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Desvendando o mito da supervalorização da corrupção

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A corrupção é a causa e efeito de si própria, tipo Deus. (...) A ineficiência, o oportunismo natural das pessoas, a falta de meios, a fraqueza na formação, enfim, os problemas típicos do sub- desenvolvimento são transformados em manifestações claras de uma amoralidade congênita. (...) A retórica anti-corrupção no contexto do desenvolvimento atingiu patamares de discussão que há muito deixaram de ser úteis. Quando na discussão de um assunto sério o mais incrível e aventureiro é que parece mais plausível, é sinal de que chegou o momento de fazermos um compasso de espera. Caso contrário rendemo-nos à hipocrisia.

Elísio Macamo!

Em Moçambique, o mito da supervalorização do problema da corrupção se relaciona com a popularidade dos discursos que a engrandecem, apresentando-a como a maior e, por vezes, única responsável pela pobreza, injustiças e desigualdades sociais e econômicas. Estes discursos foram e são recorrentemente adotados por diversas lideranças políticas (Machel, 1974; Chissano, 2001; Guebuza, 2004), instituições nacionais e internacionais (Ética Moçambique 2001; Usaid, 2005; World Economic Forum, 2013), trabalhos de analistas e acadêmicos (Mosse, 2004; Fael, 2008; Hanlon, 2001, 2002) e, finalmente, reproduzidos pela imprensa nacional (Savana, 2008, 2011, 2012; O País, 2011, 2013) e internacional (Folha de S. Paulo, 2007; Correio Brasiliense, 2007) quando se referem ao problema da corrupção em Moçambique. Tanto é assim que, como atesta o jornalista e pesquisador moçambicano Marcelo Mosse (2004), desde 1992, com a instalação do regime democrático, o combate à corrupção tornou-se o principal trunfo para a conquista de votos, especificamente a partir do período que antecedeu as terceiras eleições presidenciais ocorridas em 2004:

A paz e a estabilidade foram sempre os aspectos de fundo na mobilização política, mas nesta terceiras eleições gerais, o combate à corrupção é um dos principais trunfos. Todos os candidatos prometem combater a corrupção, mas nenhuma das propostas apresenta uma compreensão profundo do fenómeno (MOSSE, 2004: 3).

Claramente, trata-se de uma estratégia cínica e oportunista da classe política, que mercantiliza um falso dilema, mas que encontra grande aceitação popular: a corrupção é o problema decisivo para o atraso social, econômico e político. Portanto, eliminá-la significaria vencer, finalmente, todos os entraves ao desenvolvimento. Posto isto, todas

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as atenções e esforços deveriam ser direcionados, de forma prioritária, para o combate a este mal. Sou contrário a esta ideia e entendo que sua aceitação está enraizada na sumária atribuição aleatória do nome de corrupção à variedade de práticas sociais e políticas condenáveis. Basta reparar que qualquer carência de verba em obras ou serviços públicos são facilmente percebidas pelo coletivo de beneficiados e, estes, imediatamente atribuem suas insatisfações à corrupção, ainda que determinadas adversidades possam ter origem na incompetência administrativa ou no simples roubo de verba pública pelo funcionário detentor de determinado cargo.

Um exemplo gritante neste sentido e que ajuda a desvendar o “mito da supervalorização do problema da corrupção” é um estudo que utilizou as compras públicas para discutir o desperdício no gasto do setor público em diversos órgãos e instâncias dos países da Comunidade Europeia, no período compreendido entre 2000 e 2005 (BANDIERA et al., 2009, p. 1278 apud MOTTA, 2010, p. 4-5). A pesquisa se propunha a chamar atenção para o erro comum de se atribuir responsabilidade quase que exclusiva à corrupção pelo desperdício observado no setor público e, para isso, separou o conceito de “desperdício” em dois tipos: (1) o desperdício ativo, aquele que beneficia direta ou indiretamente o tomador de decisão e tem como exemplo clássico a corrupção nos contratos, ou seja, quando funcionários públicos inflam o preço pago por um determinado bem em troca de suborno; (2) o desperdício passivo, aquele sem benefício para os tomadores de decisão e pode derivar do fato de os funcionários públicos simplesmente não possuírem habilidades necessárias para minimizar os custos ou de não terem incentivos para isso, mesmo sendo capazes de fazê-lo. Dentre as várias conclusões apresentadas pela pesquisa, uma das mais provocativas e que de certa forma embasa a crítica às formulações precipitadas e oportunas que engrandecem a corrupção é a de que “83% do desperdício analisado era de caráter passivo” (MOTTA, 2010, p. 2). Evidentemente, trazer o resultado daquele estudo para esta discussão, não significa argumentar nem sugerir que se abandone o combate à corrupção nem mesmo que se desvie a atenção a ela dispensada. Com isso, quero apenas alertar para o fato de que é preciso considerar, ainda que por mero benefício da dúvida, a relevância de outros aspectos que podem concorrer para carências e ineficiências das instituições públicas.

