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CAPÍTULO 1 – A corporificação poética do espaço

1.3 Espaço e poesia

Transgredir a linguagem do poder, investigar os interstícios para descortinar saberes insuspeitados, libertar o homem para a possibilidade de assumir seus múltiplos desejos e para (re) criar o real, conjugar de modo irrealizado as palavras: eis alguns alvos da poesia.

Contracanto, agudo grito de revolta, antidiscurso que “enxameia o brilho efêmero e equiprovável de múltiplas estrelas cadentes, em oposição ao brilho fixo e estável das constelações lógicas e harmonicamente constituídas”, a poesia quer “desnudar a falsa ordem dos discursos vigentes” e operar a “desaprendizagem da fala” (SEGOLIN, 1983, p. 10).

Em um trabalho contra as forças coercitivas do significado, o poeta procura instaurar uma linguagem contra os códigos consagrados. Entendida como um ser de linguagem, que não tem compromisso com verdades estabelecidas, que se dedica às “inutilezas” e se coloca na contramão do modo de pensar dominante, a poesia tem, pois, como condição prévia o não-saber. Quer libertar-se dos limites do real para superar o conhecimento estagnado e despertar um eu insuspeitado.

Manoel de Barros, por seu gesto subversivo, dinamiza a linguagem de modo singular. A recorrência de termos que sugerem a ideia de destruição construtora – “escombros”; “ruínas” – é notória: o poeta desconstrói para fazer renascer/ germinar, pela linguagem, uma nova natureza pantaneira: “as ruínas dão árvores” (LPC, p. 198).

Procurando encenar os princípios, o poeta tenta recuperar o momento em que “as coisas só davam aspecto/ Não davam ideias./ A língua era incorporante” (LI, p. 318). Manoel de Barros faz com que a palavra volte à sua função primeira, incitando-a a refazer-se. Para tanto, põe a linguagem “em estado de emergência” (BACHELARD, 1974/ 1993, p. 11), em crise,

mergulhando em uma viagem de retorno às fontes não contaminadas, em que a reaparição do esquecido e a subversão do estabelecido inspiram uma regeneração do espaço, elevando o “ser” à categoria superior em importância.

Ao refazer a ligação com as pré-coisas, Manoel de Barros revela a essencialidade do ser. A natureza torna-se expressiva e o sentimento passa a ser corporificado na imagem. Por ser cultor da originalidade, Manoel de Barros assume que a imagem poética “transporta-nos a origem do ser falante” (BACHELARD, 1974/ 1993, p. 7). O poeta fala, pois, “no limiar do ser” (BACHELARD, 1974/ 1993, p. 2).

As imagens, inquietantes e incomuns, revestem a linguagem de conteúdos formalizados alógicos e primam por (re) descobrir a essência das coisas. Apelando para a sensação e dando nova existência à realidade, Barros desidentifica os objetos para criar novos seres e novas possibilidades de conhecimento. Para compreendermos melhor tal procedimento, tomemos uma reflexão do pintor Lapicque:

Se, por exemplo, pinto a passagem do rio em Auteuil, espero que a minha pintura me traga tanto imprevisto, embora de outro gênero, quanto o que me trouxe o curso d’água verdadeiro que vi. Nem por um instante, se trata de refazer exatamente um espetáculo que já pertence ao passado. Mas necessito revivê-lo inteiramente, de uma maneira nova e pictórica desta vez, e assim fazendo, dar a mim mesmo a possibilidade de um novo choque (LAPICQUE, apud BACHELARD, 1974/ 1993, p. 17).

Choque, estranhamento. Manoel de Barros igualmente apropria-se de uma imagem da realidade para transpô-la em imagem poética. O Pantanal captado pela visão revela-se inesperado em sua complexidade e exige do poeta a criação de um efeito de espanto para que se sinta, por meio do rearranjo inusitado das palavras, um “novo choque”. O poeta deseja que os leitores possam refazer a imagem que o tocou e sentir efetivamente, pela poesia, as sensações que o maravilharam.

O objeto, portanto, dá-se, entrega-se enquanto aparência, aparece à visão. Cabe ao poeta, pela linguagem, criar algo que pareça com aquilo que lhe

apareceu. Formada, a imagem busca aprisionar a alteridade estranhas das coisas e dos homens. Segundo Bosi,

a imagem não decalca o modo de ser do objeto, ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e construído. Dado, enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma para o sujeito. Dado: não depende da nossa vontade receber as sensações de luz e cor que o mundo provoca. Mas construído: a imagem resulta de um complicado processo de organização perceptiva que se desenvolve desde a primeira infância (BOSI, 2008, p. 22).

As imagens poéticas constroem-se por similitudes, analogias sensoriais e suas características são estabelecidas pela qualidade dos afetos, podendo configurar-se nítidas/ esfumaçadas, fiéis/ distorcidas. Bosi acrescenta que

a imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência: primeiro e fatal intervalo (BOSI, 2008, p. 19).

Ainda refletindo sobre a percepção visual, Bosi (1999) nos informa que “o olhar não está isolado, o olhar está enraizado na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade” (p. 66). Tal modo de olhar está vinculado a um procedimento de busca do “saber verdadeiro” em que o ser “conhece sentindo e sente conhecendo” (BOSI, 1999, p. 74).

