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CAPÍTULO 2 – Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-coisa

2.2 Em sintonia, poesia e vida

A poesia de Manoel de Barros teve, fundamentalmente, seu início com o livro Poemas concebidos sem pecado (1937). Passou, até os anos 60, por

Face Imóvel (1942), Poesias (1947) e Compêndio para uso dos pássaros

(1960). Entre os anos de 1960 e 1980, seguiu com Gramática expositiva do

chão (1966), Matéria de poesia (1970) e Arranjos para assobio (1980). A

partir dos anos 80, sua capacidade imaginativa e criadora deslanchou com as publicações de Livro de pré-coisas (1985), O guardador de águas (1989),

Poesia quase toda (1990), Concerto a céu aberto para solos de aves

(1991), O livro das ignorãças (1993), Livro sobre nada (1996) e Retrato do

artista quando coisa (1998). Ensaios fotográficos (2000), Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001), Cantigas por um passarinho à toa (2003), Poemas rupestres (2004), Poeminha em língua de brincar (2007) e a trilogia Memórias inventadas: a infância (2007), Memórias inventadas: a segunda

infância (2007) e Memórias inventadas: a terceira infância (2008) são seus

trabalhos literários subseqüentes.

Desde o livro de 1937, a experimentação do material verbal, em uma busca de retorno às origens da linguagem, pode ser evidenciada. De fato, o título do livro – Poemas concebidos sem pecado – já expõe a vontade do poeta de explorar o momento primeiro, onde tudo é paradisíaco e sem máculas, para criar poemas “puros”.

Manoel de Barros sente uma sedução edênica do/ e pelo mundo da palavra, em que se vislumbra a paisagem iniciática do gênesis. Em Caros

Amigos, afirma:

Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras (BARROS, 2006, p. 31).

Indagado acerca de Poemas Concebidos sem pecado, Manoel de Barros (apud CASTELLO, 1996 b) declara que o considera como o melhor de seus livros, pois ele já “tinha a noção do valor lingüístico da poesia”. Para o poeta, “poesia não é para contar história, poesia é um fenômeno de linguagem”.

Podemos perceber que Manoel de Barros adota, ao longo de sua trajetória poética, uma postura de questionamento em relação à realidade, à linguagem, à exploração e interpretação do estar no mundo, desejando valorizar a língua falada pelo povo de sua terra, mostrar os tipos humanos marginalizados e despertar para uma nova estética: rastrear o espaço experimentado, pela via da memória e das sensações, para recriá-lo.

Manoel de Barros (1960/ 2010, p. 93) indicia seu objetivo criador por meio de um verso de Guimarães Rosa, em Compêndio para uso dos

pássaros, que afirma: “não entender, não entender até se virar menino”. A

apreensão do espaço, por meio dos olhos e da imaginação infantis, leva o poeta e os leitores a efetuar associações por semelhanças, equivalências e paralelismos. Há a suspensão da “correção gramatical” para dar lugar à criação e à reelaboração do código lingüístico.

Remetendo-se ao manual de ensino difundido entre as décadas de 60 e 70 – Gramática Expositiva da Língua Portuguesa –, Manoel de Barros (1966/ 2010) constrói sua Gramática Expositiva do Chão. Nesta obra, manifesta a real possibilidade de conhecer as coisas e suas leis para, então, poder mudá- las e inventá-las.

Manoel de Barros afirma que seus poemas precisam ser sentidos e não somente entendidos. Ao discorrer sucintamente sobre a lua, o pássaro, o córrego, o mar, o sol, a estrela, o caramujo, a árvore, a rã, a formiga e a pássara, Barros cria novos comportamentos para as coisas, e nos chama a perceber que seu poema está “contaminado de pássaros, de árvores, de rãs” e que sua gramática se apóia nessas “contaminações sintáticas” (GEC, p. 137). O poeta sistematiza e estuda os elementos constituintes do chão a seu modo, promovendo a crise da linguagem. A falta de pontuação assinala a casualidade do recolhimento das coisas pobres e recusadas pela sociedade de consumo.

