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MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA SÃO PAULO 2011

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Andréia de Fátima Monteiro Gil

Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de Manoel de

Barros

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

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Andréia de Fátima Monteiro Gil

Poesia e Pantanal: o olhar mosaicado de Manoel de

Barros

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária, sob orientação da Profa. Dra. Maria Aparecida Junqueira.

SÃO PAULO

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Banca examinadora

__________________________________________

__________________________________________

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À Deus, pela bênção e pela sabedoria luminosa.

À professora doutora Maria Aparecida Junqueira, pela orientação dedicada e iluminadora.

Aos professores doutores Edilene Dias Matos e Fernando Segolin, pelas palavras elogiosas e pelas valiosas sugestões apontadas no exame de Qualificação.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, pelas aulas instigantes e reveladoras.

Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, pelo compartilhamento de ideias, receios e conquistas.

À minha avó, Maria Rosa, pela força e ternura eternas.

Aos meus pais, Francisco e Elizabete, pelo apoio e afeto incondicionais e constantes.

Ao meu futuro esposo, Eduardo, pela presença, pelo incentivo e pelo amor inspirador.

À Lourdes e Irene, pelo precioso encorajamento.

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“No garfo da árvore seca uma casa de amassa-barro! Ele edifica com lama. A gula do podre influi em seus traços. Porém. No que edifica o sol tem raios túrgidos”.

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Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2011.

RESUMO

O objetivo central desta pesquisa é investigar como a obra poética de Manoel de Barros redimensiona o Pantanal. Especialmente interroga o “espaço”, isto é, pergunta como a poesia deste poeta reconfigura a geografia pantaneira e como reordena pessoas, animais e coisas ao inscrever o Pantanal em sua poética. Para conduzir nossa reflexão acerca da criação poética de Manoel de Barros, tecemos considerações sobre poesia e poética, examinamos as especificidades do Pantanal e tomamos de empréstimos, de outras áreas do conhecimento, diversas noções de espaço. Adotamos como foco iluminador da análise a obra Livro de pré-coisas, colocando-a em relação com outras obras do autor. Como hipótese, propusemos que a linguagem poética de Manoel de Barros é revelada de modo plural e sem limites tal como o Pantanal apresenta-se diverso e ambíguo. Os resultados da pesquisa ressaltam que Manoel de Barros transfaz o espaço pantaneiro, desarticulando-o para instaurar uma ndesarticulando-ova realidade. A sua linguagem pdesarticulando-oética assume desarticulando-o caráter de mosaico e põe em cena palavras com alta força imagética e densidade sensorial.

Palavras-chave: Manoel de Barros, Livro de pré-coisas, poesia, espaço, mosaico.

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Studies on Literature and Literary criticism. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brazil, 2011.

ABSTRACT

The main objective of this research is to investigate how Manoel de Barros’ poetry redesigns Pantanal. Especially, it interrogates the “space”, that is, it questions how the poet’s poetry reconfigures Pantanal’s geography and how it reorganizes human beings, animals and things, inscribing Pantanal on his poetry. To guide our reflection upon Barros’ poetic creation, we take studies about poetry into consideration, we examine Pantanal’s specifications, we grasp concepts of space from other knowledge areas. We focus our analysis on Livro de pré-coisas, relating it with other works of the poet. As hypothesis, we propose that the poetic language of Manoel de Barros is revealed plural without limits as Pantanal is shown diverse and ambiguous. The research results reinforce that Manoel de Barros (trans) creates Pantanal’s space, rearranging it in order to establish a new reality. His poetic language retains mosaic features and stages poetic imagery and sensory words.

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PCP Poemas Concebidos sem pecado – 1937/ 2010 CUP Compêndio para uso dos pássaros – 1960/ 2010 GEC Gramática expositiva do chão– 1966/ 2010 MP Matéria de poesia – 1970/ 2010

APA Arranjos para assobio – 1980/ 2010 LPC Livro de pré-coisas – 1985/ 2010 GA O guardador de águas – 1989/ 2010

CCA Concerto a céu aberto para solos de ave – 1991/ 2010 LI O livro das ignorãças – 1993/ 2010

RAC Retrato do artista quando coisa – 1998/ 2010 EF Ensaios fotográficos – 2000/ 2010

TGG Tratado geral das grandezas do ínfimo – 2001/ 2010 PR Poemas rupestres – 2004/ 2010

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

CAPÍTULO 1 – A corporificação poética do espaço ... 16

1.1 Espaço e literatura ... 16

1.2 Espaço e corpo ... 29

1.3 Espaço e poesia ... 33

CAPÍTULO 2 – Manoel de Barros e Pantanal: o estado de pré-coisa ... 38

2.1 À luz da crítica, a poesia ... 38

2.2 Em sintonia, poesia e vida ... 45

2.3 “Antesmente”, poesia e pré-coisa ... 53

CAPÍTULO 3 – Pantanal e Poesia: homologias e transfigurações ... 56

3.1 Reespacialização pelo olhar ... 56

3.2 Criação pelo sentir ... 70

3.3 Mosaico espacial ... 75

3.4 Personagens-trastes: poéticos e pantaneiros ... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 94

REFERÊNCIAS ... 97

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INTRODUÇÃO

Pensar o espaço na literatura obriga-nos a reportar-nos ao problema da representação. Segundo Aristóteles (2004, p. 30), a mímese serve como ponto de partida para toda construção artística. O filósofo grego reconhece a tendência para a imitação como instintiva no homem: “Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer”.

Esse impulso mimetizante não deve ser entendido, no entanto, no sentido de reprodução, mas no de criação. Aristóteles concebe o gesto criador do poeta como instaurador de realidades possíveis. O poeta quer representar, pela palavra, o real. Representar não no sentido de substituir, mas no sentido de presentificar, tornar presente. Por meio da palavra poética, o espaço do objeto artístico procura instituir novas realidades.

A busca por uma palavra capaz de ser e não de dizer o objeto exprime a necessidade do poeta de pertencer à “coisa cantada”. O poeta não se conforma em nomear e descrever o objeto de seu interesse, mas aspira a que o poema seja o próprio objeto sem poder sê-lo. Cortázar confirma tal ideia ao dizer:

Cantar a coisa (...) é unir-se, no ato poético, a qualidades

ontológicas que não são as do homem, qualidades essas que o

homem, descobridor maravilhado, anseia atingir e ser na fusão do poema, que o amalgama ao objeto cantado, cedendo-lhe entidade deste e enriquecendo-o (CORTÁZAR, 1974, p. 98).

A poesia de Manoel de Barros “canta a coisa” ao explorar não só o espaço das palavras em seu percurso de rastreamento das coisas ínfimas do chão, mas também a posição do poeta-criador e seu papel diante da estrutura da obra. A natureza do Pantanal é transposta em palavras e o poema almeja ser a própria natureza pantaneira nessa tradução. Tal fato indica que o pensar sobre o fazer poético é evidenciado e a busca por palavras-ícones que tragam o objeto mais próximo é constantemente empreendida.

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do Pantanal mato-grossense, expressa o desejo de inscrever esse Pantanal vivido nos seus poemas autobiográficos, como em “Autorretratofalado”:

Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da

Marinha, onde nasci.

Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios. (...)

Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças. (...)

No meu morrer tem uma dor de árvore (LI, p. 324)1.

Conhecer, então, o Pantanal, “adentrar o improvável universo de terra e água (...) reouvir vaqueiros, boiadeiros, campeiros, rememorando o episódio épico de cada trajetória pantaneira” (Nogueira, 1990, p. 60), estudar sua constituição física e geográfica, sua diversidade de flora e fauna, sua fluidez e ambigüidade, sua cultura, bem como seus fortes contrastes e aspectos míticos (Leite, 2003), possibilitará o estabelecimento de correlações mais amplas entre o universo pantaneiro e o universo poético de Manoel de Barros.

Planície inundável que apresenta pequenas elevações, o Pantanal é reconhecidamente plural: “O Pantanal são vários pantanais” (Nogueira, 1990, p. 60). Manoel de Barros encena a heterogeneidade do espaço pantaneiro, procurando colocar em realce a extrema diversidade do ecossistema que interrelaciona elementos e conjuntos para a manutenção do equilíbrio. O criador mato-grossense faz com que seres e coisas saiam de suas existências ordinárias em direção a algo indefinível, metamorfoseando, assim, o conhecido. O anseio de Manoel de Barros por refazer o real, o mundo, a linguagem, para edificar, pela palavra, um real transfigurado, um mundo novo e, desse modo, apresentar uma linguagem renovada, é possivelmente despertado pelo próprio Pantanal, que deixa visível um mundo em permanente mutação.

