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Personagens-trastes: poéticos e pantaneiros

CAPÍTULO 3 – Pantanal e Poesia: homologias e transfigurações

3.4 Personagens-trastes: poéticos e pantaneiros

Manoel de Barros vale-se de sua “disfunção lírica” ao desenvolver criações inigualáveis. Seus personagens misturam realidade e invenção. O princípio selecionador das personagens, que se impuseram significativas, é

regido pelo desprendimento, pela gratuidade, pela convivência harmônica com a natureza, pelo deslocamento contínuo.

Deixo aos meus alteregos a tarefa de realizar os sonhos meus frustrados. Coisas que não fui capaz de fazer realizo através deles. Por exemplo: eu quis muito ser andarilho no Pantanal. Mas nunca agi no sentido de ser um andarilho. Então inventei alguns que fizeram isso por mim. Que dormiam debaixo de árvores, que usavam ornamento de trapos e eram aceitos pelos pássaros nas estradas (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 155). Um desses andarilhos que o poeta tem especial apreço é Bernardo da Mata. Com aparições recorrentes em diversas obras de Barros, Bernardo é um “bandarra velho, andejo, fazedor de amanhecer e benzedor de águas” (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 76).

Homem “apoderado pelo chão” – chapéu, que é “repositório de chuva e bosta de ave”; cabelos, onde nascem pregos primaveris; unhas, em que se abrem “sementes de capim”; voz, “quase inaudível”, que entoa “língua de folha e de escama” –, tem seus sentidos aguçados: “ouve de longe a botação de um ovo de jacaroa”; “sonda com olho gordo de hulha quando o sáurio amolece a oveira”; “escuta o ente germinar ali ainda implume dentro do ventre” (LPC, p. 211). Irmanado à natureza, Bernardo se ilumina ao ver o nascimento do sáurio, se compraz com vermes e lesmas e não se incomoda com os passarinhos do mato que sentam em seu ombro para “catar imundícia orvalho insetos”. Com “adesão pura à natureza e à inocência”, Bernardo se ocupa de “tudo quanto é mais desnecessário” na fazenda: “descoisas, niilidades” (LPC, p. 213). Tal personagem marcante ensina ao poeta a (re) descobrir o mundo poeticamente: “Bernardo é a palavra encostada à natureza. (...) Talvez tudo que dentro de mim quer ser natência, quer ser pré-coisa” (BARROS, 1998, p. 7).

Do “guieiro” Bernardo, Manoel de Barros ressalta a “vontade em mim do primitivo”; “vontade de conhecer o mundo só pelo rumor das palavras” (BARROS, 1998, p. 7). Por meio dele, o poeta empreende um conhecimento pelo sensível e dá um mergulho experencial de comunhão com o mundo.

Desejando integrar-se ao modo de vida de Bernardo, Barros afirma: “Bernardo é Outro eu. Quando o Bernardo fala, por exemplo, que uma ave

sonha de ser ele, ele está olhando o mundo com um olhar de pássaro” (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 167). Manoel de Barros faz uma “catação de eus perdidos e ofendidos” e de pássaros emblemáticos (BARROS, apud MÜLLER, 2010, p. 42) para refazê-los no interior de Bernardo.

Para Castro (1991), autor de A poética de Manoel de Barros: a linguagem e a volta à infância, Bernardo é uma espécie de “homem adamítico- pantaneiro, pois vive em estado de graça, em comunhão com a vida efervescente e transmutante, que pulsa em qualquer região do Pantanal” (p. 45).

A imprevisibilidade, a simplicidade, a indefinição e a irregularidade fazem parte das descrições de Bernardo. Tais aspectos apresentam semelhanças com o próprio espaço pantaneiro, o que nos leva a verificar que a identidade do indivíduo realiza-se na construção da identidade dos lugares.

O canto do que é convencionalmente excluído é motivo de revelação poética. A auto-expressão do natural indica, pois, um estado de envolvimento com a primordialidade das coisas.

Nesse sentido, vemos que Bernardo ensina ao poeta redimensionar o espaço e ver as coisas sem rótulos e sem nomes. “Ser que não conhece ter”, Bernardo configura-se como ente mosaicado, trazendo em seu interior fragmentos de outras personagens “pertencidas de natureza”, materializando a complexidade do espaço pantaneiro e refletindo preferências poéticas de Manoel de Barros.