Da mesma forma, reafirmo que entendo a corrupção como um mal, um problema. Entretanto, não ignoro ponderações que apontam para a funcionalidade da corrupção, destacando que, eventualmente, sob determinados aspectos, este mal tem seu lado negativo compensado por outros efeitos (Huntington, 1975; Leite, 1987). Embora

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polêmico, este ponto de vista é incontornável para qualquer discussão que atente à complexidade do fenômeno da corrupção.

O cientista político estadunidense Samuel Huntington (1975) é autor central da discussão sobre a funcionalidade da corrupção. Ele a apresenta na sua obra “A ordem política nas sociedades em mudança”, publicada pela primeira vez na década de 1960. Ali, sua tese fundamental é a de que tudo foi, em grande parte, produto da rápida mudança social e da rápida mobilização de novos grupos para a política e, em paralelo, o desenvolvimento das instituições políticas tradicionais não acompanhou esse ritmo. Nesse sentido, observa que, em matéria de política e de economia, apesar do otimismo apresentado por alguns estudos macroeconômicos, tem aumentado o abismo entre os países ditos desenvolvidos e aqueles em vias de desenvolvimento. Estes últimos, por sua vez, têm como representantes os países em “modernização” da África, da Ásia e da América Latina. A preocupação de Huntington é indicar os modos de diminuir esse fosso e, justamente, uma das suas propostas consiste em recomendar que se preste atenção, também, nos efeitos compensadores da corrupção.

Antes de prosseguir, duas observações importantes: (1) a “ordem política” a que se refere Huntington é uma meta e não uma realidade; (2) a “modernização” é para ele um processo múltiplo que envolve mudanças em todas as áreas do pensamento e da atividade humana. Assim, a modernização social e política gera a instabilidade política, sendo o grau de instabilidade proporcional à taxa de modernização: o desenvolvimento econômico aumenta a desigualdade econômica ao mesmo tempo em que a mobilização social faz decrescer a legitimidade dessa desigualdade, gerando violência e corrupção.

Como bem pontuou Schilling (1999), em Huntington, a

Relação entre modernização e corrupção é dada por três fatores: a modernização implica numa mudança nos valores básicos da sociedade; contribui para a corrupção pela criação de novas fontes de riqueza e poder e, terceiro fator, por conta das mudanças que introduz nos resultados (outputs) do sistema político, com a multiplicação das leis aumentando as possibilidades de corrupção (SCHILLING, 1999, p. 31).

Posto isto, Huntington parte do princípio de que, naquelas realidades políticas, a corrupção e a violência se entrelaçam e tanto uma quanto outra “são meios ilegítimos de se fazer demandas [legítimas] ao sistema, mas a corrupção é também um meio ilegítimo de satisfazer tais demandas” (HUNTINGTON, 1975, p. 77). Assim,

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A corrupção, como a violência, ocorre quando a ausência de oportunidades de mobilidade fora da política se combina com a existência de instituições frágeis e inflexíveis, canalizando energias para o comportamento político desviante (Idem, p. 80).

Deste modo, para o autor, a corrupção (e a violência) seria resultado do processo de modernização política e reflete a debilidade a que, em geral, as instituições políticas sofrem durante processos de mudança e/ou adaptação a novas realidades. Resumindo, a corrupção seria um meio alternativo, entre outros, pelo qual os atores socais se relacionam com o sistema político. Dito de outra forma: a corrupção gera oportunidades para aqueles que estão excluídos do sistema político. A partir desta colocação, chamo atenção para a fragilidade de formulações que supervalorizam a corrupção e a apontam como “o” grande mal que afeta o poder público e, consequentemente, a vida pública; que ela é a causa decisivas da pobreza das cidades, dos países e dos povos; que ela corrói a dignidade do cidadão, contamina os indivíduos, deteriora o convívio social, arruína os serviços púbicos e compromete a vida das gerações atuais e futuras. Evidentemente, pelo menos dentro de uma racionalidade desejável, principalmente quando se está diante de fenômenos complexos, nenhuma dessas colocações pode encontrar unanimidade.