Nesse sentido, segundo Berta Waldman (2009), na poética de Manoel de Barros,

a eleição da pobreza, dos objetos que não têm valor de troca, dos homens desligados da produção (loucos, andarilhos, vagabundos, idiotas de estrada), formam um conjunto residual que é a sobra da sociedade capitalista; o que ela põe de lado, o poeta incorpora, trocando os sinais.

O poeta recolhe resíduos, lixos sociais, e os transforma em ouro poético. Enfaticamente o poeta afirma:

Sou mais de monturo para a poesia. Monturo guarda no ventre a semente das árvores e das plantas. Guarda nossos resíduos, nossos mijos e ciscos de passarinhos (...) Monturo é lugar (...) em que os pobres-diabos fazem continências para moscas (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 53).

Também a partir da leitura de entrevistas de Manoel de Barros, podemos constatar seu olhar para baixo, seu gosto pela pequenez, por tudo aquilo que a sociedade em geral rejeita:

Vejo melhor o cisco. Minhas palavras aprenderam a gostar do cisco, isto é, da palavra cisco. E das coisas jogadas fora, no cisco. Pra ser mais correto: as coisas que moram em terreno baldio (BARROS, 2006, p. 31).

Coisas sem préstimo, ciscos, inutensílios, monturos, palavras a ponto de entulho e de traste, perpassam toda a sua poética. Além de “catar inutilezas” – metaforicamente expressas por pregos que “não exercem mais a função de pregar” (TGG, p. 410) –, fazendo reaparecer aspectos relegados ao esquecimento e à depreciação, Manoel de Barros critica o mundo globalizado, que tem experiência com preços, mas não com valores, cujo discurso dominante determina a valorização do “ter” em detrimento do “ser”. O poeta, metaligüisticamente, aproxima a tarefa do “catador” ao seu próprio fazer poético: resgate de realidades desprezadas para desembocar em uma regeneração da sociedade, elevando o “ser” à categoria superior: “Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser./ Garante a soberania de Ser mais do que Ter” (TGG, p. 410).

Em Matéria de poesia, Manoel de Barros (1970/ 2010) reitera que as coisas esquecidas e renegadas são extremamente proveitosas para a poesia. O poeta realiza inumeráveis descobertas ao longo do livro:

Rios e mariposas/ Emprenhadas de sol/ Eis um dia de pássaro ganho (p. 162)

O bicho esquecido que era de palha/ Prendeu-se nas cores de maio (p. 162-163)

Anos de estudos/ e pesquisas:/ Era no amanhecer/ Que as formigas escolhiam seus vestidos (p. 163)

Eu me atrapalhava de mato como se ele/ invadisse as ruínas de minha boca e a enchesse/ de frases com morcegos (p. 164).

Dessa maneira, Manoel de Barros elabora experiências com a linguagem, tornando visível um mundo às avessas, um espaço inaugural, em que os seres desimportantes funcionam espontaneamente “em pleno uso da poesia, sem apertar o botão” (MP, p. 155).

Manoel de Barros nos ensina (2001/ 2010), em Tratado geral das

grandezas do ínfimo, que, para criar poesia, é necessário compreender que

ela “está guardada nas palavras” e que se eterniza por meio de “graças verbais”. O poeta afirma: “Não tenho pensa./ Tenho só árvores ventos/ Passarinhos – issos” (TGG, p. 412). Em meio a miudezas, Barros descobre motivos para poetar.

