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CAPÍTULO 3 – Pantanal e Poesia: homologias e transfigurações

3.3 Mosaico espacial

O estímulo ao leitor, no sentido de refazer o mundo criado pelo poeta e de levar adiante seu ato de reflexão, só é adequadamente alcançado pelo fragmento. Concebido como projeto inacabado ou obra de arte em aberto, destinado a estender-se, o fragmento ganha força nos poemas de Manoel de Barros.

Novalis (1988, p.20), poeta da primeira geração romântica alemã, que se destacou por suas reflexões poetológicas, chamará os fragmentos de “pensamentos soltos”, “começos de interessantes seqüências de pensamento – textos para o pensar (...) pedaços do contínuo autodiálogo em mim – mergulhias”. Como “sementes do pensamento”, os fragmentos condensam ideias, métodos, reflexões em uma sinfonia de vozes para tratar da problemática da poesia propriamente dita.

Manoel de Barros faz pequenos recortes metonímicos da realidade e os cose metaforicamente, construindo, assim, um espaço mosaicado. Marinho (2004, p. 85), autor do artigo Cinema e literatura: O Pantanal como metáfora da Arte em Joel Pizzini e Manoel de Barros, reconhece que “os fragmentos de Pantanal corresponderão, assim, a representações metonímicas do conjunto do cosmos”. E acrescenta que “o Pantanal torna-se o espelho do mundo que o engloba, torna-se nenhum-lugar capaz de desvelar o conhecimento sobre o todo-lugar” (MARINHO, 2004, p. 85). Devemos entender, no entanto, espelho não no sentido de cópia do real, mas no sentido de recurso reflexivo para elaboração de uma cosmovisão construtora de um novo universo. Assim, esse universo pantaneiro recém inaugurado deve ser entrevisto como uma representação além do tempo e do espaço, pois, na poesia de Barros, abolem- se a linearidade temporal e a continuidade espacial.

Nesse sentido, ao encapsular conceitos importantes em estruturas mosaicadas e fragmentárias, Manoel de Barros exibe sua concepção de arte e de espaço. Ao defender que os poetas dão novos ares à linguagem – “minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem” (LPC, p. 219) –, Manoel de Barros reforça a necessidade do “criançamento do idioma” que permite a

“desarrumação sintática” – “eu briguei naquele menino com uma pedra... Crianças desescrevem a língua. Arrombam as gramáticas. (Como um cálice lilás de beco!)” (LPC, p. 221). O poeta trabalha, desse modo, a palavra ao ponto de tornar possível o inimaginável: “a voz de certos peixes fica azul” (LPC, p. 204). Nas e pelas próprias palavras, mostra sua “anormalidade”, seu “desvio de sensibilidade”: “por dentro da alma das árvores, orelha-de-pau está se preparando para nascer” (LPC, p. 205). Procura retirar as palavras de seus usos habituais para promover o delírio do verbo: “os ventos se vão apodrecer!” (LPC, p. 206). Pelo estranhamento, o poeta desidentifica o espaço para dar abertura a novas formas de conhecimento.

A própria forma utilizada pelo poeta materializa o aspecto do fragmentário. Como assinala Sávio:

há poemas em forma de entrevista, com perguntas e respostas, poemas em forma de moda de violão, há definições, há textos em forma dramática com as falas das personagens indicadas e marcações teatrais, textos desentranhados de textos, poemas com notas explicativas que se constituem em outros poemas (SÁVIO, 2004).

Manoel de Barros possivelmente faz uso desse tipo de composição inspirado nos fortes contrastes encontrados no espaço pantaneiro. As enchentes violentas e os estios prolongados, o erudito e o primitivo, o espírito preservacionista do pantaneiro típico e o espírito exploratório, os aglomerados humanos e os vazios retratam realidades ambíguas e paradoxais da região. O poeta apropria-se dessas divergências que acabam por se confluir e realiza, com rupturas, poemas.

