a ‘Economia Política do Sexo’”55

, na qual discorre sobre a gênese da opressão feminina, trazendo críticas sobre o conceito de sistema de sexo/gênero. Rubin oferece maiores contribuições a esta discussão, se tornando uma referência teórica muito importante nos estudos feministas, além de abrir espaço para outras autoras com diversas perspectivas sobre a referida categoria.

Esta discussão sobre o gênero chega ao Brasil apenas no final da década de 1980, através do texto de Joan Scott intitulado “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”56

se tornando uma referência para os estudos feministas e fortalecendo assim os “estudos de gênero”. Neste trabalho, a autora define gênero em duas partes e subpartes conectadas, de tal modo que “[...] o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1989, p. 21). Desta maneira, a referida categoria possibilita a compreensão acerca da construção social com base nas diferenças biológicas entre homens e mulheres e permite aprofundar a análise das relações de poder entre estes sujeitos.

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Ver mais em: STOLLER R. Sex and gender: the development of masculinity and femininity. New

York: Science House; 1968. 55

Ver mais em: RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres. Notas sobre a 'Economia Política' do

sexo. Tradução de Christine Rufino Dabat. Recife: SOS Corpo, 1993. 56

Ver mais em: SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the

Para a autora, a busca pela compreensão destas relações de poder se sobrepõe a necessidade de entender as determinações da dominação e exploração das mulheres por uma perspectiva classista, pois,

A ladainha “classe”, “raça” e “gênero” sugere uma paridade entre três termos que na realidade não existe. Enquanto a categoria de “classe” está baseada na teoria complexa de Marx (e seus desenvolvimentos posteriores) da determinação econômica e da mudança histórica, as de “raça” e “gênero” não veiculam tais associações. (SCOTT, 1989, p. 04).

É a partir desta concepção que os estudos sobre gênero passam a ganhar espaço no meio acadêmico brasileiro e no movimento feminista, propiciando sua incorporação por algumas vertentes teóricas, tal como a pós-modernidade. A crítica à modernidade57 repercute nas áreas do saber, na medida em que “[...] os principais temas da racionalidade moderna – ciência verdade, progresso, revolução, felicidade, etc. – darão lugar a valorização do fragmentário, do microscópico, do singular, do efêmero, do imaginário, entre outros” (EVANGELISTA, 1992, p. 24).

Deste modo, contribuem para a desmobilização e desarticulação do movimento feminista, entendendo que algumas análises se afastaram da prática, ficando apenas no campo das ideias. Neste processo, a teoria marxista é execrada pelas/os pesquisadoras/es pós-modernos e considerada ultrapassada, pois consideram que o legado intelectual e político deixado por Marx, Engels e outros/as intelectuais não são capazes de explicar e explicitar as particularidades em que vivem as mulheres no modo de produção capitalista, devido ao viés economicista.

Em vista disso, é necessário destacar: esta consideração enganosa da perspectiva pós-moderna, desconsidera a contribuição do marxismo aos estudos feministas, minimizando e subjugando a teoria social crítica. Como se sabe, a teoria social crítica, ao analisar a totalidade, parte da aparência buscando a essência dos fenômenos sociais, através de suas determinações e não exclui a análise da situação das mulheres, da população LGBT, entre outros. Pelo contrário, fornece as bases teóricas para análise da sociabilidade capitalista e sua superação. Com isso,

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O marco inaugural da modernidade está representado pelo Iluminismo, que calcou o seu projeto na ideia de que a razão é o instrumento indispensável para a autodeterminação do homem. É o uso da razão, através do pensamento crítico, que o homem e a humanidade podem se emancipar e exercer a liberdade (EVANGELISTA, 1992, p. 24).

[...] Articula o micro com o macro, percebendo e analisando as relações, interrelações e autodeterminações entre os fenômenos sociais. Essa forma de análise do real permite ao marxismo, diferentemente da pós- modernidade, não resultar em uma teoria estéril, sem desdobramentos políticos claros. (CISNE, 2012 p. 93-94)

Nesse sentido, de crítica a pós-modernidade, o trabalho de Heleieth Saffioti, uma reconhecida intelectual marxista brasileira, é percursor na discussão sobre gênero, em âmbito internacional. Para Saffioti, a categoria gênero tem algumas contribuições importantes, todavia apresenta mais limites do que possibilidades quando utilizada de forma exclusiva, portanto, não pode ser resumida enquanto categoria de análise, visto que por ser extensa, não evidencia muita utilidade aos estudos. Partindo deste pressuposto, a autora afirma,

