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RELAÇÕES PATRIARCAIS DE GÊNERO E RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO: APONTAMENTOS PARA O DEBATE ENTRE AS CATEGORIAS ANALÍTICAS

3 GÊNERO, FEMINISMO E SERVIÇO SOCIAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA O DEBATE

3.2 RELAÇÕES PATRIARCAIS DE GÊNERO E RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO: APONTAMENTOS PARA O DEBATE ENTRE AS CATEGORIAS ANALÍTICAS

No âmbito da teoria materialista, duas categorias críticas tem sido as mais utilizadas na pesquisa como forma de análise da realidade. São elas: as relações patriarcais de gênero, desenvolvidas por feministas brasileiras e as relações sociais de sexo, concebida pelas feministas francófonas62. Ambas as teorias partem do método materialista, no entanto possuem diferenças importantes na análise da realidade e da luta das mulheres na sociabilidade capitalista. Neste subitem, nos deteremos ao diálogo profícuo entre ambas as teorias, todavia, justificaremos o uso da categoria relações patriarcais de gênero para o desenvolvimento deste trabalho.

A categoria relações sociais de sexo se originou na França, oriundo da escola feminista francesa na década de 1980, período correspondente a chamada “segunda onda do feminismo” 63

. De acordo com Curiel e Falquet (2014, p. 15)

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Francófono: S.m Que ou quem usa o francês para se expressar; francofalante, francofone, francófone, francofono, francoparlante. Dicionário Michaelis On Line. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br. Acesso em: 07 jul. 2017.

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O feminismo, enquanto movimento com expressão coletiva, tem seu desenvolvimento caracterizado em três fases diferentes por inúmeras estudiosas. Em síntese, seu surgimento data do início do século XIX, considerado a primeira onda feminista, apresentando como reivindicação central o sufrágio feminino. A segunda onda feminista corresponde à década de 1970, do século XX, com o desenvolvimento dos estudos feministas nas universidades. Os estudos de gênero são oriundos desta época em que o feminismo pode adentrar a esfera da academia e se tornar objeto de estudos de pesquisadoras. A terceira fase do feminismo traz à tona diversas discussões acerca da diversidade sexual. Algumas das principais expoentes destas fases são respectivamente: Nísia Floresta, Simone de Beauvoir e Judith Butler. Ver mais em: Carta Capital. As diversas ondas do feminismo acadêmico. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio- feminista/feminismo-academico-9622.html. Acesso em: 09 jul. 2017.17. Para além desta leitura, recomendamos também a consulta em História, na página da Universidade Livre Feminista, que traz algumas contribuições importantes no que tange ao desenvolvimento do feminismo em âmbito mundial e nacional. Disponível em http://feminismo.org.br/historia/. Acesso em: 09 jul. 2017.

O ponto central de seu pensamento radica em que nem os homens nem as mulheres são um grupo natural ou biológico, não possuem nenhuma essência específica nem a identidade a defender e não se definem pela cultura, a tradição, a ideologia, nem pelos hormônios – mas pura e simplesmente por uma relação social [rapport], material, concreta e histórica. Esta relação social é uma relação de classe, ligada ao sistema de produção, ao trabalho e à exploração de uma classe por outra.

Na língua originária, o termo corresponde a rapports sociaux de sexe. Por não haver uma tradução direta para o português do Brasil, ressaltamos a seguinte explicação, pois,

Rapport designa relações mais amplas, estruturais, enquanto relations diz

respeito as relações mais pessoais, individuais, cotidianas. O conceito de

rapports sociaux de sexe é diretamente fundamentado no de relações

sociais de classe. Uma relação [rapport] social está vinculada aos conflitos e tensões entre os grupos sociais com interesses antagônicos. (CISNE, 2014, p. 62)

Estes grupos com interesses antagônicos correspondem respectivamente as relações entre duas classes de sexo, homens e mulheres, pautadas nas relações capitalistas-racistas-heterosexistas-patriarcais. E aqui cabe registrar que a oposição destas duas classes, não sugere a extinção da outra, mulheres e homens, pelo contrário. Devreux (2011, p.23) afirma que

O antagonismo é tanto a expressão de uma luta, de uma relação de força, como, teoricamente, está destinado a desaparecer com o desaparecimento da opressão que está aí em jogo. O horizonte utópico da luta das mulheres não é o desaparecimento dos homens [...] mas, o desaparecimento da opressão de um grupo social (o grupo dos homens) sobre outro grupo social (o grupo das mulheres).