A formação e trajetória geológicas do espaço pantaneiro têm referências à região como Mar de Xaraés. Essa configuração ou “transfiguração” do espaço em mar efetivamente deu-se pela impressão comparativa da paisagem, impressa nos textos dos cronistas, e suas posteriores interpretações.

A origem desta construção está congenitamente imbricada na própria geografia do espaço interior da bacia do Alto Paraguai e suas primeiras descrições: um espaço fluvial lacustre, entrecortado por rios e lagoas, que surge nos textos

quinhentistas com sua sazonalidade de paisagem móvel. (LEITE, 2010).

No Pantanal, o cruzamento entre tempo–espaço geológico, histórico e imaginativo, bem como a alternância do ciclo das águas e do estio presidem as condições de vida local. O sistema ecológico pantaneiro promove, portanto, uma interação entre o natural e o humano. A produção de objetos literários pode, então, absorver/ materializar características de um determinado espaço. Fernandes (2002), em seu estudo Entre histórias e tererés: o ouvir da literatura pantaneira, declara que as histórias populares coletadas revelam o que é ser pantaneiro e o que é o Pantanal. A partir dessas constatações podemos apreender relações e levantar questionamentos sobre o espaço:

Foi recolhida aqui uma literatura tão encharcada quanto à região, pois antes de tudo ela está mergulhada no homem, na sua cultura, sociabilidade e criatividade. Dela saem inúmeros mitos, registros de lugares assombrados (...). Destacam-se no repertório o sobrenatural e o natural, o místico e o factual (FERNANDES, 2002, p. 15).

Seres lendários que povoam o folclore brasileiro aparecem no Livro de

pré-coisas reconfigurados. O lobisomem é descrito como uma “espécie de

assombração”, “manso de coçar”, que “bebe leite e tem os olhos desúteis” (LPC, p.217). Velha Honória, irmã de lobisomens, depois de sumir e tardar comprido, se animaliza, aparece “de escamas e de língua muito fininha”, “passeia de cola erguida” e “com ar de serepente aberta” (LPC, p. 218). A nova criatura, “ave estrupício ou peixe-cahorro”, não pretendia “desvirar”, nem mesmo se a chamassem de “darling”, como os heróis gregos que viravam de “rochas de anêmonas de água” e, ao primeiro gesto de amor, desviravam. Isso demonstra que o enriquecimento e o aprendizado adquiridos com a natureza foram satisfatórios e deram a Velha Honória a sensação de completude.

O pantaneiro, por “cantos e recontos”, “sonha por cima das cercas”, “inventa, transcende, desorbita pela imaginação” (LPC, p. 208). O poeta incorpora tal particularidade para construir sua poesia “livre e andeja”.

Trabalhando a linguagem do homem pantaneiro – “não dá banho em minhoca”; “bota azeitona na empada dos outros”; “não mora no assunto e no morro” (GEC, p. 140) –, Barros recria conceitos ou expressões idiomáticas

presentes nas raízes históricas do povo: “coisinhas sem veia nem laia” (coisas reles); “tudo sem pé nem cunhado” (sem pé nem cabeça); “sou macaco pra lá de cipriano” (macaco velho) (LPC, p. 213). Manoel de Barros constrói oposições ao saber social a partir da criação de aforismos que ressignificam os valores do senso comum: “pessoas sem eira nem vaca” (sem eira nem beira) (LPC, p. 206); “o homem tinha mais o que não fazer” (não ter mais o que fazer) (LPC, p. 210). Ainda, dialogando com a cultura popular, notadamente no que tange às crendices populares, faz uso da linguagem informal: “Nhanhá mijava na rede porque brincou com fogo de dia/ - Mijo de veia não disaparta nosso amor, né benzinho?” (PCP, p.20).