Gênero também diz respeito a uma categoria histórica, cuja investigação tem demandado muito investimento intelectual. Enquanto categoria histórica, o gênero pode ser concebido em várias instâncias como: aparelho semiótico (LAURETIS, 1987); como símbolos culturais evocadores de representações, conceitos normativos como grade de interpretação de significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva (SCOTT, 1988); como divisões e atribuições assimétricas de característicos e potencialidades (FLAX, 1987); como numa certa instância, uma gramática sexual, regulando não apenas relações homem-mulher, mas também relações homem-homem e relações mulher-mulher. (SAFFIOTI, 2004, p.45), Ou seja, na sua extensão em conteúdo, a categoria gênero não explicita diretamente a relação da submissão das mulheres aos homens nesta sociabilidade, visto que possibilita também outras análises e outros olhares sobre os sujeitos, incluindo os homens, as masculinidades, as paternidades, os estudos queer 58, etc. Desta forma “[...] isso permite estudar os aspectos simbólicos e ideológicos do masculino e do feminino, sem referência a opressão do sexo feminino” (MATHIEU, 2009, P.227). Conforme já exposto, a ausência desta referência traz sérias implicações no âmbito do movimento feminista, pois desmobilizam e despolitizam as mulheres em torno de pautas e lutas feministas. Em concordância com Cisne (2012, p. 86),

O problema desencadeado pelas novas abordagens dos estudos de gênero é, pois, um distanciamento entre as discussões teóricas e a luta das

58 Segundo Mathieu (2009, p. 228), queer, em inglês, significa “[...] bizarro, ambíguo, insulto para

designar homossexuais, reivindicando aqui para afirmar e reunir todos os comportamentos diferentes daquele da heterossexualidade normativa: homossexuais, lésbicas, transexuais, travestis, bissexuais, etc.”.

mulheres, o que já demonstra como essas teorias são vazias de sentido, uma vez que a teoria não pode desvincula-se da prática, mas dela emergir e a ela retornar como respostas às demandas concretas do real.

Desta forma, a categoria gênero, em detrimento ao ocultamento da categoria mulher, tem tido maior adesão na academia e nos órgãos de fomento à pesquisa, bem como organismos internacionais tal como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM). “Estudos de gênero” tem maior aceitação entre estas instituições capitalistas comparadas aos “estudos feministas”, isto porque conforme já exposto, o gênero encobre a discussão sobre a opressão das mulheres, abrindo outras discussões com outros sujeitos e invisibiliza a opressão e exploração das mulheres. Portanto, “[...] os estudos de gênero, se comparados aos estudos feministas, adquirem, por vezes, um caráter mais “neutro”, menos ofensivo, ou seja, mais polido ao gosto das instituições multilaterais e governamentais, além de ser aparentemente mais “acadêmico” ou ‘científico’”. (CISNE, 2014, p. 65)

Além disso, também permite o maior espraiamento da teoria pós-moderna dentro do movimento feminista, destacando a dimensão simbólica e cultural como central nas análises feministas. De acordo com Araújo (2000, p.70) “[...] o conceito de gênero vem se tornando um código cultural de representação e aparece como um mero efeito discursivo, desvinculados dos contextos socioeconômicos concretos”. Como exemplo, podemos citar os conceitos que tem sido utilizados e legitimados em larga escala pelas militantes feministas, tais como, empoderamento59 e sororidade60, ignorando a dimensão da contradição entre o capital e o trabalho.

Para além destas considerações acerca da categoria gênero, podemos destacar que o uso exclusivo da categoria pode apresentar o risco de se limitar ao essencialismo, considerando que “[...] o gênero é exclusivamente social, a queda no essencialismo social é evidente. [...] O ser humano deve ser visto como uma

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Para Saffioti (2004, p. 114) empoderar-se equivale, num nível bem expressivo do combate, a possuir alternativa (s), sempre na condição de categoria social. O empoderamento individual acaba transformando as empoderadas em mulheres álibi, o que joga água no moinho do (neo) liberalismo: se a maioria das mulheres não conseguiu uma situação proeminente, a responsabilidade é delas, porquanto são pouco inteligentes, não lutaram suficientemente, não se dispuseram a suportar os sacrifícios que a ascensão social impõe, num mundo a elas hostil.

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Sororidade: S.f. 1. Relação de irmandade, união, afeto ou amizade entre mulheres, assemelhando- se àquela estabelecida entre irmãs. 2. União de mulheres que compartilham os mesmos ideias e propósitos, normalmente de teor feminista. Dicionário Online de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/sororidade/. Acesso em: 02 jul. 2017. Apesar de ser bastante utilizado, o conceito é controverso, pois em nome de uma pretensa fraternidade entre as mulheres, pode dissipar as dimensões de classe, gênero/sexo, raça/etnia entre as mesmas, subestimando as diferenças e as críticas que constroem e reconstroem a prática feminista.

totalidade, na medida em que é uno e indivisível”. (SAFFIOTI, 2004, p.110). Por isso, é necessário considerar a categoria, historicizando-a, refletindo sobre as determinações objetivas, bem como as subjetivas, pois,