O gosto poético de Barros pode ser representado por “um João tido por concha que desenhava no esconso, via estrelas subindo em lombo de borboletas e gostava de espolegar paredes” (MP, p. 151). Ao entrar em um ambiente “extremamente poético” – um terreno baldio sujo de mato onde encontrou “ramos de lua que reverdeciam de latas” – e observar crianças, “em pleno uso da poesia”, João sentiu regozijo e sorriu. Seu aprendizado, resultante de um conhecimento prático perante as fontes da terra, também deixa claro o ideal poético de Barros: “Eu conheço, eu sei” (MP, p. 152).

O zelo com a linguagem pode ser evidenciado por meio de Pote Cru (RAC, p. 360-361) e Passo Triste (RAC, p. 365-366). Considerados pelo poeta como “pastores”, zeladores da palavra, essas personagens o guiam na criação

de uma poesia do chão, do ínfimo, do transfigurismo do verbo. Pote Cru, que “de tarde deambula no azedal entre torsos de/ cachorro, trampas, trapos” e detinha “voz de oratórios perdidos”, é representante do poder que a palavra, esquecida em locais desprestigiados, tem para o poeta; Passo Triste, que “andava favorável para coisas, dava aos andrajos grandeza, vivia desgualepado, gostava de encantações do que de informações”, é não só representante da necessidade do poeta de retirar as palavras de seus usos acostumados, aplicando novo valor às coisas e provocando estranheza, mas também portador da almejada apropriação das essências: “pedra ser, inseto ser era seu galardão”. Barros afirma:

A palavra poética não será nunca um instrumento de informações senão que sempre um instrumento de encantações de celebrações (BARROS, 1998, p. 6).

Manoel de Barros faz dos versos de Jorge de Lima epígrafe para revelar seu objetivo criador: “Porquanto/ como conhecer as coisas senão sendo-as?” (CUP, p. 115). Nesse sentido, ressalta a necessidade e vontade de possuir para conhecer a essência das coisas.

Ao apresentar “Um Novo Jó” que “habitava/ sobre um montão de pedras, desfrutado entre bichos/ raízes, barro e água”, Barros avalia quais as vantagens obtidas por esse homem:

Bom era ser bicho/ que rasteja nas pedras;/ ser raiz de vegetal/ ser água; Bom era caminhar sem dono/ na tarde; Ir andando pequeno sob a chuva/ torto como um pé de maçãs; Bom era (...) pousar depois... como um garfo esquecido na areia; Bom era (...) ser como fruta na terra, entregue/ aos objetos (CUP, p. 116-117). Manoel de Barros revisita a Bíblia, fazendo surgir um novo modelo de homem justo, fiel até na miséria, personificando todos os “pobres do mundo” que, mesmo nada possuindo, não se revoltam, mas, sim, bendizem seu estado, porque encontram proveito no ínfimo. Ressalta, assim, a importância de ser traste, pois “só empós de virar traste que o homem é poesia...” (MP, p. 153). Fundamenta seu pensamento no poema “Teologia do traste”:

As coisas jogadas fora por motivo de traste são alvo de minha estima.

(...)

latas são pessoas léxicas pobres porém concretas Por isso eu acho as latas mais suficientes, por exemplo, do que as ideias.

Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo espírito, elas são abstratas.

E, se você jogar um objeto abstrato na terra por motivo de traste, ninguém quer pegar.

(...) queria que os vermes iluminassem. Que os trastes iluminassem

(PR, p. 438).

O homem perdido, sem referências, em seu eterno vagar pelo mundo, busca dar sentido a sua existência. Barros tenta alcançar a completude pela iluminação do traste, pela compreensão e (re) valoração do mundo a partir das coisas simples, que se encontram na contramão do pensamento contemporâneo dominante:

Das coisas humildes do chão, do homem destituído de valor social e da convivência amorosa e exuberante que sua poesia promove entre objetos que se evitam e se afastam em suas imagens, é que o poeta constrói uma teoria poética dentro da própria poesia. Em seus liames, uma força viva, pulsante, esvazia a palavra da sua carga cultural e instaura a infidelidade do sentido, escrevendo por imagens que corrompem o entendimento da realidade tal qual se conhece, abrindo caminho para o desconhecido, o invisível, o inaudível, a um mundo sinestésico (CAMARGO, 2004, p. 109).

Homens desprestigiados, os desheróis, chamam, portanto, freqüentemente a atenção do poeta: Malafincado – “feito de restos” – “falava em via de hinos; gostava de desnomear”; era “escorço de poeta”; Sombra-Boa – “ente abençoado a garças” – ouvia “conversamentos de gaivotas”; entrava “em pura decomposição lírica”; “conversava em Guató, em Português, e em Pássaro”; “nascera engrandecido de nadezas” (LI, p. 317 e 361).

