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CAPÍTULO 2 – Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-coisa

2.1 À luz da crítica, a poesia

O estudo da obra de Manoel de Barros requer sensibilidade. Isto porque, ao desestruturar a linguagem, ao reinterpretar o mundo, ao associar intimamente palavra-imagem, o poeta volta-se aos momentos iniciais da literatura – que procurava criar e instaurar uma linguagem que fosse além da mera veiculação de mensagens, tentava religar o homem ao cosmos e acentuava a plasticidade e o caráter performático da palavra – e exige do leitor uma participação efetiva e diferenciada.

Müller (2003, p. 279), por exemplo, refuta a maneira como alguns críticos vêem a poesia de Manoel de Barros, já que “esquadrinham, analisam, decompõem matematicamente, e nada encontram”. Propõe um novo modo de olhar:

Será preciso talvez começar a olhar para a obra de Manoel de Barros como um todo articulado em torno de um projeto tenaz e insistente, mas cujas fronteiras (semânticas, discursivas) se movem e se deslocam constantemente, obrigando o leitor a um processo também constante de rememoração e ressignificação (MÜLLER, 2003, p. 279).

Ao analisar o conjunto da obra poética de Manoel Barros a partir do livro

Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo (2001/ 2010), Müller (2003, p. 276-

277) acredita que “todos os livros são amostras de um só livro”. Preocupado com o modo de construção da escritura de Barros, desvela como o poeta-bugre traça os desvios poéticos. Observa que Barros é “o poeta da natureza da palavra (...) palavra, que não pretende descrever o real, mas fantasiar”, eis a natureza da poesia, dos seres desimportantes, dos desheróis, da infância e do próprio poeta.

Descrevendo sua “caligrafia emendada e tímida”, Carpinejar (2006) insinua qual o melhor modo de compreender/ incorporar seus poemas: “cheirar o papel para entender o que ele escreve”. A partir de dados biográficos de Manoel de Barros, Carpinejar (2006) reflete sobre a trajetória literária do poeta que “adota a autenticidade dos defeitos, em vez de aceitar o polimento do senso comum”.

Bosi (2003, p. 488) ressalta a “coerência vigorosa e serena da palavra de Manoel de Barros, nascida em contato com a paisagem e o homem do Pantanal e trabalhada em uma linguagem que lembra, a espaços, a aventura mitopoética de Guimarães Rosa”.

No artigo “Manoel de Barros: o poeta universal de Mato Grosso do Sul”, Menezes (2001a) faz um levantamento da posição da crítica diante da obra do poeta e tece comentários sobre sua poesia. Põe em destaque comentários de críticos como Millôr Fernandes e Geraldo Carneiro sobre sua original escrita poética. Millôr Fernandes (apud MENEZES, 2001a) considera a obra de Manoel de Barros como “única, inaugural, apogeu do chão”. Geraldo Carneiro (apud MENEZES, 2001a) exalta sua poesia ao exclamar: “Viva Manoel violer

d’amores violador da última flor do Lácio inculta e bela. Desde Guimarães Rosa

a nossa língua não se submete a tamanha instabilidade semântica”. Menezes (2001a) conclui, então, que “conhecer a obra de Manoel de Barros é deixar-se levar pela magia de um mundo novo, um mundo no qual as coisas possuem sentido e deixam emanar a essência vital do universo”.

Em outro artigo intitulado “A auto-reflexão em ‘estado de palavra’ na poética de Manoel de Barros”, Menezes (2001b) reflete sobre a metalinguagem em sua poesia. Tomando como exemplo o livro Retrato do artista quando

coisa (1998/ 2010), concebe que “a palavra é um ser ativo e dinâmico capaz

de elaborar uma nova visão do mundo” e propõe uma leitura da poesia como “libertação da realidade” (Menezes, 2001b).

Manoel de Barros reconhece que seu livro de poemas Retrato do

artista quando coisa (1998/ 2010) é uma alusão visível ao Retrato do artista quando jovem (1998), de Joyce, porém, admite: “só não serei jovem nos

Barros (1998/ 2010) permite abertamente que os insetos, as plantas, as aves integrem e usufruam preponderantemente seu corpo: “Insetos me desempenham”; “tenho predomínio por lírios”; “plantas desejam a minha boca para crescer/ por de cima”; “sou livre para o desfrute das aves” (RAC, p. 357). O poeta torna possível subtrair-se de suas limitações humanas para elevar-se à coisa, bem como à transmutação da realidade e de si próprio:

Uma rã me pedra (A rã me corrompeu para/ pedra. Retirou meus

limites de ser humano/ e me ampliou para coisa)

Um passarinho me árvore (O passarinho me/ transgrediu para

árvore)

Os jardins borboletam (Significa que os jardins/ se abrem agora

só para o buliço das/ borboletas?)

Folhas secas me outonam (Eu sou meu outono).