Não se trata de abolir o uso do conceito de gênero, mas de eliminar sua utilização exclusiva. Gênero é um conceito demais palatável, porque é excessivamente geral, a-histórico, apolítico e pretensamente neutro. Exatamente em função de sua generalidade excessiva, apresenta grande grau de extensão, mas baixo nível de compreensão. (SAFFIOTI, 2004, p. 138)

De modo a demarcar a contribuição do gênero, a autora recomenda seu uso articulado com a categoria patriarcado na análise das relações sociais na sociabilidade capitalista, pois “[...] o patriarcado refere-se a milênios da história mais próxima, nos quais se implantou uma hierarquia entre homens e mulheres, com primazia masculina” (Idem, p. 136). Esta vantagem masculina precisa ser destacada a fim de oferecer notoriedade ao poder político do patriarcado para que possamos compreender e enfrentar sua força histórica que subjuga, oprime e explora as mulheres.

Esta articulação do gênero com o patriarcado se torna de fundamental importância, pois enfatiza o patriarcado, enquanto um sistema de dominação e exploração das mulheres, ao mesmo tempo em que controla sua sexualidade, também lhe reserva os trabalhos domésticos gratuitos que garantem, historicamente, a submissão das mulheres aos interesses dos homens. De acordo com Engels (2009, p. 67),

[...] Esse rebaixamento da condição da mulher, tal como aparece abertamente, sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e mais ainda dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocado, dissimulado e, em alguns lugares, até revestido de formas mais suaves, mas de modo algum eliminado.

Constata-se então, que a força do patriarcado é tão destrutiva que atinge as mulheres, mas também “[...] abrange os sujeitos da diversidade, que muitas vezes, questionam o modelo posto pelo sistema patriarcal e a heterossexualidade como arquétipo ideal das relações sociais – aqui a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT)”. (OLIVEIRA, 2016, p. 53). Assim, apenas por serem sujeitos que compõem a diversidade sexual humana e

questionam a heterossexualidade compulsória61, também passam a ser alvos e sofrer as consequências oriundas do patriarcado na ordem do capital.

Portanto, conforme já exposto, reiteramos a necessidade do uso da categoria gênero com a categoria patriarcado de modo a precisar a análise das relações sociais com compromisso à luta pela emancipação das mulheres, historicizando as raízes da sua opressão e exploração. É preciso desvelar as armadilhas que o uso exclusivo do gênero pode proporcionar da mesma forma que é preciso localizar no processo histórico, o peso que o patriarcado tem cumprido para a perpetuação da sujeição das mulheres.

Com isso, reivindicamos na nossa pesquisa enquanto método de análise o materialismo histórico-dialético, pois é a partir desta teoria social que possibilita compreender a totalidade da vida social sem fragmentá-la, partindo da aparência e indo à essência e as determinações dos fenômenos sociais. Assim, podemos compreender o papel histórico do patriarcado no desenvolvimento da sociedade burguesa, bem como as consequências desta simbiose para a vida das mulheres. Para, além disso, esta teoria “[...] por ser uma teoria voltada para a transformação da sociedade, é a única que viabiliza a construção de um projeto societário coletivo que possibilite a emancipação efetiva dos sujeitos” (CISNE, 2014, p. 97).

Já o pensamento pós-moderno, incorporado e legitimado pela ordem do capital reforça este sistema que oprime e explora as mulheres além de fragmentá- las e afastá-las das lutas coletivas. No plano da teoria, o caldo cultural que a utilização exclusiva da categoria gênero promove também atinge a forma como as mulheres analisam e interferem na realidade a qual estão inseridas. Com isso, estes elementos corroboram para o enfraquecimento da luta feminista, no sentido em que,

No campo da teoria social, a realidade deixa de ser retratada como uma totalidade cheia de conexões. No campo da práxis política, essa forma de conhecer e conceber a realidade como um todo caótico e aberto a todos os relativismos, impossibilita qualquer tentativa de engajamento em algum projeto universal de emancipação (DURIGUETTO, 2009, p. 04)

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A heterossexualidade compulsória se configura como um sistema de dominação instituído, legitimado social e historicamente, como modelo, norma, dogma, prática natural – inquestionável. (MESQUISA, 2001). Este sistema de dominação é legitimado em todas as esferas da vida social enquanto a lesbianidade e a homossexualidade são negadas e ocultadas como expressões da sexualidade humana.

Por tanto, reitera-se a necessidade do marxismo para os estudos feministas, de modo que a referência a opressão e exploração das mulheres estejam presentes nos estudos teóricos, a fim de mobilizar as mulheres na construção de uma prática feminista que questione e enfrente o modo de produção capitalista e a dominação patriarcal.

3.2 RELAÇÕES PATRIARCAIS DE GÊNERO E RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO: