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As crenças, valores e expectativas societais estão na base da construção das realidades nas quais os sujeitos desta pesquisa estão inseridos e, por consequência, também na base da consciência política destes. Isto quer dizer que, muitas vezes – por meio de processos de internalização das instituições, das crenças, da cultura e dos valores construídos socialmente e mediante o diálogo interior vivido por cada sujeito

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com todas essas instâncias – a individuação do sujeito e de seus discursos sobre a sua realidade demonstram a naturalização de processos e fenômenos sociais vinculando-os ao senso comum. Assim é o caso da corrupção em Moçambique. Ou melhor, é anterior a isso: assim é o caso da expressão “Vamos lá falar”, usado para pautar, para dar vida, para negociar, para materializar a dinâmica do fenômeno da corrupção enquanto prática social.

Disso decorre que, baseado nesse diálogo que o sujeito faz consigo mesmo é que ele responde à dinâmica social da qual faz parte e constrói conhecimentos, simboliza o conhecido e o experienciado. Assim, posso afirmar que o universo simbólico construído socialmente pelo sujeito “[...] tem suas raízes em suas experiências históricas de vida e

da sociedade a que pertence [...]” (Sandoval, 1994:61). De fato, quase que

invariavelmente, o uso daquela expressão evoca ou é reforçada por apelos estritamente vinculados à história do país: sabes como é que é pa ou não preciso te dizer ou ainda é aquela situação que já conheces pá. Além disso, há também a o uso de termos que apelam pela empatia do interlocutor como mamã, ajuda lá tua filha ou ahhh, ouve lá, somos irmãos pá.

Assim, neste tópico, apresentarei construções discursivas sobre o fenômeno da corrupção em Moçambique que mais chamaram minha atenção e que, no meu entender, ajudam a compreender como e que fatores sócio-históricos são convocados por moçambicanas e moçambicanos para atribuir sentidos ao fenômeno e/ou a prática da corrupção localmente e, com ele negociar.

Em Moçambique, quando se ouve a expressão “Vamos lá falar”, “[...] a gente já sabe, é dinheiro que está em jogo”, destaca Martinha. “[...] é uma forma de sugerir a outra pessoa [...] que determinado processo seja facilitado e aconteça de uma forma rápida [...]. É um primeiro passo para estar em uma situação de suborno, de corrupção”, diz Eduardo. Juliana revela que “[...] a expressão diz tudo... Que nesse processo precisamos acertar alguns trâmites ilegais [...]. Usa-se para introduzir, para iniciar uma conversa, digamos, fora do âmbito oficial”. Já Fernando explica que a expressão é usada quando “[...] a oportunidade se abre. Tudo que vai ser falado ali, fica só entre aquelas duas pessoas... Não é uma conversa normal... É uma conversa que sai do âmbito normal”.

De fato, a expressão foi popularizada por uma peça publicitária veiculada no início dos anos 2000 pela Moçambique Celular (MCel) – empresa moçambicana de telefonia móvel. Ela fazia alusão aos preços acessíveis das tarifas em vigor, “liberando”

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o consumidor da preocupação com o tempo das ligações ao que, um dos personagens da propaganda dizia para seu interlocutor vamos lá falar. Entretanto, “as pessoas adaptaram para ‘vamos lá beber’, quando alguém vai te pagar cerveja, por exemplo... Ou ‘vamos lá trabalhar’, quando quer ajuda para alguma coisa. Mas, ‘vamos lá falar’, aí já é outra coisa, quer dizer alguma coisa que normalmente não se deve fazer. Não sei como ganhou esse significado, mas é isso”, completa Aníbal.