      

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O interesse da Literatura em estudar o espaço não é novo. Todavia, tais estudos se concentraram no campo narrativo. Celina Leal dos Santos (2006), por exemplo, procurou observar como os múltiplos espaços influenciam nos elementos composicionais de Os Sertões, de Euclides da Cunha e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. No campo poético, os trabalhos mostram-se escassos; no entanto, podemos citar Marinei Almeida Lima que questionou, comparativamente nas obras de Manoel de Barros e Eduardo White, a função do espaço-tempo mítico como um dos fatores determinantes da revisão dos limites e fronteiras dos gêneros literários.

A preocupação em examinar como o espaço se constrói nas obras literárias foi revelada, também, em diversos debates promovidos pelo Itaú Cultural. O evento “Encontros de Interrogação” (2009)2 reuniu escritores e especialistas para discutir os espaços da e na Literatura. Nesse contexto, Ronaldo Cagiano (2009), poeta, ensaísta e críticocataguasense, buscou definir território como lugar onde a alma do escritor habita e que carrega relações ancestrais, vivências da infância, experiências afetivas, sensoriais e escalonamento de valores. Para Cagiano, a “geografia” é constituída de um componente onírico e anímico. Assim, a “geografia do escritor” revela-se múltipla, física e perceptiva. Cagiano explicou, ainda, que a Literatura promove uma transposição do real e uma incorporação de cenários.

Compreendendo o Pantanal como um lugar edênico, adâmico, Manoel de Barros integra sua poética com o meio em que cresceu e vive. Explica que a gênese de sua sensibilidade provém da criação primitiva que lhe foi dispensada:

Fui criado em chão de acampamento, no meio de lagartixas, lagartos, sapos, mosquitos. Vivi nos brejos, lugares úmidos que custam muito a secar. Eu convivi muito com essas palavras que aparecem em mim. Na hora de escrever um verso, essas

      

2

 Os debates, intitulados Encontros de Interrogação, foram promovidos no mês de Maio de 2009 pelo Itaú Cultural com o intuito de problematizar o espaço da/ na literatura, seja ele físico ou virtual, real ou imaginário, do escritor ou do leitor. O evento abordou o tema, O espaço geográfico: como falar do enraizamento para além do regionalismo?, que serviu de reflexão para nossa investigação.

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palavras brotam em mim naturalmente. É o lastro ‘brejal’ que não perdi (BARROS, apud CASTELLO, 1996b).

Ao reverenciar o natural, ressaltar a beleza original da flora e da fauna, compartilhar seus versos com árvores, anhumas, garças, araras, beija-flores-de-rodas vermelhas, pacus, formigas, lesmas, caramujos, seres ínfimos, ciscos e inutilezas, Manoel de Barros redimensiona o espaço pantaneiro, criando e recriando o real, incitando a palavra a provocar estranheza, libertando-se dos condicionamentos sociais que bloqueiam a espontaneidade das vivências, inspirando-se em personalidades reais, autodidatas, para afirmar que o verdadeiro conhecimento está na leitura sensível do mundo, da natureza. O poeta promove esse redimensionamento, valendo-se da potencialidade da linguagem e da dinamização dos sentidos.

Manoel de Barros compreende e constrói o espaço pantaneiro por meio das coisas ainda não configuradas. No Livro de pré-coisas (1985/ 2010), o poeta faz a anunciação do Pantanal, com recursos lingüísticos, formais e simbólicos em formação.

O poeta anuncia o Pantanal por meio de manchas, “nódoas de imagens e festejos de linguagem” (LPC, p. 197). Nesse sentido, tanto o espaço do Pantanal quanto o do próprio livro vão se revelar singulares dentro do conjunto da obra do poeta. A natureza que o rodeia, por exemplo, é recriada pela linguagem, e o poeta oferece ao leitor a oportunidade de enxergar diferentemente e a crer nesse novo mundo. O criador mato-grossense nos ensina que “beleza e glória das coisas o olho é que põe. (...) É pelo olho que o homem floresce” (LPC, p. 224).

Com o Livro de pré-coisas, Roteiro para uma excursão poética no Pantanal (1985/ 2010), Manoel de Barros quer dar a conhecer, por meio de uma linguagem poética singular, as “pré-coisas”, as essências, as insignificâncias, as paisagens e os seres do Pantanal de modo inaugural e transfigurador.

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representa de acordo com sua percepção única. Na terceira, seleciona uma figura desimportante do Pantanal, Bernardo, e expõe sua trajetória de vida: “no presente”, “no serviço”, “no tempo de andarilho”, “na mocidade”. O poeta transcreve, ainda, a “voz interior” da personagem, desvendando os mistérios de sua essência. Na última parte, ao tratar do “socó-boca-d’água”, do “urubu”, do “quero-quero” e da “garça”, Manoel de Barros “transvê” a realidade e conjuga reflexão crítica com prática poética.

À luz dessas considerações, esta pesquisa interroga especialmente o “espaço”, isto é, pergunta-se como a obra de Manoel de Barros reconfigura a geografia pantaneira ao espacializar poeticamente a região e sua cultura e como o poeta reordena imaginariamente pessoas, animais e coisas ao inscrever o Pantanal em sua poética.

Para testar esta questão-problema, selecionamos as hipóteses:

1. A plasticidade da palavra, o rompimento com a linguagem convencional, o imbricamento prosa/ poesia, as metáforas, as justaposições, as ambigüidades revelam correlações plurais entre Pantanal e poesia, entre Pantanal e homem. O Pantanal apresenta-se múltiplo, em transformação, em movimento e a linguagem poética assume tal aspecto, mostrando-se sem limites.

2. O Pantanal de Manoel de Barros privilegia, assim, o espaço sobre o tempo ao fundar sua poesia numa lógica espacial.

3. Criando micro-espaços poéticos que desdobram o macro-espaço pantaneiro, o poeta sugere a noção de “Pantanal-em-processo”.

4. Manoel de Barros reconstrói o espaço do Pantanal pelo confronto tenso entre pares opositivos – grandeza/ pequenez; interior/ exterior; continente/ conteúdo; palavra/ “despalavra” – que suscitam sentidos espaciais.

Para compreendermos a obra poética de Manoel de Barros, norteamos nossa reflexão em três eixos teóricos fundamentais: estudos envolvendo poesia e poética; investigações sobre o Pantanal e suas especificidades; e a exploração sobre conceituações de espaço.

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comum, levando-o a construir sentidos improváveis (Cortázar, 1974), e sobre a contribuição da imaginação para a produção da sensação do novo (Baudelaire, 1993), permite o entendimento da voz renovadora da poesia de Manoel de Barros. Adentrar o espaço polêmico pantaneiro possibilita o estabelecimento de relações entre o Pantanal e a poética de Manoel de Barros. Tomar contato com diferentes concepções de espaço auxilia na descoberta de como Manoel de Barros materializa poeticamente a reconfiguração do Pantanal.

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CAPÍTULO 1 – A corporificação poética do espaço

1.1 Espaço e Literatura

O que é espaço? Pode o espaço natural servir de força motriz para a criação de um estilo de escrita? Como a linguagem poética de Manoel de Barros “traduz” o espaço pantaneiro? Para tentar elucidar estas indagações instigantes, buscamos auxílio de teóricos que fornecem subsídios para uma reflexão ante o conceito de espaço, suas particularidades e relações com o fazer poético.

A inexistência de um significado unívoco de espaço faz com que o conceito assuma aspectos diversos em contextos teóricos específicos. Na Teoria da Literatura, essa problemática também se faz presente. Há quatro modos de abordagem do espaço na literatura: representação do espaço; espaço como forma de estruturação textual; espaço como focalização; espacialidade da linguagem.

De acordo com o primeiro modo de abordagem, representação do espaço, não há o questionamento sobre o que é espaço, pois este é “dado como categoria existente no universo extratextual” (BRANDÃO, 2007, p. 208), mas interroga-se em que medida, “na operação interpretativa, os espaços podem ser transfigurados, reordenados, transgredidos” (BRANDÃO, 2007, p. 214).

Já no segundo modo de ocorrência, espaço como forma de estruturação textual, considera-se de “feição espacial todos os recursos que produzem o efeito de simultaneidade” (BRANDÃO, 2007, p. 209), efeito este obtido a partir de recursos como a fragmentação, a combinação de elementos textuais dispersos, a fluidez dos sentidos e a variabilidade de leituras.

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Por último, na quarta vertente de compreensão, espacialidade da linguagem, afirma-se que “a palavra é também espaço” (BRANDÃO, 2007, p. 211) e considera-se a linguagem literária como espacial uma vez que é composta de signos que possuem materialidade “cuja função intelectiva jamais oblitera totalmente a exigência de uma percepção sensível no ato de sua recepção” (BRANDÃO, 2007, p. 213).

