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CAPÍTULO 3 – Pantanal e Poesia: homologias e transfigurações

3.1 Reespacialização pelo olhar

No poema “Anúncio”, que serve de prefácio ao Livro de pré-coisas (1985/ 2010), Manoel de Barros trabalha com os termos anúncio (aviso, notícia, prenúncio)/ anunciação (ação de anunciar), enunciado (que se enunciou)/ enunciação (ação de enunciar) de modo integrador. As “pré-coisas” de poesia mostram-se duplas – dadas e construídas – e os enunciados articulam-se para produzir um efeito analógico. O prefixo indicativo de anterioridade deixa claro que o poeta quer modificar o comportamento das coisas, humanizá-las, vê-las de um modo diferente para, enfim, transcriar a realidade pela linguagem. A palavra poética de Barros procura captar as coisas em gestação para surpreendê-las em seus momentos inaugurais.

A natureza é tomada pela doença, pelo desvio de sensibilidade do poeta – “Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza” (LPC, p. 197):

De repente um homem derruba folhas. Sapo nu tem voz de arauto. Algumas ruínas enfrutam. Passam louros crepúsculos por dentro dos caramujos. E há pregos primaveris... (Atribuir-se natureza vegetal aos pregos para que eles brotem nas primaveras... Isso é fazer natureza. Transfazer(LPC, p. 197). Manoel de Barros quer desvelar uma natureza viva e trazer à tona as insignificâncias naturais. Ao engrandecer o pequeno, o poeta cria uma nova espacialização pelo olhar. Acredita que “o olho vê, a lembrança revê as coisas e é a imaginação que transvê, que transfigura o mundo, que faz outro mundo para o poeta e para o artista de modo geral” (BARROS, 2002). O poeta sustenta que o artista não apenas vê, mas tem visões. Visões estas que contém imagens e transfigurações. A esse respeito Barros reitera que

o poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mal (BARROS, apud CASTELLO, 2006).

Primando por descortinar novas perspectivas, suscitar estranheza e despertar diversas reações no leitor, Barros procura enxergar, no visível, sinais invisíveis. Ensina-nos que “beleza e glória das coisas o olho é que põe. (...) É pelo olho que o homem floresce” (LPC, p. 224). Cria, pois, uma poética pictórica, plástica, que absorve modos de composição de outras artes. Da pintura, por exemplo, tenta absorver a expressão apresentada em um espaço bidimensional, que realça, na tela, elementos estéticos, como a figura, a forma, a textura, a cor. Faz o poeta, no entanto, uso das potencialidades da palavra, levando-a a conquistar um espaço tridimensional. A esse respeito Pessanha revela:

O texto, feito de seqüências, cesuras, ritmos, passagens, possui liquidez, escorrendo como água itinerante de significações. Por isso, o espaço – a folha de papel – não consegue aprisionar inteiramente a escrita, nem coagular a leitura. (...) O texto mal pousa sobre o espaço: ele voa, adeja por ali ele apenas passa (PESSANHA, 1999, p. 159-160).

Assim, o texto poético de Manoel de Barros é fluido, ambíguo, móvel. Alcança, pois, a pluridimensionalidade ao permitir que as palavras não signifiquem, mas entoem, transcendendo-as dos limites do papel.

Aquele dia eu vi a tarde desaberta nas margens do rio.

Como um pássaro desaberto em cima de uma pedra na beira do rio.

Depois eu quisera também que a minha palavra fosse desaberta na margem do rio.

Eu queria mesmo que as minhas palavras fizessem parte do chão como os lagartos fazem.

Eu queria que minhas palavras de joelhos no chão pudessem ouvir as origens da terra (MM, p. 461).

Manoel de Barros faz uso de modos imagético-pictóricos para ter acesso ao real e presentificar o espaço. O gênero da pintura mais assimilado por Manoel de Barros é o retrato, não apenas de pessoas, mas de cenas que visam à representação da essência e não apenas da aparência externa. Como afirmou Aristóteles, “o objetivo da arte não é apresentar a aparência externa

das coisas, senão o seu significado interno; pois isto, e não a aparência e o detalhe externos, constitui a autêntica realidade” (AYMAR, 1967).