Nascido em 1916, no Beco da Marinha, às margens do rio Cuiabá, Manoel de Barros “cresceu brincando no terreiro em frente à casa, pé no chão, entre os currais e as coisas desimportantes que marcariam sua obra para sempre” (NOGUEIRA JR., 2011)3. Segundo Barros (apud NOGUEIRA JR., 2011), “ali o que eu tinha era ver os movimentos, a atrapalhação das formigas, caramujos, lagartixas. Era o apogeu do chão e do pequeno” (NOGUEIRA JR., 2011). Com oito anos, passou a estudar em um colégio interno em Campo Grande e, depois, no Rio de Janeiro. Lá começou a apreciar o grande virtuosismo no domínio da língua do padre Antonio Vieira. Para o poeta, Vieira despertou o gosto pela frase, pela sintaxe, pela construção sofisticada. Barros acredita que com Vieira aprendeu a construção da poesia, pois seus textos causavam espanto pelas revelações e efeitos de seu jogo de raciocínios que, por vezes, se aproximavam do maravilhoso. Sua juventude foi permeada por pessoas engajadas politicamente, leu Marx e formou-se bacharel em Direito nos anos 40. A partir de então, começou a produzir e publicar trabalhos literários de qualidade incontestável. Viajou pela Bolívia, Peru e Nova York, onde fez curso sobre cinema e pintura moderna. Ao regressar ao Brasil, casou- se com Stella e tornou-se fazendeiro a fim de “adquirir independência econômica para comprar o ócio” e assumir de vez o Pantanal. Atualmente, mora em uma casa cheia de encantos e de esconderijos, de pequenos jardins internos, nos quais passarinhos vêm cumprimentá-lo. O escuro e misterioso escritório, no qual Barros tranca-se de sete horas ao meio-dia para escrever, ler e imaginar, situa-se em um pequeno cômodo do segundo andar. Em sua       

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 As informações biográficas sobre Manoel de Barros foram extraídas de NOGUEIRA JR. (2011). Projeto releituras: Manoel de Barros. Disponível em

“toca”, Manoel de Barros faz escavações, percorre séculos para descobrir o esgar inaugural e primeiro de uma palavra, além de arrumar versos, frases e desenhar bonecos.

Manoel de Barros, por vezes, procura fazer um recorte do momento criador do artista. Interesses, reflexões, reinvenções, delírios, saberes primeiros, desejos, emergem e clarificam seu fazer poético. Enxerga, desse modo, tudo que o rodeia com olhos transformadores e sente a necessidade de mostrar as curvas dos versos e seus enleios. Nestes versos, afirma:

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa.

Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa.

Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu a imagem.

      (LI, p. 303)

Manoel de Barros nos mostra que as metáforas são fundamentais e enriquecedoras na construção da imagem, pois são alheias às compreensões previamente determinadas de mundo: o rio é apresentado como “um vidro mole e uma cobra de vidro”. Além disso, o poeta alude ao fato de que a visão imagética do momento tende a perder um pouco de seu encantamento quando recebe um nome ou um conceito, pois torna universal, imutável, inquestionável, uma percepção particular, transitória, única e sensível. Barros manifesta, por exemplo, que a palavra ‘enseada’ não consegue representar, em totalidade, a sensação que a imagem nele suscita. O leitor deve visualizar mentalmente a curva do rio para conseguir acompanhar as curvas que seus versos fazem.

O poeta faz até mesmo uso da ideia da fotografia para promover explorações lingüísticas inusitadas em Ensaios fotográficos (2000/2010). Procura fixar, pelas palavras, elementos que não podem ser normalmente fixados – o silêncio, o perfume, a existência, o perdão, até mesmo uma metáfora –, deixando-se invadir pelo reino das imagens, examinando o processo de criação poética e apresentando novos comportamentos para as

coisas. As imagens, desse modo, configuram-se como excessos, derramamentos sem contensão, da visualidade e da espacialidade.

Com Poemas Rupestres (2004/ 2010), o modo singular de olhar, de mexer com as palavras, de produzir renovações e inaugurações lingüísticas “desabre”. A partir de um caranguejo “muito se achante”, que “se achava idôneo para flor, parecia que estava montado num coche/ de princesa e voltou a ser idôneo para/ mangue” (p. 433), Manoel de Barros exprime que pode atingir a “palavra no áspero dela”. Com o olhar “cheio de sol/ de águas/ de árvores/ de aves”, o poeta brinca com as palavras, revestindo-as de qualidades inesperadas e investe seres e espaço de novas funcionalidades.

Quando questionado sobre o aspecto regionalista em sua obra, Manoel de Barros revela que, em sua poesia, há sempre um “lastro de ancestralidade”, porém, para ele, o que importa não é o mero registro descritivo de lugares, bichos, coisas da natureza de um determinado espaço, mas, sim, a maneira de se “mexer com as palavras”. Barros (apud CASTELLO, 1996a) acrescenta que é bom, ao final, restar um “cheiro de coisa do chão”, no entanto, mais interessante que o regionalismo é o reinventar das coisas, o “transfigurismo pela palavra”.

