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Eu só posso dizer o que eu penso. Não sei se o que eu penso é o correto para vocês que estudam. Mas eu tenho minha opinião, que é aquilo que eu vejo acontecer todos os dias... [Claro, é isso mesmo que me interessa... É exatamente o que senhor pensa que eu quero saber.] Pois bem então, como eu vejo, a corrupção no meu modo de entender é um doença. Uma doença muito grave que pode afetar pessoas ou então um país inteiro, uma população de uma de uma vez para sempre. Sabe aquele tipo de doença como o Sida, que hoje há remédios para a pessoa melhorar, levar sua vida nas calmas, mas há de chegar uma hora que não há mais nada a fazer. Então, é esse tipo de doença que é a corrupção. [Na sua opinião, então, Moçambique é um país doente?]. Por demais, por demais até. Foi como que cada um contagia o outro, assim sucessivamente, até ficarmos todos doentes, todos picados, assim como faz conosco o Sida. Mas como a maioria já está picada, infeccionada, como se diz, parece que é uma coisa normal, já né se nota que estamos a conviver com uma doença, entende meu filho? É assim que eu vejo. Porque é assim: hoje em dia, eu, não posso viver e fazer as minhas coisas sozinho. Certo ou errado, não posso fazer nada sozinho. Preciso daquele e daquele, então, eles já são soropositivos, mas eu não sei. Então, só vou saber depois que já estou envolvido com aquela pessoa. Então, com a corrupção é mesma coisa... eles fazem você chegar a um nível que falta pouco para conseguires o que queres e depois dizem... [Dizem vamos lá falar!]. Exatamente! Então, dali para frente, yap, tens que molhar a mão de

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não sei quem ... então já estás contaminado porque não queres perder teu tempo ou as suas coisas são mais importantes e vais pagar... Por exemplo, queres abrir um posto de saúde, vais pedir autorização na direção provincial da saúde, te dão. Depois vais na direção provincial das finanças, te dão. Depois vais na direção provincial do trabalho, te dão. Depois vais pedir o alvará aqui no município, ele te pede um refresco. Prontos, vai largar tudo o que fizeste durante meses, ou até anos por causa de um machangana filho da puta? Nada disso! Pagas! [Alexandre. Nacala, 31/07/2013]

Neste estudo, nada poderia ser mais preocupante – e, por consequência, merecedora de uma intervenção urgente – do que constatar que em Moçambique está presente essa “concepção infectocontagiosa” do problema da corrupção, conforme trecho extraído do depoimento de Alexandre. Não por acaso, iniciei a discussão sobre a eficácia política destacando-a. Ademais, é triste reconhecer que este equívoco cometido por Alexandre é partilhada pela grande maioria dos entrevistados: eles se vêm completamente impotentes perante o avanço da legitimidade e normatização da prática da corrupção no país. Mais: entendem que ela, inclusive, está na base das relações sociais, políticas e econômicas.

De fato, esta dimensão do Modelo de Consciência Política de Sandoval (2001) se refere, em certa medida, ao grau em que os atores sociais percebem ou estabelecem as possibilidades de sucesso em uma eventual síntese entre sua vontade de participar, de fato, dos processos referentes às estratégias de atuação traçadas para promover determinada mudança, motivada pelos seus sentimentos de injustiça e a defesa de seus interesses.

Assim, quando observo os discursos dos sujeitos políticos a respeito da eficácia política percebo, na maioria desses sujeitos, a consciência de que muitas vezes eles se vêm diante de situações, ações e estratégias absolutamente ineficazes e consideravelmente desmobilizadoras tal é a força e poder que a corrupção ganhou nas relações sociais e políticas em Moçambique.

A boa notícia é que há, contudo, a clareza de que inexiste a possibilidade de desistir da luta... Ao menos de desistir de ter esperança, de esperar pelo dia de glória, do dia em que as coisas serão diferentes. Entretanto, já o disse, entendo como problemática, principalmente entre Os não do Sul, a forma como essa vitória é concebida na medida em que ela não combate nem busca eliminar a corrupção – pelo menos no primeiro momento – mas sim, perpetuá-la, desta vez, sob sua “direção”.