Manoel de Barros não apenas identifica, mas também ilumina, desnuda a coisa contemplada. O poeta (1991/ 2010) exibe imageticamente constatações particulares advindas de uma observação sinestésica e de uma aprazível experimentação da natureza:

Sapo de noite arregala o olho pra desmedir a/ saudade. No inverno as anhumas verdejam a voz.

Na beira do entardecer o canto das cigarras/ enferruja.

Dentro da mata no entardecer o canto dos/ pássaros é sinfônico. (CCA, p. 289, 290, 291).

O poeta apregoa, portanto, o estudo do “território” não por meio de um método científico, rigoroso e racional, mas, sim, por meio de uma prática poética de rigor, flexível e sensível, em que a análise se efetiva sensorialmente: “Sabiás de outubro não delimpam seus cantos;/ os de março delimpam. Estamos estudando a/ razão disso por lâminas de cantos” (CCA, p. 293). O singular poeta mato-grossense ressalta que essa análise não necessita de instrumentos precisos, pois os olhos, nus e propensos a enxergar as coisas sob ângulos diferentes, são muito mais eficazes para a captação e a transformação de suas essências: “As 4000 estrias de um olho de mosca no verão/ irisam. Isso só pode ser visto sem microscópio” (CCA, p. 289).

Olhar poeticamente, então, dispensa o uso de lentes ou aparelhos de manipulação da realidade. Requer, pois, um revisitar das imagens, fundamentado no impacto “puro” que tal visualidade causa no poeta. A condensação do olhar com o objeto olhado cria uma nova espacialização. Não apenas se relata o presenciado, mas também se possibilita uma participação efetiva no acontecimento e no espaço experimentado.

Nesse sentido, “fazer poesia é transformar o símbolo (palavra) em ícone (figura)” (PIGNATARI, 1981, p. 14), ou seja, transfigurar o signo-para, que conduz a algo extra-verbal e é predominantemente constituído por contigüidade (proximidade), em signo-de, que quer ser a coisa representada, sem poder sê- lo e é estruturado por similaridade (semelhança).

Na obra poética de Manoel de Barros (LPC, p. 198-199) é promovida a metamorfose não só do espaço, mas também do eu-lírico: da 1ª pessoa do plural – “Há vestígios de nossos cantos nas conchas destes/ banhados” – para 1ª pessoa do singular – “há um rumor de útero nos brejos que muito me/ repercute”. Tem-se, portanto, um voltar-se sobre si mesmo.

Isso reforça o pensamento de Bosi (2008, p. 21) quando propõe que “quem quer apanhar para sempre o que transcende o seu corpo acaba criando um novo corpo”. A escolha do modo verbal, a composição cíclica do poema e o desbaste da fixidez/ rigidez da palavra deixam à mostra o exercício de

construção de um novo Pantanal promovido pelo poeta. É, portanto, “uma alma inaugurando uma forma” (JOUVE, P-J., apud BACHELARD, 1974/ 1993, p. 6), um poema instaurando um outro espaço. Manoel de Barros (LPC, p. 197) faz uso do gerúndio (“Corumbá estava amanhecendo (...). Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado”) para indicar um Pantanal em processo, que não está formado. “Da penumbra/ semi-escuridão, passando pela claridade/ sol até o lusco-fusco / pôr-do-sol”, verifica-se a busca de um conhecimento totalizante da natureza pantaneira, da vida, da poesia. O trabalho da palavra torna-a maleável, moldável, plástica.

A poesia de Barros percebe, então, o outro lado da realidade e convoca a fraternidade por meio de uma outra voz. “Sua voz é outra porque é a voz das paixões e das visões” (PAZ, 2001, p. 140) que modula a preocupação de se conjugar a humanidade para um bem comum. Paz (2001) compreende que a poesia “se ouve com os ouvidos, mas se vê com o entendimento” (p. 143). Concebe, ainda, o poema enquanto “conjuro verbal que provoca no leitor, ou no ouvinte, um fornecedor de imagens mentais” e acrescenta que “suas imagens são criaturas anfíbias: são ideias e são formas, são sons e são silêncio” (p. 143).

Promovendo a “loucura das palavras”, “voando fora da asa”, Barros (LI, p.26 e p. 21) liberta-se para atingir resultados transcendentes, transfiguradores e incomparáveis. A poética de Barros transporta-nos “para onde não se é esperado, ou ainda e mais radicalmente, [abjura] o que se escreveu (mas não, forçosamente, o que se pensou), quando o poder gregário o utiliza e serviliza” (BARTHES, 1994, p. 27).

Vista enquanto potência inicial da alma, a poesia dá abertura a ressonâncias e repercussões. No primeiro plano, ouvimos o poema e seus efeitos dispersam-se nos diferentes níveis da vida; já no segundo, falamos o poema, apropriamo-nos do ser do poeta que nos convida a um aprofundamento de nossa existência. O espaço da poesia é, pois, “a figuração, a profundidade, o lugar onde o poeta fala, no limiar da linguagem” (MUCCI, 2009, p. 46).

CAPÍTULO 2 – Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-

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