Em “Retratos a carvão” (PCP, 1937/ 2010), Manoel de Barros representa as personagens como bichos ou como seres postos à margem. “Polina” é descrita como “um bicho muito pretinho com pouca experiência de sofrimento/ mas pra sua idade o suficiente” (p. 25). “Cláudio” (p. 26), o arameiro, de tão só e sujo se irmanava ao magro jacaré, compartilhando, com ele, a pouca água da região. “Sabastião” era “diz-que louco daí pra fora” (p. 27). “Raphael” era um “pouquinho miserável”, “um menino do mato sem importância” (p. 28-29). O material usado para retratar é o carvão, rocha sedimentar mineral formada a partir de plantas acumuladas em pântanos que se decompõem, o que reitera o aproveitamento dos restos para composição do poema. Manoel de Barros demonstra, ao retratar tais personagens desse modo, que virar coisa “decomposta” significa recuperar o poético e a própria liberdade inventiva.

Embora o retrato tenda a fixidez e a estaticidade, Manoel de Barros recupera em seus poemas o movimento pelo dinamismo e pela fluidez da linguagem mosaicada.

O poeta elenca uma série de pertences de uso pessoal de um homem “que entrara na prática do limo” (GEC, p. 121), dispostos de forma aleatória, encerrando sua exposição com uma tela, que é descrita por Dr. Francisco Rodrigues de Miranda, amigo do homem que fora preso. Revela tudo aquilo que a sociedade em geral rejeita e recolhe em sua temática:

o artista recolhe neste quadro seus companheiros pobres do chão: a lata a corda a borra vestígios de árvores

etc.

realiza uma colagem de estopa arame tampinha de cerveja pedaços de jornal pedras e acrescenta inscrições produzidas em muros (...)

tudo muito manchado de pobreza e miséria que se não engana é da cor encardida entre amarelo

e gosma.

Colagem, justaposição de objetos jogados fora, são procedimentos empregados pelo poeta. Quando trata da confecção do retrato de outro homem, Barros reúne, mais uma vez, materiais desprezados: “um homem pegava, para fazer seu retrato, pedaços de tábua, conchas, sementes de cobra” (MP, p. 164).

Em “Autorretrato” (EF, p. 389), tomamos conhecimento tanto do nascimento do poeta na beira do rio, quanto da produção de desobjetos e de suas “mortes”, motivadas pela escritura de 14 livros.

Já no poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, Barros compõe cenas contemplativas do Pantanal e da arte de poetar, promovendo a “ocupação da palavra pela Imagem” (GA, p. 263).

 

O poeta defende que o homem precisa sair dos “veios comuns do entendimento” (GA, p. 265) em direção a algo estranhador. No momento em que o homem se torna “coisal”, instala-se nele uma “agramaticalidade quase insana que empoema o sentido das palavras” (GA, p. 265). À obra de Ovídio, Manoel de Barros propõe um “novo estágio”: a criação de uma língua própria para os “entes já transformados”; um dialeto “coisal, larval, pedral”, que seria composto por uma linguagem “madruguenta, adâmica, edênica, inaugural” (GA, p. 266). Para tanto, tornar-se-ia imprescindível retornar aos momentos primeiros da infância e “reaprender a errar a língua” (GA, p. 266). O erro, pois, é considerado transmutante e renovador em sua peregrinação poética.

Em seus “emaranhos” lingüístico-pictóricos, Manoel de Barros examina, com atenção, o processo de criação artística de pintores em uma tentativa de aplicar tais procedimentos em sua poética. Toma de empréstimo o título “Máquina de Chilrear” de um quadro de Paul Klee (1922), unindo, em poesia, tudo o que é julgado imprestável, transformando-o em uso doméstico. Reflete, também, sobre seu próprio fazer poético, valendo-se de Miró: expressão fontana, presença de ritualismo, entendimento dos restos como engenharia de cores. Revela, ainda, que “um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh” (LI, p. 301), ao enfatizar que o trabalho do pintor, assim como o do poeta, resume-se em dar ressonância artística à essência das coisas. Cria, ademais, um pintor imaginário, Quiroga, para sugerir que a arte pode estar ligada aos elementos essenciais da natureza.

A escolha do pintor suíço Paul Klee (1879-1940), considerado um artista da essência, não é ocasional, uma vez que, atento às energias e vibrações, Klee buscava o mundo interior e pintava o que os olhos não enxergavam. É o que se observa na tela:

“A máquina de chilrear” Paul Klee, 1922

http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/ECAP- 7QRH3M/1/iluminuras_wan_sssa_cruz.pdf

É interessante notar que Paul Klee, ao nomear sua obra, coloca lado a lado elementos díspares: máquina – aparelho construído pelo homem para produzir ou transformar energia, termo que nos remete a algo não produzido

pela natureza, mas por uma técnica específica; e chilrear – gorjear, emitir sons repetidos a pequenos intervalos; que nos indica algo espontâneo, pertencente à natureza.