O trecho a seguir, também extraído do depoimento de Alexandre, é bastante significativo e ilustra esse contexto:

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Só pra chegar lá, pra ser presidente, você já tem que estar no esquema. E, quando já és presidente, vais ver a porta do seu gabinete. Um por um, “e então?”, “e então?”, “e então?”. São as pessoas que te ajudaram, que você sabe que, se não fossem elas, não estarias ali. Mas também tem que, há um pensamento de que quando entrar alguém daqui, tem que ajudar os daqui, para fazer um equilíbrio das coisas com o Sul. Isso, não é justo, eu sei, mas vai acontecer. Eu te digo, vai acontecer mais dia menos dia. Então, quando você me pergunta se vai acabar, ou se é possível acabar com a corrupção aqui em Moçambique, eu te digo: não. Agora se você me dizer que sim, eu te digo de novo: talvez, mas vai demorar muito porque aqui, as pessoas até já nem passam tanta fome como antes. Então, nós aqui, não queremos mais megalhinhas, queremos o poder mesmo. Queremos ver como se comportariam eles sem o poder, sendo mandados por nós. Queria ver eles falarem de unidade nacional e essas coisas todas que falam na TVM [Alexandre. Nacala, 31/07/2013].

Conforme se vê, está presente no depoimento de Alexandre, o sentimento de “vingança” e isso é deveras preocupante porque ao invés de Alexandre pensar na construção de algo maior, que ultrapasse a corrupção e os problemas que dela derivam, ele está preocupado com a vingança em si. Ou seja, deseja que, acima de tudo e necessariamente, os que hoje se beneficiam da corrupção experimentem a condição de excluídos e injustiçados sem que isso possibilite a construção de uma nação mais justa e igualitária perante a coisa pública. O depoimento de Estela também deixa clara a tendência de normalização da corrupção na sociedade moçambicana na medida em que, ao contrário da esperada condenação social e/ou legal, há uma aceitação e, inclusive, as pessoas têm “inveja” de que tem a possibilidade de ganhar a vida a partir da corrupção. Ela entende que há corrupção em todos os lugares do mundo, no entanto, em Moçambique...

[...] é normal, a pessoa não vai pra cadeia, não é mal olhado nem nada. Pode viver muito bem enquanto todos sabem que aquele dinheiro ali é dinheiro que ele recolhe de pessoas necessidades, entendeste? Acho que em outros países não é assim. As pessoas pelo menos tem onde queixar e quem faz isso, sem esconder bem, quando descobrem vai pra cadeira. Tem outros países até que quando a pessoa sabe que epa, já me descobriram, ele se mata porque sabe que não vai escapar. Que, não há como escapar. Agora aqui, quando vai chegar esse dia? Não estou a dizer que a pessoa tem que se matar, mas pelo menos, ter vergonha de andar na rua. Sabes por que ele não tem vergonha. Porque sabem que as pessoas, em vez de queixarem, têm inveja, querem estar no lugar dele, a fazer o que ele faz. Então, as pessoas em vez de ter raiva e queixar, não, as pessoas têm inveja. É um povo isso mesmo, é um país assim, para você aprender a ser cidadão do bem? Não né! [Estela. Beira, 19/07/2013].

Outro elemento de que lancei mão para entender o sentimento de eficácia política em relação ao fenômeno da corrupção foi questionar os entrevistados acerca das

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políticas públicas levadas a cabo ou que podem ser desenvolvidas para fazer frente ao problema da corrupção no país. Mais uma vez, foi quase unânime a ideia de que sendo os agentes de tais políticas públicas pessoas interessadas no status quo estabelecido – onde prepondera a prática da corrupção, onde a corrupção é um meio de vida – suas ações já estariam “infectadas”, para me fazer entender a partir da expressão usada por Alexandre. Observe-se, por exemplo, o que pensa Aníbal sobre a possibilidade de combater a corrupção a partir da concepção e efetivação de políticas públicas pensadas exclusivamente para este fim. O estudante acredita nelas...