Ao que tudo indica, não parece haver entre moçambicanas e moçambicanos, algum tipo de dúvida sobre o caráter ilegal e/ou criminosa das práticas corruptas ou dos malefícios que ela causa individualmente e para a sociedade como um todo. E, de alguma forma, essa clareza explica, pelo menos em parte, o fato da expressão “vamos lá falar” ter sido adaptada para iniciar uma abordagem sobre algo ilícito. Tanto é assim que, para Eduardo

Existe essa expressão e existem outras também (...). São sempre expressões com duplo sentido, sempre dá pra entender de mais de uma maneira... [E, existe um motivo para que essas expressões tenham duplo sentido?] Sim, a ideia é não tornar o pedido explícito, tanto que se tu entenderes é porque já sabes do que se está a falar, que estás dentro do contexto e se não entenderes, ele também não precisou se expor naquela situação, mas se entenderes, que é o que interessa, já sabes que estás em um processo de ilegalidade, de algo ilegal... Então, é por ai, é uma forma de ver se a outra pessoa está dentro desse mundo... Imagina se alguém quer te vender droga, ele não vai te dizer de forma explícita, vai usar um vocabulário específico, e, se tu fores desse meio, vais entender do que se trata... Então, são códigos, na verdade são códigos [Eduardo. Maputo, 29/08/2013].

Alexandre também argumenta no mesmo sentido. Aponta para o caráter protetor das expressões usadas por corruptos e corruptores.

Ahhh, além de “vamos lá falar”? Sim, tem, muitas outras: “fala lá como homem”, “Não vai dizer nada?”, “Vais ficar calado ai mesmo?”, “Faz lá ver alguma coisa”... São muitas... Outros nem tem papas na língua, te pedem assim mesmo, dente-com-dente, de forma direta mesmo. É como eu estava a dizer, essas são formas de falar que todos usavam antes, sem maldade, mas para não haver queixa, você ir lá na administração ou na polícia, fazer a queixa, eles dizem coisas que não querem dizer nada de mal, que não fazem mal a ninguém, que não prejudicam ninguém, entende meu filho. Mas, para quem é moçambicano mesmo, basta ouvir uma dessas coisas, já sabe do que se trata. Não há como não saber! Mesmo no caso do refresco, tem lugar que se tu dares um refresco, a pessoa te insulta, fica ofendida porque o que ele quer mesmo, não é refresco. Refresco, qualquer um pode comprar, compra-se com moedas pá! Então, quando ele diz isso, está falar de outra coisa, que é maior, mais sério. Sim, quando ele pede um refresco, o assunto é sério! [Alexandre. Nacala, 31/07/2013]

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Um dos aspectos que mais rapidamente me saltou aos olhos é que, quando os entrevistados se referem ou explicam a ocorrência da corrupção, os hospitais ou postos de saúde; as repartições públicas destinadas a oferecer serviços burocráticos como a emissão de documentos de identidade, passaporte ou licença para atividades comerciais e; a abordagem da polícia de trânsito são os exemplos mais citados. Ao mesmo tempo em que este aspecto demonstra uma ação corriqueira ou de grande incidência; por outro lado, me parece, ilustra uma visão do problema centrada no que tem se chamado de “pequena corrupção”. Alexandre explica que

Quando se fala de “Vamos lá falar”... Essa expressão tem um sentido. Se refere à ajuda que as pessoas querem te dar quando vais a um hospital, por exemplo. Sempre, pelo menos aqui em Moçambique, sempre, vai aparecer alguém que diz “Eu posso facilitar para o senhor” ou “ajudar o senhor”, entendes? Só que, essa ajuda não é de graça, para ele te dar essa ajuda, para ele efetivar essa ajuda, vais ter que “falar” primeiro, entendeste? (...) Isso acontece muito porque sempre há bicha nos hospitais. Não conheço nenhum hospital que não tenha bicha do Rovuma ao Maputo. Mas para ela te ajudar, você tem que pagar. Aqui, toda gente sabe disso: quando vais ao hospital, principalmente quando é ocorrência grave, tem que levar algum, sempre. Se não, você até pode ir para o hospital com uma febre de nada e morrer lá mesmo porque pode piorar até ser óbito. Então, é isso mesmo: para que a pessoa seja atendida mais rapidamente, a pessoa tem que pagar[Alexandre. Nacala, 31/07/2013].

Estela se refere às repartições públicas para exemplificar a ocorrência do fenômeno da corrupção. Ou seja, ao que as pessoas se referem quando dizem “vamos lá falar”.