Com o Livro de pré-coisas, Roteiro para uma excursão poética no Pantanal, Manoel de Barros (1985/ 2010) quer anunciar, por meio de uma linguagem poética transformadora, as “pré-coisas”, as paisagens e os seres do Pantanal. Como declara Silva (2003):

A poesia de Manoel de Barros recria o Pantanal sul-mato- grossense, retratando-o em suas minudências: os seres ínfimos, as águas, os bichos, as árvores, as pedras – mundo de musgos, de lagartos e de palavras bafejando halo de vida. Traz a memória das coisas esquecidas, desnuda o chão e mapeia seus componentes (SILVA, 2003).

A paisagem retrata não a realidade física da região, mas uma outra criada pela palavra. Manoel de Barros, em entrevista concedida a Thaís Costa, publicada na revista Executivo Plus, revela:

Sou apenas um inventador do Pantanal. Nunca estudei essa região (...) eu apenas invento, embora a invenção das coisas possa, muitas vezes, ser mais real do que a realidade (COSTA, 2010).

O poeta parece acrescentar porções inventivas a cada dado do real concreto. Nesse sentido, podemos sugerir que o poeta recolhe reminiscências do passado e as recria, reerguendo-se do que ele próprio denomina “torpor poético”.

Barros (2007/ 2010) usa como epígrafe de Memórias inventadas: a infância, uma frase instigante que permeia seu fazer poético: “Tudo o que não invento é falso”. As imagens poéticas, obtidas por meio da matéria verbal, apresentam fortes e marcantes referências ao espaço que o circunda, porém são transformadas e recriadas por ele. Em estado de “pré-tudo”, busca um contato direto com a realidade e um entendimento por aderências e incrustações. O mundo vegetal e coisal, pertencentes ao mundo poético sem limites, encontram-se em estado de espera para fulguração criadora: não são mais, estão em estado de para ser.

No documentário “Só dez por cento é mentira”, o cineasta Pedro Cezar (2010), apropriou-se dessa fala instigante do poeta para mostrar mais a poesia do que a vida do próprio poeta. Quis dar a ideia de sua linguagem e transpor, em imagens, sua inusitada escrita poética. Colocou em primeiro plano as coisas miúdas e desimportantes da natureza – insetos, caramujos – e aquelas descartadas pelo homem – aparelhos quebrados, objetos enferrujados, pneus usados, carroças sem uso, sucatas. Os tons de ocre das imagens projetadas e os acordes da viola criam uma atmosfera que nos leva a experenciar os tons da poesia de Manoel de Barros.

Ao integrar-se à natureza, transformando-a e transformando-se, Manoel de Barros imprime importância aos sons e aos olhares, demonstrando o quão sensível deve ser o leitor para captar múltiplas sensações, percepções e estímulos sensoriais.

Barros convive com as palavras, é descoberto e descobre-lhes o funcionamento, a relação com o mundo que instaura poeticamente: “Aflora uma linguagem de defloramentos, um/ inauguramento de falas” (GA, p. 265). Há,

pois, o esplendor de uma reconfiguração do espaço que quer “desver o mundo para encontrar nas palavras novas coisas de ver” (MM, p. 449).

2.3 “Antesmente”, poesia e pré-coisa

A invenção poética de Manoel de Barros quer andar na “contravia” das coisas, desaprender para, enfim, “fazer nascimentos”. Ao encenar a linguagem em vez de simplesmente utilizá-la, o poeta trabalha e toca as palavras não como simples instrumentos, mas as lança no poema como “projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores” (BARTHES, 1994, p. 21).

O poeta combina vocábulos de maneira imprevista, promove o delírio da palavra, trapaceia a língua, enche de glórias seres pequeninos e ínfimos, preza o desprezível a fim de realizar uma resistência aos sistemas de ideias convencionais. Anuncia veementemente que as verdadeiras e valiosas descobertas resultam da “ignorãça”:

Como é que eles [os adivinhos, os videntes, os bruxos, os urgos] podem dizer: ‘Vi a tarde se encolher no olho de um pássaro.’ (...) ‘Os carrapichos não pregam no vento’ (...) Essas descobertas vêm da ignorância (BARROS, apud CASTELLO, 1996a).