Na categoria relações sociais de sexo, considera-se que o sexo também é construindo socialmente, sendo referenciado desde o nascimento e hierarquizado de acordo com critérios para homens e mulheres, de tal modo que as mulheres são destinadas à esfera reprodutiva, enquanto os homens são destinados a esfera produtiva, na chamada divisão sexual do trabalho.

A divisão sexual do trabalho reforça estes critérios, redefinindo os papéis de cada um para a manutenção da sociabilidade, se adaptando historicamente a cada uma destas. Este mecanismo obedece a dinâmica do capital e pode trazer as mulheres para a manutenção da esfera produtiva, responsabilizando-as também pela esfera reprodutiva, de tal modo que a divisão sexual do trabalho “[...] não os separa: ela os articula, excluindo ou integrando, segundo os momentos e as necessidades dos dominantes, as mulheres à esfera produtiva, devolvendo-as global

ou parcialmente à esfera reprodutiva” (DEVREUX, 2011, p. 13). Ou seja, a análise da divisão sexual do trabalho deve se desenvolver em todas as esferas da vida social.

Com a finalidade de legitimar as diferenças entre os sexos e fortalecer a divisão sexual do trabalho, o patriarcado invade todas as esferas da vida, perpetuando esta estrutura capitalista que se assenta no controle das mulheres, podendo, inclusive, ser acionado por estas. De acordo com Cisne (2014, p.79), “[...] as mulheres são sínteses das relações que estabelecem, mediadas por uma sociedade alienante e alienadora”.

Assim, apropriadas por esta sociabilidade, que controla seu modo de pensar, de agir e de trabalhar, as mulheres constituem uma classe social de sexo, de acordo com Guillaumin (2005). Por conseguinte, “[...] as mulheres constituem uma classe apropriada não só individualmente, por meio da instituição matrimonial, mas também coletivamente, pela classe dos homens nas relações de sexagem64” (CURIEL e FALQUET, 2014, p. 18).

Embora reconheçamos a pertinência e a vasta contribuição desta categoria para os estudos feministas em geral, considerando as particularidades da realidade brasileira e de nosso objeto de estudo, consideramos que não é possível utilizar a categoria relações sociais de sexo no desenvolvimento deste trabalho, por algumas dificuldades que apontaremos a seguir.

Por ser uma categoria criada entre as feministas francesas e de conteúdo e grafia essencialmente em francês, dificulta-se a compreensão em conteúdo quando utilizamos sua tradução para outras línguas, como o português (do Brasil). Sua tradução não descortina o sujeito da dominação, tal como ocorre, quando utilizamos exclusivamente o conceito de gênero. Há a necessidade de historicizar então, a gênese da categoria, sua tradução, aprofundando a análise com o patriarcado. No mais, considera-se que, apesar de grande contribuição para o marxismo, a categoria relações sociais de sexo ainda é pouco aprofundada nos estudos feministas brasileiros e, por isso, necessitamos de uma maior leitura e acúmulo teórico para contribuir com sua extensão e profundidade em conteúdo.

Desta forma, destacamos o uso da categoria “ordem patriarcal de gênero” ou “relações patriarcais de gênero” neste objeto de estudo, pois consideramos que esta

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A sexagem ou apropriação da mulher (do seu corpo, da sua sexualidade e da sua vida) é a base para a análise das relações sociais de sexo (CISNE, 2014).

aborda melhor algumas particularidades desta investigação. Além disso, a categoria já é conhecida nos estudos feministas brasileiros, permitindo o aprofundamento da análise, considerando o acesso a bibliografias e também a facilidade de compreensão da linguagem.