É que está pedir para dar algum dinheiro para facilitar um processo para sair mais rápido. Porque aqui, quando você vai numa instituição pública onde tem processos, onde se trata processos, documentos e essas coisas, sempre demora. Sempre há de haver muita demora. Tem dias que você está muito aflito, precisa daquilo com urgência, e eles sabem disso... Então dizem, para poderem te ajudar e facilitar o processo, “Epa, tens um refresco ai”, então, tu já sabes né [Stela. Beira, 19/07/2013].

Já Martinha usa o exemplo da polícia de trânsito, também muito mencionada para descrever o oferecimento de suborno e, até mesmo, de extorsão por parte das autoridades públicas.

Então, quando é a polícia pedem refresco geralmente, às vezes dizem mesmo, “Tô com fome”... Às vezes mandam parar e nem pedem documentos e já dizem “Estou com fome”. Então, tu já sabes... E se tens algum problema ou falta-te algum documento, esse é o momento de você se antecipar, o que tens, entregas [...]. Pra mim, é uma das formas, ou é a forma principal que as

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pessoas encontraram de aumentar a renda né, talvez... No caso da polícia, quanto recebe um polícia? Três, quatro mil sei lá, por ai, a forma dele de aumentar a renda, nós sabemos, é essa, é aldrabar as pessoas, tirando dinheiro se tem alguma coisa errada com o carro e mesmo quando não tem, eles pedem, usam a autoridade deles e as pessoas dão [Martinha. Maputo, 26/08/2013].

Aníbal, conta também sua experiência e, para isso, relata os abusos que sofreu por parte de atendentes de repartições públicas quando tentou, junto com um amigo, abrir um negócio de revenda de créditos de energia pré-paga:

Queres abrir um negócio, por exemplo... Até, aconteceu comigo há uns três anos atrás. Eu e um amigo meu queríamos abrir aquele negócio de vender credilec. Então, pra aquilo, tens que tratar muitos documentos, tipo, alvará, seguros, registro criminal e essas coisas. Só que, epa, quando vimos que o dinheiro que tínhamos como nosso capital inicial ia acabar antes de conseguir a última licença, antes do negócio começar a funcionar, desistimos. Não ia dar certo, íamos gastar dinheiro de graça, deitar dinheiro fora mesmo porque cada lugar que ias, pediam um extra, tipo uma ajuda para eles poderem nos facilitar, entendes?[Aníbal. Beira, 25/07/2013]

Ao longo deste trabalho, venho enfatizando que concebo a corrupção enquanto um fenômeno social problemático, no sentido de que sua prática, ou melhor, a opção por praticar e perpetuar suborno e/ou outras derivações deste mal expressa, por um lado, a funcionalidade da prática e, por outro, determinada incapacidade institucional que gera tal demanda. Por isso mesmo, para entender o fenômeno, é preciso perseguir também seus efeitos compensatórios (HUNTINGTON, 1975; LEITE, 1987). Neste sentido, despertou minha atenção o fato dos entrevistados usarem, com frequência, verbos como ajudar, facilitar, contribuir ou sobreviver para se referirem à funcionalidade da corrupção. Aliás, nas três falas acima, estes conceitos estão presentes e de forma altamente reincidente. A meu ver, é curioso que estas expressões sejam mais imediatamente e mais espontaneamente usadas para se referir à corrupção do que prejudicar, por exemplo.

O mais contundente exemplo é o do motorista Fernando quando explica como ele vem usando meios públicos para benefício próprio. Ou seja, àquilo que, pelo menos à luz da legislação se chamaria suborno e/ou peculato, Fernando atribui a designação “contribuição” visto que, ao “ajudar” pessoas necessitadas de transporte usando a viatura da administração pública, estas expressão sua gratidão com pequenas “contribuições” em dinheiro.