O conceito de espaço na poesia de Manoel de Barros leva em consideração os modos de abordagem acima. Sistematizado simbolicamente, o poeta promove a experimentação sensorial do Pantanal. O entorno é percebido, incorporado ao ser que contempla para então ser recomposto e transposto em palavras.

Como o espaço, em Manoel de Barros, é pensado em sua multiplicidade, faz-se necessário criar um modo de apresentação que acompanhe suas transformações contínuas. Uma escrita poética fluida, com significados móveis, fragmentados e novas formas de (des) dizer o real, manifesta uma ambição declarada de Manoel de Barros de reordenar o espaço complexo circundante para transpô-lo em poesia. O espaço e os seres que nele habitam são identificados globalmente para, em seguida, serem desidentificados em suas particularidades. A anunciação do Pantanal se faz de modo metafórico e imagético. O silêncio, os ventos, o rio, o tempo e as águas são instituídos como sujeitos da ação, como nos versos:

Ia o silêncio pelas ruas carregando um bêbedo.

Os ventos se escoravam nas andorinhas.

Estamos por cima de uma pedra branca enorme que o rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe.

(LPC, p. 197)

O tempo e as águas esculpem escombros nos sobrados anciãos.

(LPC, p.198)

Se é tempo de chover desce um barrado escuro por toda a extensão dos Andes

e tampa a gema.

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Manoel de Barros, assim como o menino do poema, ao descrever poeticamente os cenários, “entorta a bunda da paisagem” (LPC, p. 199). O que importa ao poeta é revelar sensações, visões sem máculas do ver acostumado, “festejos de linguagem” (LPC, p. 197):

Vem um cheiro de currais por perto. Posso ver uma casa nascendo.

Insetos compostos de paisagem se esfarinham na luz.

Suspensas

sobre o sabão das lavadeiras, miúdas

borboletas amarelas:

- Buquê de rosas trêfegas...

(LPC, p. 200)

O poeta expõe uma forma poética narrativa multiperspectivada, movente, que tenta adotar todos os pontos de vista possíveis para apreender a totalidade: primeiro, reconfigura o espaço panoramicamente para, depois, se aproximar, observar os detalhes e metamorfoseá-los. Convida o leitor a acompanhá-lo nessa “excursão poética”: “Estamos no zamboada”; “Deixamos Corumbá tardeando” (LPC, 1985/ 2010: 198- 199).

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Manoel de Barros perscruta a linguagem da natureza para reconstruí-la simbólica e esteticamente. Cria suas próprias formas e normas, deixa-se guiar pelos deslimites, produz enunciados “constativos”, fundamentando-se no fato de que “no Pantanal ninguém pode passar régua” (LPC, p. 206).

As pré-coisas de poesia são dadas, mostram-se observáveis e como possibilidades. O prefixo indicativo de anterioridade deixa claro que o poeta quer recuperar um mundo anteriormente “encantado”. A partir de imagens que povoam seu imaginário, Manoel de Barros não descansa seu olhar sobre a paisagem contínua de um espaço inteiramente articulado, mas se enreda nos interstícios de extensões descontínuas para transcriar o espaço pela linguagem:

Por aqui é tudo plaino e bem arejado pra céu. Não há lombo de morro pro sol se esconder detrás. Ocaso encosta no chão. Disparate de grande este cortado. Nem

quase não tem lado por onde a gente chegar de frente nele. Mole campanha sem gumes. Lugares despertencidos. Gente ficava isolado. O brejo era bruto de tudo.

Notícias duravam meses. Mosquito de servo era nuvem. Entrava pela boca do vivente. Se bagualeava com lua. Gado comia na larga.

(LPC, p. 224).

A noção de espaço enquanto “conjunto de indicações – concretas ou abstratas – que constitui um sistema variável de relações” (SANTOS e OLIVEIRA, apud CORNELSEN, 2007) de ordem geográfica, histórica, social, discursiva, leva-nos a refletir sobre outras categorias, tais como: topografia, memória, sociedade, mimese.

O espaço na literatura implica, ainda, a maneira como o autor pretende criar sua obra em relação à realidade. Segundo Santos e Oliveira (apud CORNELSEN, 2007, p. 83), a relação do ficcional com a realidade pode se estabelecer de duas formas: “a literatura se apresentaria ou como ‘um espelho plano, alimentando a ilusão de que é capaz de mostrar a realidade como ela é’ ou como ‘espelho deformante, com a intenção de deslocar a imagem que a sociedade tem de si mesma’”.

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“propor uma ordem falsa, incompatível com a ordem do real”, mas de “afetar o real, explorar o que o real tem de maleável, ampliando as margens de sua mutabilidade” (SANTOS e OLIVEIRA, apud CORNELSEN, 2007, p. 84).

Especialmente na segunda parte do Livro de pré-coisas (1985/ 2010), o poeta imagina “cenários” que não servirão apenas de pano de fundo para a encenação inaugural da linguagem poética, mas também explicitarão mananciais imagéticos e ideológicos. O espaço (re) construído por Manoel de Barros, “em estado de poesia”, revela imagens, cores, sensações em formação. Por meio deste espaço, o poeta elabora conceitos e desenvolve reflexões sobre seu fazer poético:

Hoje estou comparado com árvore.

Sofrimento alcandorou-me. Meu olho ganhou dejetos. Vou nascendo de meu vazio. Só narro meus nascimentos. Sou trinado por lírio como os brejos. Eu tenho

pretensões pra tordo. É nos loucos que grassam luarais. Sei de muitas coisas das cousas. Hai muitas

importâncias sem ciência. Sei que os rios influem na plumagem das aves. Que as vespas de conas frondosas

produzem mel azulado. E as casas com rio nos fundos adquirem gosto de infância.

(LPC, p. 225)

Manoel de Barros inscreve-se na natureza e compara-se à árvore, aos brejos, ao tordo para deles adquirir saberes sensíveis. Narra o nascimento de um eu insuspeitado, descobridor de um mundo nunca antes observado, e de um espaço que influi na caracterização dos seres e no posicionamento do poeta diante de sua obra. Redimensiona, assim, o sentido de espaço.

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com o entorno a fim de conciliar interior e exterior. Já Tassinari (2001) diferencia e aproxima o espaço artístico ao espaço do mundo em comum.

Em Bakhtin (2003), observamos que, na Literatura, a visão sobre o espaço constituiu-se de modo singular. Bakhtin (2003) atestou que o espaço precisava ser percebido como um todo em formação e não como um dado acabado e imóvel. Atentou para o fato de que Goethe, para reconstruir imagética e verbalmente um local que lhe marcara a memória, procurava mesclar, na folha de papel, o esboço do desenho figurativo da região com palavras essenciais e sintéticas que trouxessem, com precisão, a descrição do local. Nesse sentido, “os híbridos artísticos” produzidos traziam-lhe a visibilidade necessária para alcançar o sentimento do tempo, seu caráter cíclico na natureza e nos momentos diversos da vida humana, e percebê-lo no todo espacial do mundo. Bakhtin (2003) investigou, pois, pontos relevantes: visibilidade do tempo no espaço; inseparabilidade entre o tempo do acontecimento e o lugar concreto de sua realização; relação essencial entre os tempos (presente e passado).

A título de exemplificação, tomemos alguns excertos de poemas de Manoel de Barros para constatarmos a abordagem proposta por Bakhtin. Nos versos “empeixado e cor de chumbo, o rio Paraguai flui/ entre árvores com sono...” (LPC, p. 199), obtemos, a partir de contemplações sensíveis do espaço, informações sobre o tempo – “Corumbá está tardeando” (LPC, 1985/ 2010: 199) –, o que nos leva a apreender o segundo aspecto, traçado por Bakhtin (2003), que sugere a estreita conexão entre o tempo do evento e o local de sua efetivação. No interior do Livro de pré-coisas (1985/ 2010), reconhece-se essa relação entre tempo e ambiente natural a partir, por exemplo, da ação de um pássaro típico da região, em que se evidencia, no entanto, o predomínio de componentes espaciais frente aos temporais:

Natureza será que preparou o quero-quero para o mister de avisar? No meio-dia, se você estiver fazendo sesta completa, ele interrompe.

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Temos, ainda, que observar a relação entre tempos, pois acontecimentos anteriores influem nos posteriores, provocando um efeito de devir no texto poético. Enxergar, na atualidade, a manifestação da diversidade de tempos permite-nos relacionar formações do passado a embriões do futuro. Compreender o “lugar necessário desse passado na série contínua do desenvolvimento histórico” faz-se imprescindível para a determinação do presente, para a antecipação do futuro, bem como para se obter a “plenitude do tempo” (Bakhtin, 1998: 235). Os versos exemplificam: “Alegria é de manhã ter chovido de noite!” (LPC, p. 206).