Barros persiste em seu trabalho com as raízes da linguagem, fazendo um levantamento do modo de falar dos habitantes da região e criando novos termos: “supimpando”; “antechupando”; “gumita”; “duvidá”; “alimpar”; “oive de mi”; “güenta”; “desinquilibra” (LPC, p.229-235).

Ao criar um poema nos moldes das adivinhas populares – “O que é o que é?”; “Faz parte de árvore”; “Escuta fazerem a lama como um canto”; “Se obtém para o vôo nos detritos”; “cobre vasta extensão de si mesmo com nada” (APA, p. 173-174) –, Manoel de Barros quer que o leitor encontre uma resposta. As pistas dadas nos fazem inferir que aquele que está ligado aos saberes da natureza, que tem sensibilidade para ouvir os sons inaugurais, que alça vôos a partir dos restos desprezados e que se vê invadido por nada, é o próprio poeta.

Manoel de Barros, portanto, emprega em seus poemas a linguagem oral pantaneira que brota do envolvimento do homem com a natureza. Segundo Fernandes,

a natureza apresenta-se nas vozes dos pantaneiros como uma representação de mundo, isto é, se a natureza os guia, pois os pantaneiros são parte dela, a representação é, em sua essência, uma poesia do mundo natural. Logo, essas representações poéticas traduzem o como-ser e o como-fazer no mundo em que vivem. Em outras palavras, elas são os mecanismos de o homem se compreender em face ao seu próprio mundo, extraindo dele as sutilezas da vida e do viver (FERNANDES, 2004, p. 92).

Dessa forma, as narrativas orais, que circulam no Pantanal e são incorporadas aos poemas de Manoel de Barros, são manifestações poéticas, ressonâncias do mundo natural que traduzem o próprio homem. “Traduções” estas que se fazem no momento em que o homem se integra à paisagem natural se deixa dominar corporalmente por ela.

Podemos observar também a preocupação de Manoel de Barros em transformar sua poesia em um espaço de experimentação e de propostas performáticas, bem como em recuperar a dimensão sensorial das palavras.

Desse modo, Manoel de Barros (GEC, p. 131) procura estabelecer, nos e pelos poemas, conexões livres entre chão e mar, chão e natureza, chão e homem. Opera com verbos que deixam à mostra os significantes para conduzir a significados:

O chão reproduz do mar

o chão reproduz para o mar o chão reproduz

com o mar

O verbo reproduzir, por exemplo, combinado com diferentes preposições – “do mar”, “para o mar”, “com o mar” –, expõe a fusão e confusão de terras e águas no espaço sólido/ líquido da planície pantaneira. Nesse sentido, logo nos versos iniciais do poema, é encenada a ambigüidade do Pantanal: lugar de águas móveis.

O poeta trabalha, também, o verbo parir, novamente articulado com distintas preposições, com o intuito de revelar que no chão encontram-se as origens: pare – “a árvore”, “o passarinho”, “a rã”:

O chão pare a árvore pare o passarinho pare a rã – o chão pare com a rã o chão pare de rãs e de passarinhos o chão pare do mar (GEC, p. 131).

O poeta seleciona os verbos “reproduzir” e “parir” para desenvolver a ideia de que o chão, na sua rudeza masculina, ao encontrar-se com a liquidez feminina do mar, torna-se propulsor da produção, da multiplicação de novos seres.

Por conta desse caráter “originário”, o poeta encontra, no chão, motivos para poetar, produzindo “objetos estranhos”4 e construindo imagens inusitadas. Manoel de Barros acredita, pois, que o chão viça “do homem/ no olho/ do pássaro, nas pernas/ do lagarto/ e na pedra” e ressalta, desse modo, o imprescindível papel do chão para a perpetuação, para o crescimento opulento e para a irmanação das espécies. Procura correlacionar, então, o chão e o homem, na medida em que sugere que o chão brota do homem, ganha viço e vida no “olho” atento “do pássaro”, nas “pernas” assustadas “do lagarto”, na estaticidade escultural das “pedras”:

O chão viça do homem no olho do pássaro, viça nas pernas do lagarto e na pedra (GEC, p. 131)

No Livro das Ignorãças (1993/ 2010), Manoel de Barros retoma tal aspecto em poemas de “Mundo Pequeno”, não hesitando em afirmar: “o chão tem gula de meu olho”.