Outra personagem, reconhecidamente representante simbólica do próprio pensar e fazer poéticos de Manoel de Barros, é o velho do gramofone. As palavras do “caderno de apontamentos” se confundem com as palavras do poeta. Recapitulando experiências passadas, o narrador relata que o avô, por conta da Guerra do Paraguai, escondeu-se no porão da casa e levou consigo o

Gramofone. Com o passar dos anos, uma árvore, favorecida, segundo o narrador, pelo ambiente escuro, começou a crescer no porão entrelaçada “aos pedaços de ferro do Gramofone”. A árvore irrompeu no assoalho da sala no período de Pentecostes e frondou no salão. O avô, “preso nas folhas e nas ferragens do Gramofone”, subiu também, flutuando “no espaço da sala, com o rosto alegre de quem estava encetando uma viagem” (CCA, p. 271, 272 e 273).

A partir dessa narrativa, podemos constatar similitudes entre as ações do velho do gramofone e as práticas poéticas de Manoel de Barros. O avô escondeu-se no porão, local escuro e solitário; Barros, por sua vez, tranca-se em sua “toca” por acreditar que o imaginário solta-se melhor no fechado e que, no escuro, enxerga melhor. Em seu “lugar de ser inútil”, Manoel de Barros (apud CASTELLO, 1996a) explora “mistérios irracionais”, descobre “memórias fósseis”, escava, anota. Lê não só a Bíblia e o livro da antropóloga Betty Mindlin, Vozes da Origem, mas também dicionários com o intuito de descobrir o primeiro “esgar de uma palavra”.

A escolha pela reclusão trouxe ao avô alegria e o fez livre; Barros encontra no ermo existente em seu íntimo liberdade criadora. O avô tomou a árvore como extensão de seu próprio corpo; Barros liga-se intrinsecamente a sua obra ao ponto de afirmar que os poemas sofrem do poeta. Mesmo demonstrando sentir-se bem morando no topo da árvore, o avô jamais abandonou o objeto que o mantinha ligado à terra; Barros intenta alçar vôos desafiadores, porém ele não o faz no alto, mas, sim, no chão de modo inquietador. O avô passa a enxergar a realidade por um novo ângulo; Barros, com seu olhar “torto”, transcende o real, não o ignorando, mas, sim, transfigurando-o. Ao se entrelaçar com a árvore e o Gramofone, o avô concilia o novo e o velho, mistura o “verdor primal com as vozes civilizadas”. Carpinejar (2006) confirma que “a singularidade da poética [de Manoel de Barros] reside em combinar a aguda percepção urbana com um repertório primitivo e rural”. Barros, enquanto criador, recupera comportamentos lingüísticos antigos, cria novas relações de sentido e produz a sensação do novo.

Até mesmo as aves constituem personagens fundamentais para compreensão e reelaboração do espaço. Os urubus “andam de a pé, caminham de banda, finórios, saltando de uma para outra carniça, lampeiros e

apeiam depois na terra, supimpando” (LPC, p. 229). O socó-boca-d’`água “espicha seu corpo pra trás, como se quisesse conversar de costas” (LPC, p. 230). O quero-quero ensina o amor ao chão e apregoa uma “filosofia nua, de vida muito desabotoada e livre” (LPC, p. 234). As garças são observadas pelo poeta como aves que “enchem de entardecer os campos e os homens e produzem no céu iluminuras” (LPC, p. 235).

Do urubu, o poeta assimila seu agir instintivo e o aproxima da sua atividade poética: “Nenhuma voz adquire pureza se não comer na espurcícia. Quem come pois do podre se alimpa” (LPC, p. 230). Coisas antes desprezadas ou consideradas apoéticas servem, portanto, de motivos para poetar: “Como eles, sobre as pedras, eu cato restumes de estrelas. É muito casto o restume” (LPC, p. 230).

Já com o socó-boca-d’água – pássaro que, apesar de apresentar fortes relações com as origens lendárias do Pantanal (“sabe onde mora o peixe desde quando por aqui era mar de Xaraés” (LPC, p. 231), não se deixa conhecer por completo –, Manoel de Barros demonstra que sua poesia guarda em sua essência um mistério e se integra ao Pantanal, tomando-o como um lugar adâmico, primário, sem feições definitivas, que está na origem do mundo. O local onde possivelmente esse pássaro mora é pura invenção poética:

ouço que mora na gravanha – ou no gravanha. Sabendo ninguém o que seja gravanha. A palavra é bonita e selvagem. Não está registrada nos léxicos. Ouço nela um rumor de espinheiro com água. Tem tudo para ser ninho e altar de um socó-boca-d’água.