O pintor, por meio não só da cor azul, que simboliza o céu, habitat natural das aves que chilreiam, mas também das leves e finas pinceladas que se assemelham a gravuras rupestres, cria um espaço experimental na tela para materializar pictoricamente o som. Das aves de longas patas, sobressaem-se os bicos que pipilam. Do lado direito da tela, destaca-se uma espécie de manivela, que pretensamente serviria para impulsionar os sons dessas aves. Paul Klee pinta, então, o que ele entende por arte: fragmentação/ diluição do objeto para se alcançar e manipular plasticamente sua essência.

Manoel de Barros, com seu poema a “Máquina de chilrear e seu uso doméstico” (GEC, 1966/ 2010), cria textos poéticos interseccionados, com imagens cambiantes, flexíveis e significados móveis e fragmentados. Os sons que se escutam em sua poesia são vozes emaranhadas de seres da natureza que parecem “vir de um poço escuro” e que traduzem sentimentos profundos:

O SOL (sobre caules de passarinhos e pedras com rumores de rios antigos)

– Iam caindo umas folhas de mar sobre as casas dos homens. O CÓRREGO (no alto de seus passarinhos)

– Ervas e grilos crescem-lhe por cima (GEC, p. 136)

O poeta fala, por metáfora, o que entende por poesia: artesania que prima por descortinar a natureza do ser. Volta-se, portanto, para a primeiridade. Tal aspecto também pode ser verificado a partir do poema “Miró”:

Para atingir sua expressão fontana

Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros.

Desejava atingir a pureza de não saber mais nada. Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo do quintal à busca de uma árvore.

E ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo que havia aprendido nos livros.

Depois depositava sobre o enterro uma nobre mijada florestal.

Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de insetos, cascas de cigarra etc.

A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia de cores.

Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um dejeto de mosca deixado na tela.

Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha escura.

O escuro o iluminava.

(EF, p. 385)

Com este poema, Manoel de Barros deixa claro como compreende a obra do pintor catalão. O desconhecer guiava sua criação artística. De fato, em entrevista a Georges Raillard, Miró declara:

Durante o trabalho, nada. Nada, em absoluto. Não olho a paisagem, que é magnífica. Há poucas janelas, e ainda fecho as cortinas. Nada, nada, nada. O que me excita quando trabalho é isto aqui: esta manchinha branca no chão (MIRÓ, apud RAILLARD, 1992, p. 41).

A busca pela “expressão fontana” é perseguida pelos dois criadores. Miró (apud RAILLARD, 1992, p. 73) sustenta que “é preciso esgaravatar a terra para encontrar a fonte; é preciso escavar”. Manoel de Barros, observando metaforicamente o trabalho de arqueólogos – “dois homens sentados na terra o dia inteiro escovando osso; queriam encontrar vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão” (MII, 2003, p. I)–, pensa igualmente em “escovar”, não ossos, mas palavras. Por acreditar que as palavras são “conchas de clamores antigos”, Barros escava “oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas” para escutar “os primeiros sons” e descobrir “o primeiro esgar” de cada palavra.

Miró (1893-1983) preferia pintar com os dedos. Manoel de Barros faz nascimentos na ponta de seu lápis. O interesse pelo ínfimo é notório em ambos. Miró revela que, no plano espacial de sua tela, “um talinho de capim tem mais importância do que uma grande árvore; uma pedrinha, mais do que uma montanha; uma libelulazinha, tanta quanto uma águia” (MIRÓ, apud RAILLARD, 1992, p. 54). Manoel de Barros (TGG, p. 407-408), no espaço do poema “Sobre importâncias”, procura reavaliar aquilo que apreende por meio de seu olhar distorcido: "o pingo de sol é mais importante do que o esplendor

do sol nos oceanos”; “as pombas são mais importantes do que o prédio de estilo bizantino do século IX”; “o sabiá é mais importante do que a Cordilheira dos Andes”. Ao término do poema, o poeta assume: “Eu, por certo, não saberei medir a importância das/ coisas: alguém sabe?/ Eu só queria construir nadeiras para botar nas/ minhas palavras”.