 

O poeta intenta alçar vôos desafiadores, porém ele não o faz no alto, mas, sim, no chão de modo inquietador: “Seu caminho consiste para um esvôo rente/ rente até o chão ervar-se/ de seu corpo” (CUP, p. 106).

Para materializar sua mensagem, o poeta faz uso de representações simbólicas. Para tanto, vale-se do “coleante” lagarto e do “escorregadio” caracol. Manoel de Barros explica, em nota poética de rodapé, que o lagarto exercita seu instinto explorador; explora, no entanto, “conchas mortas”:

       4 

Definida por Bosi (1996, p. 30), a noção de estranhamento

longe de ser um artifício forjado para complicar a frio a relação do leitor com o texto (...), provém da agudeza de intuição e da intensidade de sentimento do eu lírico em face de um mundo que ainda é novo e imprevisto apesar de gasto por séculos e séculos de uso e convenção.

O lagarto/ pode ser encontrado em lugares alagadiços/ nas chapadas ressecas/ nas sociedades por comandita/ nos sambaquis: ao lado das praias sem dono explorando/ conchas mortas (GEC, p. 131-132).

Igualmente, o poeta exibe sua necessidade de explorar tudo aquilo que é considerado sem préstimo, pois, por meio da “inutileza”, pode despertar novas formas de pensamento, prezar e valorar o desprezível, recusando o conceito de descartável imposto pela sociedade.

O lagarto é ainda descrito pelo modo particular de se mover:

O lagarto é muito encontradiço também/ nas regiões decadentes/ arrastando-se por sobre paredes do mar como a ostra (GEC, p. 132).

Manoel de Barros deixa-se arrastar pelas palavras. Estas, arrancadas de seus usos contratuais, tornam-se matéria de poesia, produzindo efeitos impensados. O verbo “colear” é usado para caracterizar o deslizar em ziguezague do lagarto, ação que pode ser propícia ao homem e que também pode ser favorável ao poema, pois dá mobilidade aos sentidos.

Conforme define o poeta, poesia é “voar fora da asa” (LI, p. 302), é “delírio do verbo” (LI, p. 301), livre para criar transfigurações incomparáveis e inesperadas.

 

Manoel de Barros procura, desse modo, “desentender” para desenvolver inovações constantes diante do espaço já existente.

Continuamente jogando com os pares opositivos e complementares masculino/ feminino, Manoel de Barros passa a ressaltar a qualidade fecundante da lagarta:

Parece que a lagarta grávida se investe nas funções de uma pedra seca/ passando setembro/ e/ sentindo precisão de escuros para seu desmusgo/ se encosta em uma lapa úmida/ e ali desova/ - ninguém sabe (GEC, p. 132).

Quando “prenhe” de poesia, as palavras investem-se de funções outras e “desovam” concepções de mundo renovadoras. Os resultados alcançados após o período de contemplação, recolhimento, “secura”, absorção e reflexão guardam sempre o caráter de mistério da poesia.

O lagarto representa, portanto, a própria linguagem poética que objetiva sinuosamente reavivar o corpo, provocando sensações para que se possa sair deste espaço para outro.

O caracol é, também, observado por diversas perspectivas:

um caracol é a gente ser: por intermédio de amar o escorregadio/ e dormir nas pedras. É:/ a gente conhecer o chão por intermédio de ter visto uma lesma/ na parede/ e acompanhá-la um dia inteiro arrastando/ seu rabinho úmido (...). É, dentro de casa, consumir livros e cadernos e ficar parado diante de uma coisa/ até sê-la (...) (GEC, p. 132).