E complementa:

A mais pura ignorância é saber explicar o caminho dos pássaros, das águas, das pedras, dos sapos. É estar no início onde tudo ainda não foi explicado, é estar no reino de poesia. Aqui a gente só sabe pelos ventos, pelo sol, pelas chuvas, pelos sons, pelas formas, pelos cheiros. Quando a gente ainda está em estado de árvore é que pode sentir os enleios dos cantos. E enxergar os perfumes do sol. (BARROS, 1998, p. 8).

Manoel de Barros ainda afirma que “para enxergar as coisas sem feitio é preciso/ não saber nada. É preciso entrar em estado de árvore. É preciso entrar em estado de palavra” (RAC, p. 363). Reitera quando diz:

Buscar esse estado de inocência há de ser uma fuga. É também procura de essência. Busca de minadouros. Aventura humana atrás de natências (...). Penso que arte, em todos os tempos, é busca do adâmico em nós, do olhar que viu pela primeira vez o mundo e o melhor ser em nós é o que ainda não passou perto das vilanias, das traições etc. Parece que há no artista um profundo desejo de recuperar o tatibitate, a forma ainda embrionária da palavra (BARROS, apud MÜlLLER, 2010, p. 145).

Nessas falas, “inocência” ganha sentido de ignorância, não como falta de saber, mas como necessidade de buscar o não-sabido, o saber puro. O poeta considera a procura por esse “estado de inocência” como fuga – promotora de uma escritura na contramão do pensar habitual –, como propulsora do interesse pela essência e como ponto privilegiado de observação de largo horizonte das coisas sem nome e sem glória, do nada que encerra tudo.

O que Manoel de Barros contempla como poesia resume-se, pois, no retorno às pré-coisas, às “despalavras”. Para renovação do mundo e do poema, torna-se fundamental revisitar as palavras ainda em gestação, as coisas inominadas, o recanto que “era só água e sol de primeiro” (LPC, p. 209), os seres descobridores de um mundo por infusão: “Vou sendo incorporado pelas formas pelos/ cheiros pelo som pelas cores” (RAC, p.360).

Rascunhos de vida, teias ainda sem aranhas, olhos ainda sem luz, penas sem movimento, remendos de vermes, bulbos de cobras, arquétipos de carunchos, rudimentos, indícios, germes das primeiras ideias, embriões dos atos revelam a busca pela primeiridade para “corromper, irromper, irrigar, recompor” a “inauguração de um outro universo” (LPC, p. 204).

Coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser ideia ou pensamento, pré-coisas. No “reino da despalavra”, o poeta arboriza os pássaros, humaniza as águas, aumenta o mundo com suas metáforas. Desbasta a palavra “até os seus murmúrios” para produzir uma coisa original “como um dia ser árvore” (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 88). Compreende o mundo sem conceitos, torna-se pré-coisa. Nesse ponto, desenha o cheiro das árvores, escuta a cor dos passarinhos, desaprende, transvê.

Verifica-se, assim, as vantagens de ser bugre, que pega por desvios e vê o miúdo primeiro. O poeta recebeu do bugre uma “carga primal”, um “gosto casto”, um “gosto de inocência”: “bugre não sabe a floresta; ele sabe a folha. Enxerga o movimento das formigas e tem devaneios” (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 84).

Manoel de Barros nos indica que, para se alcançar as pré-coisas, é necessário observar as coisas:

Tenho de ficar prenhe primeiro. Depois vêm períodos de desânimo, vômitos – igual gestação para ter criança. Durante o período de gestação a gente lê dicionário, espanta mosca, toma nota de sintaxes alheias, ouve música, escuta as formas e as cores das coisas (...) Tudo isso vou anotando em caderninhos. É uma forma desnatural de conseguir algum poema (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 146).

Barros, em caminho circular, vem do “oco do mundo” e vai para o “oco do mundo” (LPC, p. 214). É nesse percurso que se torna poeta: “Não apenas um poeta que escreve, mas um poeta que, antes de tudo, percebe os nascimentos do mundo, para com essa prática vencer o clichê” (SOUZA, 2010, p. 51).

CAPÍTULO 3 – Pantanal e Poesia: homologias e

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