Em “A fazenda” (tela pintada em 1921-1922), Miró explica: “Dei dimensão ao espinho porque ele me interessava do ponto de vista plástico. Precisava chegar a uma nova plástica. Um único espinho é o resumo de todas as outras plantas” (MIRÓ, apud RAILLARD, 1992, p. 54).

Seres pequenos e o próprio solo são retratados em suas minúcias. A árvore ocupa posição central na tela, porém o que ganha destaque é o detalhamento de seu tronco, repleto de espinhos. A interioridade, a essência, são postas, também, em realce. A questão da profundidade é trabalhada para se alcançar o equilíbrio.

http://www.quadrosepinturas.com.br/pintura-reproduc-o-replica-de-joan-miro-a- fazenda-em-oleo-sobre-tela.html

Já em “Campo arado” (tela de 1923-1924), Miró busca construir a imagem artística de modo diferente: “A escolha dos planos não seria feita segundo a perspectiva e, sim, segundo uma escolha afetiva. Escolho os animais, as plantinhas tudo o que tem ritmo. Os caracóis, as lagartixas” (MIRÓ, apud RAILLARD, 1992, p. 56).

A respeito dessa deshierarquização dos elementos do quadro de Miró, João Cabral de Melo Neto (1952) esclarece:

À ideia de subordinação de elementos a um ponto de interesse, ele substituiu um tipo de composição em que todos os elementos merecem um igual destaque. Nesse tipo de composição não há uma ordenação em função de um elemento dominante, mas uma série de dominantes, que se propõem simultaneamente, pedindo do espectador uma série de fixações sucessivas, em cada uma das quais lhe é dado um setor do quadro. (...) o que Miro obteve foi uma desintegração da unidade do quadro (MELO NETO, p. 12-13).

  http://artistoria.wordpress.com/2010/02/15/surrealismo/

O aparato compositivo criado no quadro produz no espectador “uma sensação de que [a figura] se vai precipitar, mudar de lugar” (MELO NETO, 1952, p. 15). Há uma exploração das possibilidades dinâmicas da superfície, um desejo de “obter, com sua linha, melodias absolutamente livres das

limitadas melodias admitidas pela pintura fundada no Renascimento” (MELO NETO, 1952, p. 19).

Barros, do mesmo modo, mas com suportes diferentes, propõe a desintegração/ diluição em sua obra poética ao multiplicar poemas dentro de um poema, livros dentro de um livro, obrigando o leitor a recompor essas criações descontínuas. No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), por exemplo, o poeta apresenta-nos a “Parte XIX”, intitulada novamente “livro de pré-coisas”, de um Tratado de Metamorfoses, deixado por um “ente irresolvido entre vergôntea e lagarto” (LPC, p. 218). O suposto autor desse livro é indefinido assim como os poemas dele coletados. Versos curtos e entrecortados, ou mais longos e ritmados, lançam-se dinâmica e instantaneamente ao leitor como experiências estéticas e críticas com a linguagem:

Sorna lagarta curta recorta a roupa de um osso (p. 219).

Essa abulia vegetal sapal pedral – não será de/ ele ter sido ontem árvore? (p. 220).

Flores engordadas nos detritos até falam (p. 221)

Ao se desvencilhar da hierarquização das figuras que compunham seu quadro, Miró dá aos seres naturais constituições e poderes humanos: “Para mim, uma árvore não é uma árvore, algo que pertença à categoria do vegetal, mas uma coisa humana, alguém vivo (...) às vezes ponho um olho ou uma orelha nas árvores. É a árvore que vê e que ouve (MIRÓ, apud RAILLARD, 1992, p. 56).

Manoel de Barros igualmente conjuga qualidades dos diferentes reinos – animal, vegetal e mineral – para promover trocas imanentes, em que um ser se identifica a outro e o espaço se compõe harmonicamente. Em sua poética, os seres revelam uma essência divina: “Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh” (LI, p. 301). De fato, Van Gogh (1853-1890) justifica sua dedicação à pintura como uma missão: ser útil ao mundo e desvelar suas crenças – “Trate de compreender a última palavra do que dizem as obras de arte, os grandes artistas, os mestres mais sérios, e verá Deus ali dentro. Alguém o escreveu ou

disse num livro e alguém o fez num quadro” (VAN GOGH, apud Russo, 2007, p. 17).