A partir do caracol, Manoel de Barros desvela o caminho para a construção do (auto) conhecimento: faz-se necessário esmar, amar, ser, para então, conhecer.

Ao destacar a necessidade e vontade do poeta de se apossar da essência das coisas, de fundir-se, no/pelo ato poético, com o objeto cantado, Manoel de Barros aproxima-se do pensamento de Cortázar que afirma, que “poesia é vontade de posse, é posse” (CORTÁZAR, 1974, p. 100 e 101). O poeta, assim, não se contenta em comunicar emoção pura, quer expressar aquilo que o toca e sensibiliza. Por não se conformar em simplesmente nomear e descrever o objeto de seu interesse, o poema almeja sê-lo.

O homem, embora inicialmente sinta dificuldade em se relacionar com o chão, introduz-se sorrateiramente nesse universo e identifica-se, aos poucos, com o movimento “coleante” de certos seres da natureza:

Na pedra o homem empeça de colear Colear advém de lagarto

e não incorre em pássaro Colear induz para rã e caracol Colear sofre de borboleta e prospera

para árvore Colear prospera para o homem (GEC, p. 132-133)

O homem do poema, tal qual o poeta, constrói uma lógica da similaridade, da analogia, em que a racionalidade se vê comprometida com a sensação. Segundo explica Cortázar (1974), o homem adota a lógica como um instrumento do pensar pela qual chega, por meio da apresentação de evidências, a determinadas conclusões. O mesmo homem, porém, revela-se seduzido pela possibilidade de elaborar analogias (“sentir próximos e conexos elementos que a ciência considera isolados e heterogêneos” p. 86) muito mais transcendentes do que pode admitir qualquer racionalismo:

O poeta se apresenta como o homem que reconhece na direção analógica uma faculdade essencial, um meio instrumental eficaz; não um surplus, mas um sentido espiritual – alguma coisa como olhos e ouvidos e tato projetados fora do sensível, apreensores de relações e constantes, exploradores de um mundo irredutível em sua essência à razão (CORTÁZAR, 1974, p. 87-88).

No poema, o poeta transforma-se em homem coleante e sinuoso, a espalhar-se pelo chão e a incorporar o dinamismo vital da natureza. Os “vergéis do poema” permitem o florescimento de um novo ser.

O homem se arrasta de árvore escorre de caracol nos vergéis do poema O homem se arrasta de ostra nas paredes do mar (GEC, p.133)

Explora, assim, novos modos de conhecer o mundo e move seus leitores a perceber a realidade diferentemente. Sob o lema “eu escrevo com o corpo”, o poeta nos faz perceber que “a poesia não é para compreender, mas para

incorporar” (AA, p. 178). Somente quando o homem “se incrusta de árvore/ na pedra/ do mar”, é que está pronto para o poema. Deste modo, a apreensão do mundo por uma via sinestésica e sensorial, fala da poesia como conhecimento que nos chega pela via do corpo, corpo vibrátil, em sintonia sensível com uma natureza absolutamente sensual e sedutora, a oferecer-se ao leitor sinuosamente nos desvãos do texto:

compreender o andar liso das minhocas debaixo da terra; escutar como os grilos/ pelas pernas; pessoas que conhecem o chão com a boca como processo de se procurarem/ essas movem-se de caracóis! (GEC, p. 132)

Para Zumthor, a poesia é uma linguagem sensível que nos afeta intelectiva e sensorialmente, pois traz marcas corporais, marcas da voz. Ainda que a leitura seja solitária, podemos recuperar a voz subterrânea e restaurar a dimensão performática do poema: “A obra poética é, desta forma, o fruto da conjunção de um dado textual e de uma ação sociocorporal, um e outro formalizados de acordo com uma estética” (ZUMTHOR, 2005, p. 144).