(LPC, p. 231)

Assim, a poesia é entendida como um ser de linguagem, em que a dedicação às inutilezas, a adoção do sentido contrário ao modo de pensar dominante e o não compromisso com verdades cristalizadas são evidenciados.

Esse pássaro, ainda, conduz a reflexões importantes: “vê dos treze lados” (LPC, p. 230), assim como o poeta tem um olhar sensível para perceber múltiplos aspectos de um objeto; “tem fino ouvido de barata; sempre alarmado” (LPC, p. 230), do mesmo modo o poeta necessita ter sentidos acurados para ouvir sons originários, subterrâneos e transpô-los em poesia; “sonda a hora das

cobras e dos grilos subjacentes” (LPC, p. 231), revelando o poeta enquanto ser buscador, questionador, investigativo que tem um desejo especulativo frente às coisas; “pára atencioso, esgalgado” (LPC, p. 231); “parece que sopra no mundo uma avena entupida de areia” (LPC, p. 231), poeta, contemplador ávido do real, sopra no mundo objetos estranhos, revisitando a tradição para propor o novo.

Das garças, Manoel de Barros não encontra no canto a beleza, mas, sim, em suas cores e movimentos. Personificando as qualidades das garças, o poeta as coloca em elevado grau de importância, demonstrando-se enlevado: “a Elegância e o Branco devem muito às garças” (LPC, p. 235). Levantando a possibilidade de tais aves serem “viúvas de Xaraés” (LPC, p. 235), o poeta parece localizar “nostalgia de mar” e “sombra de dor em seus vôos” (LPC, p. 235). O poeta afirma, então, que no Pantanal o vôo da garça “adquire raízes de brejo” (LPC, p. 236).

O poeta ainda justapõe a brancura da garça ao escuro da lama e completa:

Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças. Insinuando contrastes – ou conciliações? – entre o puro e o impuro etc. etc. Não estarei impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre!

(LPC, p. 236)

Compreendemos que, para ter lugar na poesia de Manoel de Barros, o homem deve atingir a mesma condição das coisas inúteis. Seres que vivem a indigência social, que escorrem de um reino para outro, que colecionam o que não tem valor de uso, que constroem objetos lúdicos com aquilo que a sociedade jogou fora, servem para poesia. “Puros trastes em flor”, situados na origem dos tempos, se confundem com o chão, com os bichos, com as aves, assumindo características deles.

O Pantanal, igualmente, mostra-se múltiplo, indeterminado, indefinido, repleto de coincidências de contrários. A linguagem poética de Barros assume esse caráter de mosaico e põe em cena palavras com alta força imagética e densidade sensorial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Representar poeticamente espaços, redimensioná-los, transgredi-los. Eis algumas inquietações que moveram nossa pesquisa. A reconfiguração de uma região complexa, de sua cultura, dos seres que nela habitam, procura não somente cantar o real, mas transcendê-lo.

Para compreendermos como se dá essa reordenação espacial do Pantanal na poesia de Manoel de Barros, a partir da análise do Livro de pré-

coisas, foi necessário empreendermos um levantamento não só de outras

obras do poeta, mas também de comentários críticos acerca de seus trabalhos, bem como de conceituações de espaço em diversas áreas do conhecimento. Pudemos então tecer relações e verificar que Manoel de Barros se inscreve no Pantanal e faz com que os deslimites pantaneiros se insiram em seus poemas. A estrutura compositiva do Livro de pré-coisas nos indica um interrelacionamento entre as partes. O poeta, em um primeiro momento, anuncia o Pantanal, prepara o leitor para uma nova forma de conhecimento da região: por intensidades, sensações e não por representações. Em seguida, dá início às imprevisíveis transfigurações dos cenários e constrói micro-cosmos poéticos reespacializadores. Depois, volta sua atenção ao (des) personagem, Bernardo, ser sinestésico que conjuga sensações e se integra totalmente ao ambiente natural. Ainda nesta parte, o poeta propõe a confluência entre prosa e poesia ao inserir excertos de uma espécie de caderno de apontamentos que trazem experiências mosaicadas com a linguagem. Por fim, passa a reconfigurar pequenos seres presentes no universo pantaneiro, reveladores de práticas poéticas amplamente exploradas: valorização do “restume”; exploração das potencialidades da palavra; liberdade criadora; captação de métodos de outras artes.