(RAC, p. 358)

Manoel de Barros redimensiona as palavras, operando combinações inéditas ao ponto de declarar “Já enxergo o cheiro do sol” (RAC, p. 357). Impregnadas do poeta, as palavras chegam “enferma de suas dores, de seus/ limites, de suas derrotas” (RAC, p. 359). Assim, Manoel de Barros assevera: “as palavras têm que adoecer de mim para que se/ tornem mais saudáveis” (RAC, p. 360).

Com o intuito de buscar a palavra primeira, Manoel de Barros altera o estado de calmaria, imposto pelos usos convencionais, a que estão sujeitas as palavras, induzindo-as a dizer o que normalmente não dizem, e promove viagens impensadas: “Bom é corromper o silêncio das palavras”; “gosto de viajar por palavras do que de trem” (RAC, p. 358).

Compreendendo o poeta como um ser extraído das palavras, Barros confirma que as palavras retiram com força o poeta de dentro de si mesmo: “Será arrancado de dentro dele pelas palavras/ a torquês” (RAC, p. 359). As palavras dominam o poeta e o conduzem à apreensão da essência das coisas. O poeta entra em “estado de palavra” e passa a enxergar as coisas ainda sem forma, sem existência visível ou sensível:

O que resta de grandezas para nós são os/ desconheceres; para enxergar as coisas sem feitio é preciso/ não saber nada. (...) É preciso entrar em estado de palavra (RAC, p. 363).

Desse modo, a palavra une o ser humano às coisas, conectando-o integralmente ao universo. A reflexão sobre a palavra permite, portanto, o levantamento e a descoberta de aspectos basilares que atravessam a obra poética de Barros.

Ao discutir sobre o termo metalinguagem, Menezes põe em destaque a literatura como objeto “olhante e olhado”:

Com o dom da palavra, o poeta pode, a partir da manipulação destas palavras, fazer parte da natureza. E, como parte da natureza, transmutar-se em seus diferentes reinos (MENEZES, 2001b).

Ainda guiando-se por conceitos filosóficos, Menezes explica:

Ser é igual à essência, o mais puro e límpido estágio almejado, e o homem é igual à existência, tempo de se exercer a evolução. Portanto, é no praticar a existência que se alcança o Ser, ou essência. (MENEZES, 2001b)

Utilizando um verso de Fernando Pessoa como epígrafe – “Não ser é outro ser” (RAC, p. 357) –, Manoel de Barros observa que aquilo que não tem existência para os olhos comuns se torna um novo ser. O poeta enxerga a essência e o avesso do ser, transfigura-o e provoca uma sensação de desconhecimento – não ser – para entregar ao leitor outro ser.

Moncinhatto (2009, p. 16), em seu estudo intitulado “A palavra como processo reflexivo: a poesia da invencionice de Manoel de Barros”, investigou, por sua vez, como a reflexão metalingüística e chistosa fundamenta o processo criativo de Manoel de Barros na trilogia Memórias Inventadas. A autora optou por analisar três poemas de cada obra por acreditar que tais textos poéticos oferecem a oportunidade de reencontrar um poeta de demonstrada consciência crítico-literária que, ao refletir sobre o ser criança e as imagens das coisas do chão, formula sua própria leitura de mundo e concepção de poesia.

Na poesia de Barros, as informações sobre o código são utilizadas com o intuito de ocasionar distúrbios propositais no momento de criação e da leitura. Substituir termos e dar a eles novos significados é mexer com os entremeios da metalinguagem (MONCINHATTO, 2009, p. 16).

Sávio (2004), em seu artigo “A poética de Manoel de Barros: uma sabedoria da terra”, faz sua análise por outro viés. Observa como o poeta, por meio de “imagens de extrema sensorialidade, volta-se para a terra e para a natureza”, incorporando-a ao próprio texto. Para a autora, o poema torna-se o espaço onde o homem redescobre o sentido de tudo e encontra um novo lugar para si mesmo:

A vida surge na fermentação dos pântanos onde novas espécies estão sempre sendo gestadas. É a vida que vem da decomposição, da podridão, a ‘química do brejo’, num verdadeiro processo alquímico que ali acontece (SÁVIO, 2004).

Castro (1991, p. 12), em seu livro A poética de Manoel de Barros: a linguagem e a volta à infância, por seu turno, percorre a obra poética de Barros para verificar como o mundo e o Pantanal, “em todo o complexo transformacional que, ele, o poeta, desde criança, contempla e admira” são expressos em palavras e ganham o espaço do todo.

Tomando por base as reflexões de tais críticos, podemos captar indícios de como a obra de Manoel de Barros necessita ser estudada. O poeta recolhe miudezas, “inutilezas”, coisas e seres desimportantes a fim de realizar uma reviravolta no pensar comum. O delírio do verbo pode ser experimentado quando Manoel de Barros consubstancia criações alógicas, transfigurações imaginativas, aproximações de realidades tensas e combinações de palavras contraditórias para desdizer o dizível, chegar ao inefável e se apossar da essência das coisas. Faz ele empenhadas explorações para alcançar o “antesmente verbal”, “a despalavra” e, desse modo, encontrar as pré-coisas, as origens.