Em um jogo de “estímulos e percepções sensoriais múltiplas” (ZUMTHOR, 2005, p. 142), Manoel de Barros põe em cena a linguagem e realça seu caráter performático. Nos versos finais deste poema, Manoel de Barros corporifica a plena fusão entre o humano e o natural. O poeta cria um mosaico imagético com ostras, pássaros, águas, no qual o homem integra-se perfeitamente:

O homem

é recolhido como destroços de ostras, traços de pássaros surdos, comidos de mar O homem

se incrusta de árvore na pedra

do mar

(GEC, p. 133).

Aqui, a palavra “destroços” revela que o poeta desconstrói para construir, para fazer renascer/ germinar, pela linguagem, um novo homem.

Esse poema contém forte densidade estética e humana. Estética, obtida por meio de aspectos formais, de escolhas de verbos (reproduzir, parir, viçar, colear, arrastar, incrustar) e seres representativos (lagarto, caracol). Os verbos repetidos inúmeras vezes deixam evidente o trabalho do poeta que quer afetar o corpo sonoro, melódico do signo, para aproximá-lo das qualidades que o real suscita, e alterar o significado. Isso exige do leitor outra forma de participação e o convoca a experimentar/ sentir o poema. Humana, pois intenta recuperar, no leitor, a relação primeira, sensorial, perdida com o real. O poema busca, deste modo, uma integração e um despertar de um eu insuspeitado. Procura, ainda, propor uma relação inédita homem/ linguagem, poema/ espaço.

Mesmo em leituras “puramentes visuais”, os poemas de Manoel de Barros evocam uma vocalidade “produtora de emoções que envolvem a plena corporeidade dos participantes” (ZUMTHOR, 2005, p. 141). Assim, perscrutar seus poemas com o corpo, deixando os sentidos em alerta, é primordial.

A voz deformante e “em cio vegetal” (RAC, p. 359) e o gesto coleante do poeta projetam “o corpo no espaço da performance visando a conquistá-lo, a saturá-lo” (ZUMTHOR, 2005, p. 147) com seu tom e seu movimento.

Compreendendo o Pantanal como um lugar edênico, adâmico, Manoel de Barros alia sua poética ao meio em que cresceu e vive. Sua sensibilidade, proveniente da criação primitiva que lhe foi dispensada, deixa à mostra uma estreita ligação às raízes, uma necessidade de fusão com o objeto cantado, um desejo latente de retorno às fontes não contaminadas.

Segundo Castro (1991), o poeta “passa a assumir todas as propriedades e faculdades de cada ser que habita o Pantanal, estabelecendo uma possibilidade de comunicação direta entre todos os componentes deste universo” (p. 12). A árvore, elemento tão caro ao poeta, por exemplo, tem seu valor assegurado, já que “ensina de chão” (AA, p.184):

Eu queria aprender o idioma das árvores. Saber as canções do vento nas folhas da tarde.

Eu queria apalpar os perfumes do sol. (CPT, p. 482)

Dentro do contexto de coparticipação dos seres em transformação, Barros expressa seu relacionamento com a palavra “semelhante ao movimento do devir da natureza: ora as relações são de intensa vibração, ora de longa contemplação da ausência” (CASTRO, 1991, p. 40):

Todos os poetas podem ter qualidades de árvore.

Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros (...) todos os poetas podem humanizar as águas

(...) os poetas devem aumentar o mundo com as suas metáforas (...) podem ser pré-coisas, (...) podem compreender o mundo sem conceitos, (...) podem refazer o mundo por imagens,

por eflúvios, por afeto. (EF, p. 383)

Acredita, pois, que “o Pantanal está nas palavras. Palavras têm sedimentos. Têm boa cópia de lodo, usos do povo, cheiros da infância, permanências por antros, ancestralidades” (BARROS, apud MULLER, 2010, p. 71).

Funda, então, uma nova escrita: Barros escreve nas águas e focaliza o

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