Para rebater esse posicionamento, basta recorrer a Huntington que – sempre considerando a “ordem política” nas “sociedades em mudança” – aponta que “[...] aquele que corrompe as autoridades policiais de um sistema é mais suscetível de se identificar com o sistema do que aquele que ataca as delegacias policiais do sistema” (Idem, p. 77). Ora, não é benéfico que se conserve a ordem? Não é desejável que a ordem seja capaz de integrar os indivíduos da sociedade? São estes os questionamentos (irônicos) que estão nas entrelinhas do pensamento de Huntington. Inclusive, ele vai mais longe quando procura destacar a funcionalidade da corrupção sob a sociedade.

A corrupção em si pode ser um substituto da reforma e, tanto a corrupção quanto a reforma, podem ser substitutos da revolução. A corrupção serve para reduzir as pressões grupais para as mudanças políticas, assim como a reforma serve para atenuar as pressões de classe para as mudanças estruturais (Idem, p. 77).

Se, por um lado, a corrupção pode acentuar as desigualdades existentes – e continuar sendo um fator de reprodução do sistema e de estabilidade política – visto que privilegia aqueles que já detêm maior acesso ao poder político e, portanto, maior acesso às riquezas do país; ela também pode, por outro lado, ser um canal de acesso gradativo à

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participação política e à integração de novos grupos no sistema. Da mesma forma, a corrupção decorrente da expansão da intervenção governamental pode estimular o desenvolvimento econômico. Por isso mesmo, para Huntington (1975), não por acaso, ao contrário da prática nos países desenvolvidos, “os países em modernização podem aceitar como normal a utilização difundida do cargo público para a obtenção de riqueza, enquanto, ao mesmo tempo, encaram de maneira mais rigorosa o uso da riqueza para a conquista de um cargo público” (Idem, p. 80).

O autor encara também o desafio de analisar a relação entre a corrupção e as leis e, entende que a corrupção pode ser um caminho a ser trilhado como forma de superar as normas tradicionais e/ou os regulamentos burocráticos que emperram o desenvolvimento econômico. Neste sentido, na visão de Shilling (1999), Huntington escreveu, provavelmente, a sua frase mais amplamente citada e criticada nos estudos teóricos sobre a corrupção: “em termos de crescimento econômico, a única coisa pior do que uma burocracia rígida, supercentralizada e desonesta é uma burocracia rígida, supercentralizada e honesta” (Idem, p. 83).

Uma sociedade relativamente incorruptível - uma sociedade tradicional, por exemplo, em que as normas tradicionais ainda são poderosas - pode descobrir que uma certa dose de corrupção é um lubrificante ótimo para acelerar a caminhada para a modernização. Uma sociedade tradicional desenvolvida pode ser melhorada - ou pelo menos modernizada - por um pouco de corrupção; mas é improvável que uma sociedade em que a corrupção já esteja difundida seja melhorada por mais corrupção (Idem, p. 83).

Existiriam, desta forma, “graus” de corrupção: o “benéfico” e o “maléfico” – quando esta já se estendeu excessivamente. Por outro lado, não ficou fora da sua análise o reconhecimento de que existem forças sociais bem diferenciadas utilizando-se das duas capacidades de formular demandas ao sistema (corrupção e violência), com a primeira respondendo às demandas dos estratos ou grupos sociais econômica e politicamente privilegiados e a segunda respondendo às demandas dos que têm menos acesso àqueles recursos. Segundo Schilling (1999), a grande contribuição deste polémico e provocador autor para os estudos e análises sobre a corrupção reside no seu mérito de lidar com a questão de forma pragmática... “Huntington balança a discussão sobre esta [a corrupção] ao retirá-la do seu nicho tradicional e moral” (SCHILLING, 1999, p. 33).

Embora Huntington tenha sido um dos pioneiros no estudo sistemático do fenômeno da corrupção – e ao mesmo tempo inovador, visto que em suas análises se

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distanciam da armadilha da moralidade como argumento – sua proposta de análise não teve muitos adeptos, fato que ficará evidenciado com sua ausência na exposição que se segue.