Desta maneira, corroboramos que o uso exclusivo da categoria gênero apresenta limites, já citados anteriormente, e destacamos a importância do uso do patriarcado articulado ao gênero, pois se compreende,

O patriarcado ou ordem patriarcal de gênero, ao contrário, como vem explícito em seu nome, só se aplica a uma fase histórica, não tendo a pretensão da generalidade nem da neutralidade, e deixando propositadamente explícito o vetor da dominação-exploração. Perde-se em extensão, porém se ganha em compreensão. Entra-se, assim, no reino da História. Trata-se, pois, da falocracia, do androcentrismo, da primazia masculina. É, por conseguinte, um conceito de ordem política. (SAFFIOTI, 2004, p. 138-139).

A inclusão do patriarcado enriquece a leitura da totalidade, pois como se sabe, este é embebido de ideologia e perpassa todas as esferas da sociedade, do Estado, as relações sociais, bem como, todas as instituições. A base material do patriarcado mantém-se fortalecida na ordem do capital, através da oferta de serviços, sejam estes de ordem sexual ou doméstica, pelas mulheres aos homens. Também permanece o controle da vida e da sexualidade das mulheres, inserindo-as assim, no processo de dominação-exploração, que “[...] se constitui em um único fenômeno, apresentando duas faces” (SAFFIOTI, 2004, p. 106). Não há em uma esfera, apenas a dominação das mulheres e em outra esfera, a exploração. Ambos se misturam e se manifestam na vida social das mulheres.

A não utilização do conceito de patriarcado para os estudos feministas provoca a manutenção da sociabilidade patriarcal e capitalista, na medida em que oculta a base da dominação e da exploração. Ademais, também dificulta a compreensão de que as mulheres devem estar à frente na luta contra o sistema patriarcal. Com isso, salientamos a contribuição da teoria marxista nas análises, considerando a necessidade de articular a luta das mulheres pelo fim da dominação- exploração com um objetivo maior: o fim da sociedade de classes, pois,

É necessário analisar gênero no bojo da contradição entre capital e trabalho e das forças sociais conflitantes das classes fundamentais que determinam essa contradição. Sendo a contradição o foco das desigualdades sociais, e o conflito a luta entre as classes sociais (o que determina o movimento da

sociedade, ou como diria Marx: o motor da história), faz-se imprescindível relacionar a luta das mulheres como um movimento legitimo contra as desigualdades, na e com a luta da classe trabalhadora. (CISNE, 2012, p 89) Falar em sociedade de classes exige abordar o sistema político e econômico vigente, identificando seu caráter funcional a subordinação das mulheres. Assim enfatizamos que esse sistema de dominação-exploração possui uma simbiose entre o patriarcado, o machismo e o racismo, que não pode ser fragmentada e que “[...] a referida simbiose não é harmônica, não é pacífica. Ao contrário, trata-se de uma unidade contraditória” (SAFFIOTI, 1987, p. 62). Há uma relação enovelada entre estes elementos, que foi denominada por Saffioti como “nó”, visto que,

Não se trata da figura do nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas componentes. Não que cada uma destas contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade, presidida por uma lógica contraditória (SAFFIOTI, 2004, p. 125).

Ou seja, a dominação-exploração a que estão sujeitas as mulheres, pode ter um relevo distinto, de acordo com o sexo/gênero que possuem, com a raça/etnia e a classe que pertençam. Um exemplo: na sociabilidade capitalista, as mulheres negras trabalhadoras sofrem de forma mais intensa as desigualdades sociais, de classe e raça/etnia, em todas as esferas da vida social, comparada com as mulheres brancas da burguesia.

Essa disparidade não é imutável e pode se apresentar de várias formas, com inúmeras contradições. É preciso apreender a dinâmica do nó patriarcado-racismo- capitalismo no sistema de dominação-exploração para compreender melhor as particularidades e contradições que atingem as mulheres de sobremaneira nesta conjuntura. E que incidem sobre a categoria de assistentes sociais, desde a gênese até o desenvolvimento da profissão. Este serão temas do subitem a seguir.

3.3 FEMINISMO E SERVIÇO SOCIAL: UMA ANÁLISE DESTA RELAÇÃO