Goethe (apud BAKHTIN, 2003), sensível aos sinais da natureza, desenvolveu a hipótese de que, objetos naturais que nos parecem inertes, atuam “velada e secretamente” em mudanças espaço-temporais. Montanhas, contempladas inocentemente como imutáveis, trazem em seu interior pulsações permanentes que causam alterações climáticas substanciais. Para um observador comum, tal constatação parece inconsistente, no entanto, a visão peculiar de Goethe retrata a mobilidade criadora presente em toda parte. O que era aparentemente imutável aparece, agora, como agente iniciador e organizador do movimento do enredo.

Em Manoel de Barros, podemos ilustrar esse “imobilismo movente” com o poema “Carreta pantaneira”:

As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontecem.

Dez anos de seca tivemos. Só trator navegando, de estadão, pelos campos.

Encostou-se a carreta de bois debaixo de um pé de pau. Cordas, brochas, tiradeiras – com as chuvas,

melaram (...)

À sombra do pé de pau a carreta se entupia de cupim. A mesa, coberta de folha e limos, se desmanchava, apodrecente. (...) Enchia-se o rodado de pequenas larvas, que ali se reproduziam, quentes.

(...)

E a carreta ia se enterrando no chão, se desmanchando, desaparecendo.

Isso fez que o rapaz, vindo de fora pescar, relembrasse a teoria do Pantanal estático. Falava que no Pantanal

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A carreta pois para ele desaconteceu apenas. Como haver uma cobra troncha.

(LPC, p. 207-208)

O poeta nos indica que, diante de uma aparente estaticidade, há uma mobilidade pungente tanto no Pantanal quanto no poema. O advérbio “aqui” abre-se semanticamente não só para o espaço pantaneiro, mas também para o espaço do poema, onde as coisas “desacontecem”. A secura, local e poética, sugere uma pausa, que, no entanto, não provoca interrupções, mas permite um movimento intervalar de reflexão. Na carreta, encostada “debaixo de um pé de pau”, vê-se um pulsar vital de movimentos: o bulir dos cupins, o menear quente das larvas, o entregar-se inteiramente ao chão. O pretenso “não movimento”, portanto, possibilita o “desacontecimento”, exprime a negação a acontecimentos comuns, estagnados pela convenção, e desenreda os discursos usuais.

Segundo demonstrou Bakhtin (2003), as abordagens espaciais na obra de arte tendem a ser revalorizadas. A necessidade, a busca da totalidade, a sensação do novo aferem-se pelo movimento contínuo e pelo questionamento do espaço que deixa de ser tomado como algo acabado.

Milton Santos (2007), que propôs uma renovação crítica da Geografia, apresenta similaridades ao pensamento de Bakhtin ao conceituar paisagem como resultado da acumulação de tempos que nada tem de fixo, de imóvel: “os lugares – combinações localizadas de variáveis sociais – mudam de papel e de valor à medida que a história se vai fazendo” (SANTOS, 2007, p. 57).

Incorporando um pensamento filosófico, o geógrafo indicou a importância de se investigar o espaço com base em três pilares fundamentais – forma, estrutura e função – que interrelacionam objetos naturais a objetos sociais:

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Santos (2007) concluiu, portanto, que modificações nas relações entre componentes da sociedade acarretam alterações de processos e de funções e, por conseguinte, causam mudanças de valores das formas geográficas.

Reafirmando o pensamento do geógrafo, Douglas Santos admitiu que

o que pensamos de espaço jamais poderá ser compreendido sem que se reflita sobre o próprio movimento que cria, recria, nega e, pela superação, redefine a espacialidade dos próprios homens. Espaço e tempo, considerados aqui como categorias básicas da ciência moderna, são, na verdade, redimensionados na medida em que as sociedades se redimensionam (SANTOS, 2002, p. 23).

Concluímos que a construção do espaço liga-se à construção cultural da humanidade que, por conseguinte, se empenha na construção de sua geografia. Barros considera o Pantanal não como um lugar pronto e acabado, mas como lugar de possibilidade de relacionar e transfigurar o natural e o humano. Acredita que a ele não se pode impor limites. Vale-se, portanto, da forma do fragmento para compor seus poemas, estruturando-os de modo aparentemente aleatório a fim de materializar a complexidade pantaneira e demonstrar que aquele espaço pode-nos ensinar a enxergar o mundo sob novos aspectos para promover redimensionamentos.

O poeta, então, integra sua poética com o espaço que contempla. Em Barros, há uma sedução edênica do/ e pelo mundo da palavra, em que se vislumbra uma paisagem iniciática do gênesis, ao mesmo tempo em que há o entendimento do Pantanal como um lugar adâmico, primário, sem feições definitivas, que está na origem do mundo. Dessa maneira, o poeta supera a dualidade entre sujeito e objeto, entre o mundo dos símbolos e das coisas, do imaginário e do real, aproximando sua criação ao conceito, postulado por Baudelaire (1993, p. 149), de “arte pura”: “magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo externo ao artista e o próprio artista”. O “ser abrigado”, como diz Bachelard (1993, p. 25), que “sensibiliza os limites do seu abrigo”.

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de arte filosóficas, significados outros em adição ao literal, ensaiou uma abordagem mais ampla a respeito da dialética do exterior e do interior, descortinando a tentativa de reunir ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo externo ao artista e o próprio artista.

Em um estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima, topoanálise, o fenomenólogo perscruta a “concha inicial” em toda moradia. A imagem da casa reaviva o conflito integrador entre realidade e virtualidade, memória e imaginação, pois aumenta os valores da topografia de nosso ser íntimo.

Dado esse pressuposto, Bachelard (1974/ 1993, p. 494) volta-se ao domínio da linguagem e explica que o exterior da palavra funda-se no seu interior e que, por vezes, as palavras internamente se desligam. Dessa forma, a linguagem pelo sentido se fecharia e pela expressão poética se abriria: “fechado no ser, será necessário sempre sair dele. Mal saído do ser será preciso sempre voltar a ele”.

Para compreendermos melhor essas formulações, atentemos para este poema de Manoel de Barros:

Se no tranco do vento a lesma treme, no que sou de parede a mesma prega; se no fundo da concha a lesma freme, aos refolhos da carne ela se agrega; se nas abas da noite a lesma treva, no que em mim jaz de escuro ela se trava; se no meio da náusea a lesma gosma, no que sofro de musgo a cuja lasma; se no vinco da folha a lesma escuma, nas calçadas do poema a vaca empluma! (LPC, p. 219)

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2007, p. I) investiga “oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas” para escutar os “primeiros sons” e descobrir o “primeiro esgar de cada palavra”.

A fim de incitar sentimentos e deixar marcas, o poeta vale-se dos termos “treme” / “freme”, “prega” / “agrega”. Ao afirmar “sou de parede” e “sofro de musgo” “nas calçadas do poema”, o poeta enfatiza o poder da palavra poética de criar novas realidades e de conciliar o ser do homem ao ser do mundo.

Nesse sentido, podemos relacionar tal proposta aos pensamentos kantianos acerca da categoria de espaço:

O espaço não é um conceito empírico, extraído de experiências externas. Efetivamente, para que determinadas sensações sejam relacionadas com algo exterior a mim (isto é, com algo situado num outro lugar do espaço, diferente daquele em que me encontro) e igualmente para que as possa representar como exteriores [e a par] umas das outras, por conseguinte não só distintas, mas em distintos lugares, requere-se já o fundamento da noção de espaço. Logo, a representação de espaço não pode ser extraída pela experiência das relações dos fenômenos externos; pelo contrário, esta experiência externa só é possível, antes de mais nada, mediante essa representação (KANT, apud SANTOS, 2002, p. 180-181).

Tassinari (2001) assinalou, nas artes plásticas, esse confronto conciliador entre ser e espaço. Segundo nos informa o artista e crítico, o mundo da obra atrai e repele o mundo concreto. Isto porque o mundo da obra requer o mundo concreto para se justificar enquanto obra e reiterar sua especificidade, porém não deseja conformar-se a uma dimensão meramente imitativa. Esse aspecto duplo da arte contemporânea permite ao observador perceber que a obra está ligada ao espaço habitual em que vive, mas não o imita, na medida em que provoca alterações nesse espaço pelo seu fazer. Emergindo do espaço cotidiano, a obra dá novas configurações ao já conhecido e acrescenta-lhe outros sentidos.