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[Então, o uso da expressão “vamos lá falar” se refere a uma contribuição?] Yap, é uma contribuição sim. Porque, veja lá, eu estou a sair daqui da Baixa para Matacuane, por exemplo e, alguém me pede boleia, entendes? Ou mesmo não me pede, mas eu paro ali na paragem e pergunto: “epa, quem vai para Matacuane?”. As pessoas já sabem que como não é um chapa, não vão pagar aquilo que deveriam pagar num chapa normal, vão dar apenas uma contribuição. Então, com aquele dinheiro, não é que eu vou sair dali e fazer minha vida não, é também, por sua vez, uma contribuição para o meu vencimento no final do mês, entendeste? Por isso que eu digo que é uma contribuição para me ajudar. Eu também faço a minha contribuição para ajudar aquela pessoa que está, por exemplo, a atender nas repartições. Epa, eu chego ali com os despachos do dia, ele me vê, já me conhece e vem me anteder para eu não perder muito tempo. Então, o que eu faço, também deixo a minha contribuição e assim a vida vai andando a cada dia-a-dia [Fernando. Beira, 25/07/2013].

Já mencionei anteriormente e reforço a ideia de que todo esse universo simbólico que venho demostrando aqui é construído socialmente pelos diversos sujeitos, pelos diversos atores políticos em Moçambique. Prossegue que, para que esse diálogo – simbólico e material – seja possível, é necessário algo que os ligue, que os conecte: neste caso específico são as suas raízes comuns alicerçadas em suas experiências históricas, a vida cotidiana própria da sociedade a que todos pertencem. De fato, quase que invariavelmente, o uso das expressões que dizem respeito às práticas corruptas evocam ou são reforçadas por apelos estritamente vinculados à história do país: sabes como é que é pa ou não preciso de dizer ou ainda é aquela situação de sempre. Além disso, há também o uso de termos que apelam pela empatia do interlocutor como mamã, ajuda lá tua filha ou ahhh, ouve lá, somos irmãos pá.

Assim, a meu ver, torna-se inevitável a abordagem de questões legadas às dificuldades de vida impostas, primeiro, pelo sistema colonial e, em seguida, à luta contra pobreza que perpassa toda a história de Moçambique independente. Esta última, por sua vez, foi agravada pelo conflito armado que dividiu a nação e colocou o país em uma condição mais precária ainda, com problemas estruturais de saúde pública e de insuficiências técnicas e econômicas que pudessem garantir acesso da maioria da população à nutrição básica. Em conjunto, estas questões levaram o país à situação de extrema pobreza na medida em que corroboraram para a inviabilidade de produção interna que se desdobrou em impasses de ordem política que a nação atravessa(va).

Quero, antes de continuar, chamar atenção para o fato de que não estou aqui argumentando que a corrupção em Moçambique é consequência dos fatores que ora listei. A questão é, na verdade, mais complexa que isso: estou considerando a hipótese de que todos esses problemas tenham desenvolvido entre moçambicanas e

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moçambicanos a ideia de resistência e de sobrevivência na medida em que, em raríssimos (ou em nenhum) momentos da história de Moçambique independente os cidadãos puderam contar com instituições políticas críveis, eficazes e abrangentes no sentido de atender as demandas de todos aqueles que se dizem moçambicanas ou moçambicanos, independente das suas crenças políticas, dos seus privilégios sociais e econômicos e do pertencimento a determinado grupo étnico. Ou seja, na vida cotidiana, moçambicanas e moçambicanos sempre legitimaram o ato de ajudar ao próximo, à mãe, ao irmão ainda que, para isso, burlem à lei e à ordem supostamente estabelecidas. Afinal, a lei e a ordem são traçados, são determinados por uma elite política que, ao longo da história recente do país jamais deu conta de se autosignificar, de se autolegitimar enquanto representantes do complexo e diverso povo moçambicano. A maioria de moçambicanas e moçambicanos viveram uma dura realidade na presença do colono português e continua sendo assim com os governantes atuais: ambos são entendidos por aqueles como opressores do povo. É daí que resulta o não respeito às instituições políticas e/ou públicas ao que, a busca pela sobrevivência independe delas e muitas vezes, tal é o caso aqui, vai de encontro à atuação de tais instituições.

Assim, as crenças, os valores e as expectativas societais de moçambicanos e moçambicanas em relação ao problemático fenômeno da corrupção devem ser compreendidos como representações sociais sobre a natureza, a estrutura, as práticas e as finalidades das relações sociais. Isto quer dizer que, em Moçambique, a corrupção está alicerçada em elementos socialmente determinados por meio de diversos processos de dominação e exploração que, por sua vez, impactam diretamente nas escolhas e no agir dos indivíduos.