A incidência da luz e o movimento obtido por meio de pinceladas soltas tornam-se fundamentais na pintura de Van Gogh. A escolha de cores primárias ilustra o desejo de obter composições puras. Os girassóis, pintados com apenas uma gama de cor, o amarelo, com sutis matizes e linhas vermelhas e azuis finas, fazem parte de um conjunto de obras sobre o mesmo tema.

  http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Van_Gogh_Twelve_Sunflowers.jpg

Van Gogh reconhece a importância simbólica dos girassóis ao imbuir em tais flores aspectos representativos de sentimentos como a amizade, a esperança e a gratidão. Isso o leva a admitir: “Eu tenho um pouco de girassol” (Van Gogh apud Russo, 2007, p. 56). Manoel de Barros igualmente vê-se indissoluvelmente ligado a sua poesia ao ponto de afirmar: sofro de árvores (CUP, p. 115).

Inventa poeticamente, por fim, um pintor, Rômulo Quiroga – criação poética de Manoel de Barros, embora exista como pintor de paredes que presta serviços à família do poeta (apud Menegasso, 2001) – e descreve-o como “artista iluminado; ser obscuro” (LSN, p. 349-350) para assimilar uma pintura primitiva em que as tintas eram obtidas a partir de elementos colhidos da natureza:

Ele mesmo inventava as suas tintas. Trazia dos matos caldos de lagarta (era seu verde), seiva de casca de angico (era seu vermelho), polpa de jatobá (era seu amarelo). Não sei como ele dava liga nos seus pigmentos. Talvez usasse pocas de piranhas, derretidas. Pintava sobre sacos de aniagem. Um dia me mostrou um ancião de cara verde, que acabara de pintar. Eu lhe disse: “Mas, Rômulo, o verde não é a cor da esperança, da juventude?” Respondeu que para ele era a cor da melancolia. Que os anciãos têm saudades dos verdes anos. E acrescentou: a minha cor é psíquica e as minhas formas são incorporantes: eu sempre estou nelas com os meus antepassados (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 96-97).

É interessante verificarmos como Manoel de Barros parece descrever seu próprio fazer poético por meio da observação da pintura de Quiroga: exploração de materiais primitivos/ primários; percepção sensível e alógica; uso de cores psíquicas/ palavras imagéticas e formas incorporantes. Podemos, ainda, refletir sobre esse comentário de Manoel de Barros quando transposto poeticamente:

Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano) A expressão reta não sonha.

Não use o traço acostumado.

A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.

Arte não tem pensa:

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo.

Isto seja:

Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo;

Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo.

Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall. Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por

aí a desformar.

(LN, p. 349- 350)

De Quiroga, Barros acolhe outra noção importante para sua criação poética: perseguir a expressão torta, repleta de enleios, que “só pega por desvios” (LI, p. 319), passo imprescindível para a transfiguração. Nesse sentido, podemos recorrer à ideia desenvolvida por Bosi quando revela que:

por metáfora redutora se dirá que é “círculo” um poema onde há ressonância e retorno. Frases não são linhas. São complexos de signos verbais que vão se expandindo e desdobrando, opondo e relacionando, cada vez mais lastreados de som-significado (BOSI, 2008, p. 36).

Torna-se fundamental buscar o novo, o insuspeitado, para transcriar/ transfazer/ “desformar” a realidade.

Podemos perceber que Manoel de Barros começa o Livro de pré-

coisas (1985/ 2010) com manhas, nódoas de imagens, e termina com

iluminuras. O quadro pantaneiro, elaborado com palavras, mostra-se pronto, mas não acabado. Assim, as próprias garças que criam iluminuras no livro podem ser consideradas pintoras, uma vez que decoram e apresentam representações imagéticas importantes.

O termo “iluminura” refere-se ao tipo de pintura decorativa, frequentemente aplicado às letras capitulares no início dos capítulos dos códices de pergaminho medievais. O termo se aplica igualmente ao conjunto de elementos decorativos e representações imagéticas executadas nos manuscritos, produzidos principalmente nos conventos e abadias da Idade Média. Tais decorações podiam enquadrar todo o espaço do texto ou ocupar apenas uma pequena parte da margem da página. De acordo com o Osborne, organizador do Dicionário Oxford de Arte (1987, p. 267), a palavra “iluminura” provém do “uso do verbo latino illuminare em conexão com o estilo oratório ou

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