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Uma obra contemporânea não transforma o mundo em arte, mas, ao contrário, solicita o espaço do mundo em comum para nele se instaurar como arte (TASSINARI, 2001, p. 76).

No tocante a esse aspecto, Manoel de Barros, ao longo de sua trajetória poética, procura relacionar seus poemas ao ambiente natural em que vive de modo paradoxal: o poeta ora torna o espaço comum parte do espaço da obra, ora adota uma postura crítica com relação à realidade, à linguagem poética, à exploração e interpretação do estar no mundo.

Em “Postais da cidade” (PCP, p. 19), Manoel de Barros procura “fotografar” pontos e personagens depreciados da cidade. O poema “O escrínio” constrói um detalhado conjunto imagético da cidade, representando-a como um cofre de bugigangas: “rio com piranhas camalotes, pescadores e lanchas carregadas de couros vacuns”; “sobrados remontados na ladeira, flamboyants, armazéns de secos e molhados”; “turcos babaruches”; “estátua de Antônio Maria Coelho, herói da Guerra do Paraguai, cheia de besouros na orelha”; “cinema Excelsior”.

Já em “Dona Maria” (PCP, p. 22), o poeta, apontando para uma lírica social, discute de modo crítico e contundente a questão da indigência:

- Entendo. A senhora vai ficar sentada na calçada, de vestido sujo, cabelos despenteados, esquálida, a soprar uma gaitinha rouca, não é?

Depois as pessoas ficarão com pena da sua figura

esfarrapada, tocando uma gaitinha rouca, e jogarão moedas encardidas em seu colo encardido, não é?

Para Manoel de Barros, o que importa, pois, não é o mero registro descritivo de lugares, bichos, coisas da natureza de um determinado espaço, mas, sim, a maneira de se “mexer com as palavras” para promover, com elas, a renovação do mundo em comum e desvelar realidades deixadas à margem.

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manchas. Essas manchas, que poderiam ser consideradas como defeitos, deixam vislumbrar um mundo às avessas em que seres ínfimos e coisas desimportantes têm real importância e assumem posição central em sua criação poética. Barros reitera:

A partir dos defeitos de uma pedra é que o escultor começa seu trabalho. A partir de um visgo de borboleta na tela, Miró podia começar algum deslumbramento plástico. A partir de uma palavra torpe, pode chegar-se ao balbucio dela, ao seu murmúrio nupcial. (...) É preciso que as palavras nelas mesmas se inaugurem (BARROS, apud MULLER, 2010, p.84).

Nesse sentido, Barros quer criar, com palavras, “uma naturezinha/ particular, até onde o seu pequeno lápis poderia alcançar” (PR, p. 439).

A cidade de Corumbá é, portanto, recriada: “ia o silêncio pela rua carregando um bêbado; os ventos se escoravam nas andorinhas”; “arbustos de espinhos com florimentos vermelhos/ desabrem nas pedras”; “as ruínas dão árvores; nossos sobrados enfrutam” (LPC, p. 197-198). O espaço da obra, no entanto, guarda resquícios do espaço em comum: o poeta deixa com que o Pantanal possa ser reconhecido, mas também provoca estranheza com relação ao local. Os aspectos cotidianos tornam-se experiências estéticas que compõem um espaço artístico inusitado.

Retomando nossas questões iniciais, concluímos que, para Manoel de Barros, o espaço natural define-se como lugar de possibilidades para transfigurações da linguagem e da visão perante a poesia e o mundo. Seu estilo de escrita embebe-se de uma retórica de pantanal: repleta de descontinuidades, instabilidades metamorfoseantes, fragmentações. A cerca disso, diz o poeta:

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Sua linguagem, pois, embrenha-se no espaço pantaneiro para “traduzi-lo”: faz-se complexa ao construir uma rede de relações inovadoras entre seres e termos; configura-se ora rica de adjetivações ora plena unicamente de substantivos para materializar os períodos de cheia e de estio da região; liberta-se das convenções para criar.

1.2 Espaço e corpo

Ao tratarmos da compreensão e incorporação de certo espaço, temos que nos referir obrigatoriamente ao corpo. Isto porque, desde a infância, procuramos desbravar o mundo e possuí-lo pelos sentidos. As cores, os sons, os cheiros, as texturas são pouco a pouco reconhecidos pelo corpo. Até mesmo a poesia – que, segundo Manoel de Barros (AA, p. 178) “não é para compreender, mas para incorporar” –, passa a ser absorvida por meio de “percepções da sensibilidade” (MÜLLER, 2010, p. 162).

Zumthor (2005, p. 90) reflete sobre o comprometimento do corpo na percepção do poético: “o texto poético significa o mundo. É pelo corpo que o sentido é aí percebido”. Para autor, “o mundo que me significa o texto poético é necessariamente da ordem do sensível: do visível, do audível, do tangível”. A pluralidade de sensações, despertadas pela leitura poética, é, pois, a manifestação da “presença do corpo inteiro no funcionamento de cada sentido” (ZUMTHOR, 2005, p. 90-94).

Manoel de Barros desvela a presença do corpo ao ver, ouvir, tocar o Pantanal com/ pelas palavras. O poeta vê o amanhecer, as andorinhas e as garças, pois encontra no amanhecer, o despertar para um outro mundo; nas andorinhas, a possibilidade de migração constante, de viagens lingüísticas imprevisíveis; e nas garças, a elaboração de iluminuras que colorem originalmente o poema.

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neles perceber ambiente propício para instauração de um novo cosmo; os sapos vegetais, por querer promover a fusão dos reinos naturais; os canoeiros e bêbedos, por serem tipos desprestigiados que tem o dom de enxergar o lado intocado das coisas.

Contempla, também, os arbustos espinhentos que furam as convenções e geram a novidade no poema com seus florimentos cor de sangue, os sobrados com paredes podres, as ruínas que compõem um novo mundo, uma nova poesia. O poeta escuta o silêncio, o galo que ainda não se arriscara, o gorjeio dos pássaros, o apito da lancha. A não palavra, “o som que ainda não deu liga”, a “palavra sem pronúncia, ágrafa” (RAC, p. 368), o ruído desarticulado interessam, portanto, ao poeta e ao poema.

O poeta toca o Pantanal ao compor, por exemplo, uma analogia entre o “Rio desbocado” e o poema. Assim como seu poema, o rio “inventa novas margens”, “erra pelos cerrados”, “prefere os deslimites do vago” (LPC, p. 201). Como o rio que abraça e cheira a terra, Manoel de Barros quer friccionar, com sua mão criadora, as palavras para devolvê-las, ao poema, revigoradas. Seu toque, primeiramente firme e ríspido, amaina-se:

Esfrega o rosto na escória. E invade,

em estendal imprevisível, as terras do Pantanal. Depois se espraia amoroso, libidinoso animal de

água, abraçando e cheirando a terra fêmea. (LPC, p. 201)

Na poesia de Manoel de Barros, os sentidos são tomados como órgãos coletores de conhecimento. Por meio do ver, ouvir, tatear, instala-se uma “acumulação memorial do corpo”:

Barulhinho vermelho de cajus e o riacho passando

nos fundos do quintal...

Dali

se escutavam os ventos com a boca como um dia ser árvore.

Eu era lutador de jacaré. As árvores falavam.

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Víamos por toda parte cabelos misgalhadinhos de borboletas...

Abriu-se uma pedra certa vez: os musgos eram frescos...

As plantas

Me ensinavam de chão. Fui aprendendo com o corpo.

Hoje sofro de gorjeios Nos lugares puídos de mim. Sofro de árvores.

(CUP, p. 114-115)

Com “barulhinho vermelho”, “se escutavam os ventos com a boca” e “as plantas me ensinavam de chão”, Manoel de Barros desenvolve criações sinestésicas reveladoras: relaciona ouvir/ ver, ouvir/ saborear, ouvir/ tatear de modo integrador para reconfigurar o espaço.

Conforme nos mostra Zumthor (2000, p. 95), então, “toda poesia atravessa, e integra mais ou menos imperfeitamente, a cadeia epistemológica sensação-percepção-conhecimento-domínio do mundo: a sensorialidade se conquista no sensível para permitir, ultimamente, a busca do objeto”.

Manoel de Barros promove o conhecimento do mundo pelo corpo e coloca em prática a ideia de Zumthor (2000, p. 90) que estabelece relações entre corporeidade e apreensão do espaço – “os eixos espaciais direita/ esquerda, alto/ baixo e outros são apenas projeção do corpo sobre o cosmo”– e reitera o fato de que “o corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso”.

O riacho que corre aos fundos da casa traz, ao poema, ares da infância, momento inaugural em que tudo era explorado por via sinestésica e corporal. A fantasia dá vazão à renovação sem limites e deixa ecoar sons e vozes reveladores de um novo mundo.