A criação junto ao chão pantaneiro estimulou, no poeta, um apego muito grande à terra, à natureza, o que o levou, poeticamente, a valorizar as coisas mínimas, as “inutilezas”, a conservar o lastro “brejal”. Das “raízes crianceiras”, o poeta extrai uma visão “comungante e oblíqua” das coisas.

Manoel de Barros, inquieto e inquiridor, com olhos de descobrir, quer tornar aparente a descontinuidade do Pantanal. O pensar sobre a linguagem se dá pelo fragmento, por representações simbólicas, por nódoas de imagens, por sensações ímpares. O mosaico espacial, elaborado pelo poeta, reorganiza fragmentos de diferentes tipos: ruínas que enfrutam; águas que esculpem escombros; arbustos que desabrem nas pedras; insetos compostos de paisagem; rios que esfregam o rosto na escória e invadem as terras do Pantanal; cupins que levantam andaimes; ruas sem placas, sem nome, sem esquina; pessoas sem eira nem vaca; niilidades; descoisas.

O poeta transfaz o Pantanal, que passa a ser o território do corpo, da despalavra, da pré-coisa, da poesia. Barros intenta incorporar o espaço circundante com o corpo: seu olhar “torto e mosaicado” transvê as coisas, sua mão criadora rascunha transfigurações constantes, sua voz deformante (en) canta as fontes.

A matéria de sua poesia apresenta a ideia do devir: materializa a noção de Pantanal em processo e a relaciona aos deslimites da poesia. Há, na obra de Barros, diversos pontos em processo: processo de conhecimento com o corpo; processo de sensorialização das palavras; processo de “inauguramento de falas” (GA, p. 265); processo de confluência prosa-poesia; processo de engrandecimento das insignificâncias; processo de perda de fronteiras entre os reinos da natureza; processo de perda dos limites da linguagem.

Manoel de Barros desinventa as palavras para que elas retornem às funções primeiras. Quer recriar, na ponta de seu lápis, o saber original para encontrar as coisas em estado larvar: apalpar as primeiras formas; escutar os primeiros pios; ver as primeiras cores. Quer ascender “lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo – / ainda sem movimento. / Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes – / ainda sem penugens” (TGG, p. 410). Quer, portanto, inaugurar um novo espaço.

O poeta transcria o espaço pantaneiro por meio de uma escrita poética fluida, ambígua e complexa. Estabelece relações móveis entre os sentidos, dá abertura à plurissignificação, conjuga semanticamente termos díspares. Renova incessantemente a linguagem, inspirando-se na permanente mutação do ecossistema pantaneiro.

Barros pinta, com (des) palavras, um quadro sensível do Pantanal. Dialoga com as pinturas de Klee, Miró, Van Gogh, para delas extrair procedimentos de composição de imagens.

O poeta constrói personagens metamorfoseantes, por vezes indefiníveis, para consagrá-los a objetos poéticos sem limites. Criadores de desobjetos artísticos, seus personagens rompem com concepções convencionalmente instituídas e, por experimentarem os elementos da natureza de modo alquímico, adquirem o entendimento do poder da poesia: transmutação de coisas tidas como inferiores – inutilezas, monturos – em ouro poético “da boca do chão” (GA, p. 264).

O Pantanal, em Manoel de Barros, torna-se metáfora da poesia: “ocupação da palavra pela Imagem e ocupação da Imagem pelo Ser” (GA, p. 263); “raiz entrando em orvalhos”; “livre como um rumo nem desconfiado” (CUP, 109-110).

Manoel de Barros desfigura o espaço existente, desarticula-o para instaurar uma nova realidade, desvê o mundo para reencantá-lo. Permite-nos um novo entendimento de poesia, promove a sensibilização, a humanização, o senso crítico de seus leitores.

Além disso, o poeta tem interesse em ir ao encontro de uma linguagem ainda de todos inexplorada, transgride as leis da língua em vigor, levando a palavra a delirar e a tomar sobre si significados não habituais.

Manoel de Barros abre novos caminhos de percepções pela lógica da (re) descoberta. As imagens reconfiguradas mostram-se polivalentes, incompletas e apelam para uma experimentação sensorial do espaço.

A leitura que fizemos de Manoel de Barros nos sugere que há múltiplos modos de apreensão poética. Nesse sentido, esperamos que este estudo possa incitar novas inquietações, pois, assim como o Pantanal, a poesia descomparada de Manoel de Barros não possui margens.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret, 2004.

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