Por ter um plano poético insistentemente perseguido – promover a loucura das palavras para criar novos espaços poéticos –, a leitura da poesia

de Manoel de Barros exige a percepção de que os conceitos são semoventes. Manoel de Barros retira a palavra de seu uso acostumado, causando estranheza e criando novas relações de sentido. O poeta quer desestruturar a linguagem, inventar novos comportamentos para as coisas e explorar o mundo a partir de perspectivas incomuns.

O uso recorrente do prefixo des- mostra que o poeta quer desfazer o real, o mundo, a linguagem, para construir, pela palavra, um real transfigurado, um mundo novo e, assim, instaurar uma linguagem renovada. Procurando “desaprender”, “desentender”, “desexplicar”, o poeta desfigura aquilo que já existe com o intuito de promover os “deslimites” das palavras, romper com regras e normas e inventar “descomportamentos” para tudo que o rodeia. Como afirmam Heloisa Godoy e Ricardo Câmara:

“Criar começa no desconhecer”. É assim que o escritor Manoel de Barros explica uma poética (...) que apreende a essência dos objetos e dos homens desautomatizando a linguagem, “desexplicando” o mundo para melhor captar – e recriar – seu mistério (GODOY e CÂMARA, 1998, p. 5).

Manoel de Barros reconhece o Pantanal como lugar em que desenvolveu seus primeiros conhecimentos, espaço da infância, onde recebeu as primeiras percepções do mundo, onde seu olhar “viu primeiro as coisas”, onde suas “ouças ouviram primeiro os ruídos do mato”, onde seu olfato “sentiu primeiro as emanações do campo”. Esse universo infantil propiciou a apreensão de conhecimentos por meio do corpo: “O que sei e o que uso para a poesia vêm de minhas percepções infantis” (BARROS, 2006, p.30).

As lembranças reconstruídas da infância confundidas com o presente da escritura revelam um jogo constante entre vida/ arte, arte/ vida. Há uma mistura, reelaboração e modificação de fatos e memórias em que o eu habita e é habitado pela vida da escritura. Dados e vivências pessoais são projetados/ transfigurados em arte. As imagens trazidas e reconfiguradas pela memória mostram-se polivalentes, incompletas e apelam para uma experimentação sensorial.

Valendo-se da tríade memória/ invenção/ recriação, o poeta promove uma auto-representação oblíqua, em que a própria construção composicional das obras é ambígua: a poesia é, por vezes, convertida/ transfigurada em uma estética da prosa.

Manoel de Barros manipula, pois, espaços e pessoas que conheceu para construir artisticamente ambientes e seres. Pela combinação de componentes da vida real e de invenções estéticas, o poeta cria novas realidades.

Para compreendermos a escritura de Manoel de Barros sob o ponto de vista da presença da autobiografia, faz-se necessário definir tal produção literária. Bakhtin (2003, p. 139) tece importantes considerações sobre a autobiografia, concebendo-a como “forma transgrediente imediata em que posso objetivar artisticamente a mim mesmo e minha vida”. Ao identificar o autor da autobiografia como “aquele outro possível”, Bakhtin conclui que o discurso autobiográfico assume sentido quando constrói unidade artístico- biográfica.

Manoel de Barros cria textos poéticos em que procura perceber “o outro em relação a si mesmo” (Bakhtin, 2003, p. 13). A transcriação de dados biográficos em fatos ficcionais promove o experimentar (de) novo e reaviva duplicidades, ambigüidades, polissemias:

Somos diferentes. Eu mexo com palavras. O outro é fazendeiro de gado. Enquanto o cidadão mantém a casa em ordem, o poeta cultiva irresponsabilidades. Eu sou rascunho de um sonho. Ele é pessoa da terra. Eu tenho um entardecer de angústias. E o outro vai pro bar se esquecer. Recebo no meu olho beijamento de águas. Me sinto um ralo de sabedoria. E o outro zomba de mim. Gosto de me multiplicar todos os dias lendo frases do Gênesis. Ele se compadece de mim. A inércia é meu ato principal. Ele mexe com bois (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 25).

O poeta deixa-se reconhecer por resíduos sígnicos, breves imagens, soluços de uma vida. Os fragmentos metonímicos selecionados de um corpo constroem redes interpretativas de sua vida. Esses “biografemas”, conforme revelou Barthes (1990, p.12), remetem a um todo maior que não é Manoel de

Barros, cidadão-fazendeiro que escreve o texto, mas um outro que se incorpora pela e na escrita à medida que esses fragmentos dão volume ao texto.

Barthes (2003, p. 108) atenta para esse aspecto de modo analógico: “os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda; todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?”. Podemos responder a esse questionamento sugerindo que no centro encontra-se o poeta “arrancado de dentro dele pelas palavras/ a torquês” (R.A.C., p. 359), ente “entorpecido de haver-se”, “escuro”, múltiplo, corpo constituído de linguagem, “ser letral” que “envesga seu idioma” e deixa pedaços de si no cisco para instaurar um novo espaço. Barthes confirma:

O autor que vem do seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto de descontínuo de amabilidades (...); não é uma pessoa civil ou moral, é um corpo (BARTHES, 1990, p. 11).

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