Zumthor retoma a retórica difundida na Antiguidade que ensina que

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espessura, sua existência densa exige, para que elas sejam compreendidas, uma intervenção corporal, sob a forma de uma operação vocal: seja aquela da voz percebida, pronunciada e ouvida ou de uma voz inaudível, de uma articulação interiorizada (ZUMTHOR, 2000, p. 89).

Assim, a leitura poética é a escuta de uma voz e “o leitor, nessa e por essa escuta, refaz em corpo e em espírito o percurso traçado pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é dado, aqui, sobre a página” (ZUMTHOR, 2000, p. 102).

O efeito poético é tanto mais forte quanto melhor soa a voz: nos interstícios da linguagem imiscui-se, pela operação vocal, o desejo de se desvencilhar dos laços da língua natural, de se evadir diante de uma plenitude que não será mais do que pura presença (ZUMTHOR, 2000, p. 145).

Presença. Manoel de Barros quer presentificar sua voz. Para tanto, investe de simbologia seres como a lesma. Em nota de rodapé poética, Barros afirma que

a fim de percorrer uma lesma desde o seu nascer até sua extinção, terei que aprender como é que ela recebe as manhãs, como é que ela anoitece. Terei de saber como é que ela reage ao sol, às chuvas, aos escuros, ao abismo, ao alarme dos papagaios. Vou ter que encostar meu ventre no chão para o devido rastejo. Terei que produzir em mim a gosma dela a fim de lubrificar os caminhos da terra (...). Terei de aprender a marcar com a minha saliva o chão dos poemas (RAC, p. 371).

Manoel de Barros, “convê” a lesma sendo-a, expondo, assim, de modo enfático, a necessidade de deixar-se guiar pelo corpo para conhecer o “ser das coisas” e para levar seus leitores a sentir corporalmente seus poemas.

A poesia, pois, transcende a linguagem, “transforma-a e é transformada por ela” (ZUMTHOR, 2000, p. 139). Em vias performáticas, o texto se transforma em voz e provoca “uma mutação global [que] afeta suas capacidades significantes”, modificando o seu “estatuto semiótico” e gerando “novas regras de semanticidade” (ZUMTHOR, 2000, p. 148).

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habitar sua linguagem, revelando-o um limite e dele liberando-o. Manoel de Barros, por sua vez, tem desejo de “alcançar a voz das árvores”, o “canto apenas”, a “despalavra” (MÜLLER, 2010, p. 145).

1.3 Espaço e poesia

Transgredir a linguagem do poder, investigar os interstícios para descortinar saberes insuspeitados, libertar o homem para a possibilidade de assumir seus múltiplos desejos e para (re) criar o real, conjugar de modo irrealizado as palavras: eis alguns alvos da poesia.

Contracanto, agudo grito de revolta, antidiscurso que “enxameia o brilho efêmero e equiprovável de múltiplas estrelas cadentes, em oposição ao brilho fixo e estável das constelações lógicas e harmonicamente constituídas”, a poesia quer “desnudar a falsa ordem dos discursos vigentes” e operar a “desaprendizagem da fala” (SEGOLIN, 1983, p. 10).

Em um trabalho contra as forças coercitivas do significado, o poeta procura instaurar uma linguagem contra os códigos consagrados. Entendida como um ser de linguagem, que não tem compromisso com verdades estabelecidas, que se dedica às “inutilezas” e se coloca na contramão do modo de pensar dominante, a poesia tem, pois, como condição prévia o não-saber. Quer libertar-se dos limites do real para superar o conhecimento estagnado e despertar um eu insuspeitado.

Manoel de Barros, por seu gesto subversivo, dinamiza a linguagem de modo singular. A recorrência de termos que sugerem a ideia de destruição construtora – “escombros”; “ruínas” é notória: o poeta desconstrói para fazer renascer/ germinar, pela linguagem, uma nova natureza pantaneira: “as ruínas dão árvores” (LPC, p. 198).

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mergulhando em uma viagem de retorno às fontes não contaminadas, em que a reaparição do esquecido e a subversão do estabelecido inspiram uma regeneração do espaço, elevando o “ser” à categoria superior em importância.

Ao refazer a ligação com as pré-coisas, Manoel de Barros revela a essencialidade do ser. A natureza torna-se expressiva e o sentimento passa a ser corporificado na imagem. Por ser cultor da originalidade, Manoel de Barros assume que a imagem poética “transporta-nos a origem do ser falante” (BACHELARD, 1974/ 1993, p. 7). O poeta fala, pois, “no limiar do ser” (BACHELARD, 1974/ 1993, p. 2).

As imagens, inquietantes e incomuns, revestem a linguagem de conteúdos formalizados alógicos e primam por (re) descobrir a essência das coisas. Apelando para a sensação e dando nova existência à realidade, Barros desidentifica os objetos para criar novos seres e novas possibilidades de conhecimento. Para compreendermos melhor tal procedimento, tomemos uma reflexão do pintor Lapicque:

Se, por exemplo, pinto a passagem do rio em Auteuil, espero que a minha pintura me traga tanto imprevisto, embora de outro gênero, quanto o que me trouxe o curso d’água verdadeiro que vi. Nem por um instante, se trata de refazer exatamente um espetáculo que já pertence ao passado. Mas necessito revivê-lo inteiramente, de uma maneira nova e pictórica desta vez, e assim fazendo, dar a mim mesmo a possibilidade de um novo choque (LAPICQUE, apud BACHELARD, 1974/ 1993, p. 17).

Choque, estranhamento. Manoel de Barros igualmente apropria-se de uma imagem da realidade para transpô-la em imagem poética. O Pantanal captado pela visão revela-se inesperado em sua complexidade e exige do poeta a criação de um efeito de espanto para que se sinta, por meio do rearranjo inusitado das palavras, um “novo choque”. O poeta deseja que os leitores possam refazer a imagem que o tocou e sentir efetivamente, pela poesia, as sensações que o maravilharam.

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apareceu. Formada, a imagem busca aprisionar a alteridade estranhas das coisas e dos homens. Segundo Bosi,

a imagem não decalca o modo de ser do objeto, ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e construído. Dado, enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma para o sujeito. Dado: não depende da nossa vontade receber as sensações de luz e cor que o mundo provoca. Mas construído: a imagem resulta de um complicado processo de organização perceptiva que se desenvolve desde a primeira infância (BOSI, 2008, p. 22).

As imagens poéticas constroem-se por similitudes, analogias sensoriais e suas características são estabelecidas pela qualidade dos afetos, podendo configurar-se nítidas/ esfumaçadas, fiéis/ distorcidas. Bosi acrescenta que

a imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência: primeiro e fatal intervalo (BOSI, 2008, p. 19).

Ainda refletindo sobre a percepção visual, Bosi (1999) nos informa que “o olhar não está isolado, o olhar está enraizado na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade” (p. 66). Tal modo de olhar está vinculado a um procedimento de busca do “saber verdadeiro” em que o ser “conhece sentindo e sente conhecendo” (BOSI, 1999, p. 74).

Manoel de Barros não apenas identifica, mas também ilumina, desnuda a coisa contemplada. O poeta (1991/ 2010) exibe imageticamente constatações particulares advindas de uma observação sinestésica e de uma aprazível experimentação da natureza:

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Na beira do entardecer o canto das cigarras/ enferruja.

Dentro da mata no entardecer o canto dos/ pássaros é sinfônico. (CCA, p. 289, 290, 291).

O poeta apregoa, portanto, o estudo do “território” não por meio de um método científico, rigoroso e racional, mas, sim, por meio de uma prática poética de rigor, flexível e sensível, em que a análise se efetiva sensorialmente: “Sabiás de outubro não delimpam seus cantos;/ os de março delimpam. Estamos estudando a/ razão disso por lâminas de cantos” (CCA, p. 293). O singular poeta mato-grossense ressalta que essa análise não necessita de instrumentos precisos, pois os olhos, nus e propensos a enxergar as coisas sob ângulos diferentes, são muito mais eficazes para a captação e a transformação de suas essências: “As 4000 estrias de um olho de mosca no verão/ irisam. Isso só pode ser visto sem microscópio”(CCA, p. 289).

Olhar poeticamente, então, dispensa o uso de lentes ou aparelhos de manipulação da realidade. Requer, pois, um revisitar das imagens, fundamentado no impacto “puro” que tal visualidade causa no poeta. A condensação do olhar com o objeto olhado cria uma nova espacialização. Não apenas se relata o presenciado, mas também se possibilita uma participação efetiva no acontecimento e no espaço experimentado.

Nesse sentido, “fazer poesia é transformar o símbolo (palavra) em ícone (figura)” (PIGNATARI, 1981, p. 14), ou seja, transfigurar o signo-para, que conduz a algo extra-verbal e é predominantemente constituído por contigüidade (proximidade), em signo-de, que quer ser a coisa representada, sem poder sê-lo e é estruturado por similaridade (semelhança).

Na obra poética de Manoel de Barros (LPC, p. 198-199) é promovida a metamorfose não só do espaço, mas também do eu-lírico: da 1ª pessoa do plural – “Há vestígios de nossos cantos nas conchas destes/ banhados” – para 1ª pessoa do singular – “há um rumor de útero nos brejos que muito me/ repercute”. Tem-se, portanto, um voltar-se sobre si mesmo.

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construção de um novo Pantanal promovido pelo poeta. É, portanto, “uma alma inaugurando uma forma” (JOUVE, P-J., apud BACHELARD, 1974/ 1993, p. 6), um poema instaurando um outro espaço. Manoel de Barros (LPC, p. 197) faz uso do gerúndio (“Corumbá estava amanhecendo (...). Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado”) para indicar um Pantanal em processo, que não está formado. “Da penumbra/ semi-escuridão, passando pela claridade/ sol até o lusco-fusco / pôr-do-sol”, verifica-se a busca de um conhecimento totalizante da natureza pantaneira, da vida, da poesia. O trabalho da palavra torna-a maleável, moldável, plástica.

A poesia de Barros percebe, então, o outro lado da realidade e convoca a fraternidade por meio de uma outra voz. “Sua voz é outra porque é a voz das paixões e das visões” (PAZ, 2001, p. 140) que modula a preocupação de se conjugar a humanidade para um bem comum. Paz (2001) compreende que a poesia “se ouve com os ouvidos, mas se vê com o entendimento” (p. 143). Concebe, ainda, o poema enquanto “conjuro verbal que provoca no leitor, ou no ouvinte, um fornecedor de imagens mentais” e acrescenta que “suas imagens são criaturas anfíbias: são ideias e são formas, são sons e são silêncio” (p. 143).

Promovendo a “loucura das palavras”, “voando fora da asa”, Barros (LI, p.26 e p. 21) liberta-se para atingir resultados transcendentes, transfiguradores e incomparáveis. A poética de Barros transporta-nos “para onde não se é esperado, ou ainda e mais radicalmente, [abjura] o que se escreveu (mas não, forçosamente, o que se pensou), quando o poder gregário o utiliza e serviliza” (BARTHES, 1994, p. 27).

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CAPÍTULO 2 – Manoel de Barros e Pantanal: o estado de

pré-coisa

2.1 À luz da crítica, a poesia

O estudo da obra de Manoel de Barros requer sensibilidade. Isto porque, ao desestruturar a linguagem, ao reinterpretar o mundo, ao associar intimamente palavra-imagem, o poeta volta-se aos momentos iniciais da literatura – que procurava criar e instaurar uma linguagem que fosse além da mera veiculação de mensagens, tentava religar o homem ao cosmos e acentuava a plasticidade e o caráter performático da palavra – e exige do leitor uma participação efetiva e diferenciada.

Müller (2003, p. 279), por exemplo, refuta a maneira como alguns críticos vêem a poesia de Manoel de Barros, já que “esquadrinham, analisam, decompõem matematicamente, e nada encontram”. Propõe um novo modo de olhar:

Será preciso talvez começar a olhar para a obra de Manoel de Barros como um todo articulado em torno de um projeto tenaz e insistente, mas cujas fronteiras (semânticas, discursivas) se movem e se deslocam constantemente, obrigando o leitor a um processo também constante de rememoração e ressignificação (MÜLLER, 2003, p. 279).

Ao analisar o conjunto da obra poética de Manoel Barros a partir do livro

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Descrevendo sua “caligrafia emendada e tímida”, Carpinejar (2006) insinua qual o melhor modo de compreender/ incorporar seus poemas: “cheirar o papel para entender o que ele escreve”. A partir de dados biográficos de Manoel de Barros, Carpinejar (2006) reflete sobre a trajetória literária do poeta que “adota a autenticidade dos defeitos, em vez de aceitar o polimento do senso comum”.

Bosi (2003, p. 488) ressalta a “coerência vigorosa e serena da palavra de Manoel de Barros, nascida em contato com a paisagem e o homem do Pantanal e trabalhada em uma linguagem que lembra, a espaços, a aventura mitopoética de Guimarães Rosa”.

No artigo “Manoel de Barros: o poeta universal de Mato Grosso do Sul”, Menezes (2001a) faz um levantamento da posição da crítica diante da obra do poeta e tece comentários sobre sua poesia. Põe em destaque comentários de críticos como Millôr Fernandes e Geraldo Carneiro sobre sua original escrita poética. Millôr Fernandes (apud MENEZES, 2001a) considera a obra de Manoel de Barros como “única, inaugural, apogeu do chão”. Geraldo Carneiro (apud MENEZES, 2001a) exalta sua poesia ao exclamar: “Viva Manoel violer

d’amores violador da última flor do Lácio inculta e bela. Desde Guimarães Rosa

a nossa língua não se submete a tamanha instabilidade semântica”. Menezes (2001a) conclui, então, que “conhecer a obra de Manoel de Barros é deixar-se levar pela magia de um mundo novo, um mundo no qual as coisas possuem sentido e deixam emanar a essência vital do universo”.

Em outro artigo intitulado “A auto-reflexão em ‘estado de palavra’ na poética de Manoel de Barros”, Menezes (2001b) reflete sobre a metalinguagem em sua poesia. Tomando como exemplo o livro Retrato do artista quando coisa (1998/ 2010), concebe que “a palavra é um ser ativo e dinâmico capaz de elaborar uma nova visão do mundo” e propõe uma leitura da poesia como “libertação da realidade” (Menezes, 2001b).

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Barros (1998/ 2010) permite abertamente que os insetos, as plantas, as aves integrem e usufruam preponderantemente seu corpo: “Insetos me desempenham”; “tenho predomínio por lírios”; “plantas desejam a minha boca para crescer/ por de cima”; “sou livre para o desfrute das aves” (RAC, p. 357). O poeta torna possível subtrair-se de suas limitações humanas para elevar-se à coisa, bem como à transmutação da realidade e de si próprio:

Uma rã me pedra (A rã me corrompeu para/ pedra. Retirou meus

limites de ser humano/ e me ampliou para coisa)

Um passarinho me árvore (O passarinho me/ transgrediu para

árvore)

Os jardins borboletam (Significa que os jardins/ se abrem agora

só para o buliço das/ borboletas?)

Folhas secas me outonam (Eu sou meu outono).

(RAC, p. 358)

Manoel de Barros redimensiona as palavras, operando combinações inéditas ao ponto de declarar “Já enxergo o cheiro do sol” (RAC, p. 357). Impregnadas do poeta, as palavras chegam “enferma de suas dores, de seus/ limites, de suas derrotas” (RAC, p. 359). Assim, Manoel de Barros assevera: “as palavras têm que adoecer de mim para que se/ tornem mais saudáveis” (RAC, p. 360).

Com o intuito de buscar a palavra primeira, Manoel de Barros altera o estado de calmaria, imposto pelos usos convencionais, a que estão sujeitas as palavras, induzindo-as a dizer o que normalmente não dizem, e promove viagens impensadas: “Bom é corromper o silêncio das palavras”; “gosto de viajar por palavras do que de trem” (RAC, p. 358).

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O que resta de grandezas para nós são os/ desconheceres; para enxergar as coisas sem feitio é preciso/ não saber nada. (...) É preciso entrar em estado de palavra (RAC, p. 363).

Desse modo, a palavra une o ser humano às coisas, conectando-o integralmente ao universo. A reflexão sobre a palavra permite, portanto, o levantamento e a descoberta de aspectos basilares que atravessam a obra poética de Barros.

Ao discutir sobre o termo metalinguagem, Menezes põe em destaque a literatura como objeto “olhante e olhado”:

Com o dom da palavra, o poeta pode, a partir da manipulação destas palavras, fazer parte da natureza. E, como parte da natureza, transmutar-se em seus diferentes reinos (MENEZES, 2001b).

Ainda guiando-se por conceitos filosóficos, Menezes explica:

Ser é igual à essência, o mais puro e límpido estágio almejado, e o homem é igual à existência, tempo de se exercer a evolução. Portanto, é no praticar a existência que se alcança o Ser, ou essência. (MENEZES, 2001b)

Utilizando um verso de Fernando Pessoa como epígrafe – “Não ser é outro ser” (RAC, p. 357) –, Manoel de Barros observa que aquilo que não tem existência para os olhos comuns se torna um novo ser. O poeta enxerga a essência e o avesso do ser, transfigura-o e provoca uma sensação de desconhecimento – não ser – para entregar ao leitor outro ser.

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Na poesia de Barros, as informações sobre o código são utilizadas com o intuito de ocasionar distúrbios propositais no momento de criação e da leitura. Substituir termos e dar a eles novos significados é mexer com os entremeios da metalinguagem (MONCINHATTO, 2009, p. 16).

Sávio (2004), em seu artigo “A poética de Manoel de Barros: uma sabedoria da terra”, faz sua análise por outro viés. Observa como o poeta, por meio de “imagens de extrema sensorialidade, volta-se para a terra e para a natureza”, incorporando-a ao próprio texto. Para a autora, o poema torna-se o espaço onde o homem redescobre o sentido de tudo e encontra um novo lugar para si mesmo:

A vida surge na fermentação dos pântanos onde novas espécies estão sempre sendo gestadas. É a vida que vem da decomposição, da podridão, a ‘química do brejo’, num verdadeiro processo alquímico que ali acontece (SÁVIO, 2004).

Castro (1991, p. 12), em seu livro A poética de Manoel de Barros: a linguagem e a volta à infância, por seu turno, percorre a obra poética de Barros para verificar como o mundo e o Pantanal, “em todo o complexo transformacional que, ele, o poeta, desde criança, contempla e admira” são expressos em palavras e ganham o espaço do todo.

Tomando por base as reflexões de tais críticos, podemos captar indícios de como a obra de Manoel de Barros necessita ser estudada. O poeta recolhe miudezas, “inutilezas”, coisas e seres desimportantes a fim de realizar uma reviravolta no pensar comum. O delírio do verbo pode ser experimentado quando Manoel de Barros consubstancia criações alógicas, transfigurações imaginativas, aproximações de realidades tensas e combinações de palavras contraditórias para desdizer o dizível, chegar ao inefável e se apossar da essência das coisas. Faz ele empenhadas explorações para alcançar o “antesmente verbal”, “a despalavra” e, desse modo, encontrar as pré-coisas, as origens.

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de Manoel de Barros exige a percepção de que os conceitos são semoventes. Manoel de Barros retira a palavra de seu uso acostumado, causando estranheza e criando novas relações de sentido. O poeta quer desestruturar a linguagem, inventar novos comportamentos para as coisas e explorar o mundo a partir de perspectivas incomuns.

O uso recorrente do prefixo des- mostra que o poeta quer desfazer o real, o mundo, a linguagem, para construir, pela palavra, um real transfigurado, um mundo novo e, assim, instaurar uma linguagem renovada. Procurando “desaprender”, “desentender”, “desexplicar”, o poeta desfigura aquilo que já existe com o intuito de promover os “deslimites” das palavras, romper com regras e normas e inventar “descomportamentos” para tudo que o rodeia. Como afirmam Heloisa Godoy e Ricardo Câmara:

“Criar começa no desconhecer”. É assim que o escritor Manoel de Barros explica uma poética (...) que apreende a essência dos objetos e dos homens desautomatizando a linguagem, “desexplicando” o mundo para melhor captar – e recriar – seu mistério (GODOY e CÂMARA, 1998, p. 5).

Manoel de Barros reconhece o Pantanal como lugar em que desenvolveu seus primeiros conhecimentos, espaço da infância, onde recebeu as primeiras percepções do mundo, onde seu olhar “viu primeiro as coisas”, onde suas “ouças ouviram primeiro os ruídos do mato”, onde seu olfato “sentiu primeiro as emanações do campo”. Esse universo infantil propiciou a apreensão de conhecimentos por meio do corpo: “O que sei e o que uso para a poesia vêm de minhas percepções infantis” (BARROS, 2006, p.30).

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Valendo-se da tríade memória/ invenção/ recriação, o poeta promove uma auto-representação oblíqua, em que a própria construção composicional das obras é ambígua: a poesia é, por vezes, convertida/ transfigurada em uma estética da prosa.

Manoel de Barros manipula, pois, espaços e pessoas que conheceu para construir artisticamente ambientes e seres. Pela combinação de componentes da vida real e de invenções estéticas, o poeta cria novas realidades.

Para compreendermos a escritura de Manoel de Barros sob o ponto de vista da presença da autobiografia, faz-se necessário definir tal produção literária. Bakhtin (2003, p. 139) tece importantes considerações sobre a autobiografia, concebendo-a como “forma transgrediente imediata em que posso objetivar artisticamente a mim mesmo e minha vida”. Ao identificar o autor da autobiografia como “aquele outro possível”, Bakhtin conclui que o discurso autobiográfico assume sentido quando constrói unidade artístico-biográfica.

Manoel de Barros cria textos poéticos em que procura perceber “o outro em relação a si mesmo” (Bakhtin, 2003, p. 13). A transcriação de dados biográficos em fatos ficcionais promove o experimentar (de) novo e reaviva duplicidades, ambigüidades, polissemias:

Somos diferentes. Eu mexo com palavras. O outro é fazendeiro de gado. Enquanto o cidadão mantém a casa em ordem, o poeta cultiva irresponsabilidades. Eu sou rascunho de um sonho. Ele é pessoa da terra. Eu tenho um entardecer de angústias. E o outro vai pro bar se esquecer. Recebo no meu olho beijamento de águas. Me sinto um ralo de sabedoria. E o outro zomba de mim. Gosto de me multiplicar todos os dias lendo frases do Gênesis. Ele se compadece de mim. A inércia é meu ato principal. Ele mexe com bois (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 25).

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Barros, cidadão-fazendeiro que escreve o texto, mas um outro que se incorpora pela e na escrita à medida que esses fragmentos dão volume ao texto.

Barthes (2003, p. 108) atenta para esse aspecto de modo analógico: “os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda; todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?”. Podemos responder a esse questionamento sugerindo que no centro encontra-se o poeta “arrancado de dentro dele pelas palavras/ a torquês” (R.A.C., p. 359), ente “entorpecido de haver-se”, “escuro”, múltiplo, corpo constituído de linguagem, “ser letral” que “envesga seu idioma” e deixa pedaços de si no cisco para instaurar um novo espaço. Barthes confirma:

O autor que vem do seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto de descontínuo de amabilidades (...); não é uma pessoa civil ou moral, é um corpo (BARTHES, 1990, p. 11).

2.2 Em sintonia, poesia e vida

A poesia de Manoel de Barros teve, fundamentalmente, seu início com o livro Poemas concebidos sem pecado (1937). Passou, até os anos 60, por

Face Imóvel (1942), Poesias (1947) e Compêndio para uso dos pássaros

(1960). Entre os anos de 1960 e 1980, seguiu com Gramática expositiva do chão (1966), Matéria de poesia (1970) e Arranjos para assobio (1980). A partir dos anos 80, sua capacidade imaginativa e criadora deslanchou com as publicações de Livro de pré-coisas (1985), O guardador de águas (1989),

Poesia quase toda (1990), Concerto a céu aberto para solos de aves

(1991), O livro das ignorãças (1993), Livro sobre nada (1996) e Retrato do artista quando coisa(1998). Ensaios fotográficos(2000), Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001), Cantigas por um passarinho à toa (2003),

Poemas rupestres(2004), Poeminha em língua de brincar (2007) e a trilogia

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infância (2007) e Memórias inventadas: a terceira infância (2008) são seus trabalhos literários subseqüentes.

Desde o livro de 1937, a experimentação do material verbal, em uma busca de retorno às origens da linguagem, pode ser evidenciada. De fato, o título do livro – Poemas concebidos sem pecado – já expõe a vontade do poeta de explorar o momento primeiro, onde tudo é paradisíaco e sem máculas, para criar poemas “puros”.

Manoel de Barros sente uma sedução edênica do/ e pelo mundo da palavra, em que se vislumbra a paisagem iniciática do gênesis. Em Caros Amigos, afirma:

Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras (BARROS, 2006, p. 31).

Indagado acerca de Poemas Concebidos sem pecado, Manoel de Barros (apud CASTELLO, 1996 b) declara que o considera como o melhor de seus livros, pois ele já “tinha a noção do valor lingüístico da poesia”. Para o poeta, “poesia não é para contar história, poesia é um fenômeno de linguagem”.

Podemos perceber que Manoel de Barros adota, ao longo de sua trajetória poética, uma postura de questionamento em relação à realidade, à linguagem, à exploração e interpretação do estar no mundo, desejando valorizar a língua falada pelo povo de sua terra, mostrar os tipos humanos marginalizados e despertar para uma nova estética: rastrear o espaço experimentado, pela via da memória e das sensações, para recriá-lo.

Referências

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