[...] Principalmente se bem implementadas, bem controladas, podem ajudar sim e muito. Mas o problema não é esse... [Qual é?] O problema é justamente que vai fazer essas políticas públicas, entendes? Como eu te falei, as pessoas complicam os serviços que são simples para você ter que pagar então, talvez, não há possibilidades de termos essas políticas públicas com essa lisura toda que era de se esperar... Eu já conversei sobre isso com colegas aqui... Mesmo se você pagar o caso dos funcionários das alfândegas, que dizem que tem os melhores salários do país, digo isso porque se calhar, mesmo a questão dos salários não resolve... Então, mesmo esses que dizem que têm bons salários, também dizem que são os mais corruptos de todos. Então, é complicado. Mesmo a denúncia, acho que só um slogan do governo... [As pessoas denunciam a corrupção?] Já ouvi alguns casos, mas bem poucos... Mas nessa nossa realidade, você denuncia, as pessoas vão achar que você é um extraterrestre entendes. Aqui, é muito normal, então, as pessoas fazem às vistas de todos mesmo e te mostram que não estão com receio de você denunciar... De certa forma, é uma intimidação entendes? Eles mostram que há um sistema forte e que não adianta você fazer nada. As pessoas que iam trabalhar com isso, ou que trabalham com isso, também sentem essa mesma pressão. Então, digamos, eles já fazem parte desta realidade que estamos a viver, que estamos a tentar enfrentar, mas não estamos a encontrar uma saída [Aníbal. Beira, 25/07/2013].

Rodrigo também pensa do mesmo jeito:

Acho que é difícil, não acredito porque são eles mesmos. Pode-se implementar, se institucionalizar uma lei que projete ele. Aliás, é isso que acontece. Implementa-se coisas em seu próprio benefício ou sabendo que essa norma vai prejudicar aqueles que querem incomodar eles, entendes? É isso mesmo! Agora, estamos a falar de coisas práticas, é isso mesmo. Eles têm tudo lá, são intocáveis porque eles é que fazem as próprias leis e fazem para que projete a eles, para que beneficie a eles mesmo. Então, o poder política também está nesse jogo [Rodrigo. Nacala, 04/08/2013].

De fato, ouvindo essas colocações dos entrevistados me faz pensar que é cada vez mais forte o sentimento de ineficácia, de insucesso quando eventualmente se vislumbra possibilidades de promover ações busquem mudar ou resistir ao fenômeno da corrupção. Ou seja, inocuidade de tais ações se estabeleceu enquanto uma crença social

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altamente enraizada nas experiências vivenciadas por moçambicanas e moçambicanos e que, de forma relativamente exaustiva, relatei no primeiro capítulo deste texto. Por outro lado, estas mesmas colocações relacionadas a eventuais políticas públicas de enfrentamento ao problema da corrupção em Moçambique me remeteu àquela frase se Huntington (1975), segundo a qual, em termos de uma discussão que relacione a corrupção e o crescimento econômico. Para este autor, neste caso, a única coisa que pode ser pior do que uma burocracia rígida, supercentralizada e desonesta é uma burocracia rígida, supercentralizada e honesta. Esta observação – altamente polêmica por sinal – resulta do fato de que, ele encara o desafio de analisar a relação entre a corrupção e as leis e entende que a corrupção pode ser um caminho a ser trilhado como forma de superar as normas tradicionais e/ou os regulamentos burocráticos que emperram o desenvolvimento econômico. Vejamos o que diz Sandra a respeito:

Muitas das vezes, por mais honesta que uma pessoa seja, por causa do meio onde está, pode se ver numa situação, não porque ela quer, mas por causa do meio onde se encontra, ela se vê sufocada... Ela diz “Eu não posso! Não posso, não posso, não posso” Mas esse não posso significa travar um esquema de muitas outras pessoas que se beneficiariam e que estão a esperar daquilo que essa pessoa está a travar ali entendes... E, o mais perverso, é que essa pressão vem de cima, a gente sabe, temos um Estado que é corrupto e, de alguma forma, você se opor a corrupção é se opor a máquina do Estado, não é perverso isso? Então, por causa da pressão, às vezes ela acaba cedendo mesmo, mesmo que não queira...Hoje em dia contam-se várias histórias por ai de pessoas que eram assim no trabalho e, epa, morreram misteriosamente por causa disso, porque não queriam se envolver, não queriam se entregar à corrupção, a esse mundo desonesto [...e, você conhece alguma história, alguém que você conheça mais de perto que passou por isso?] Não que eu conheça, aliás, o caso mais famoso é do próprio Samora Machel. Afinal, já sabemos que ele foi assassinado né. Mas, por quê e por quem? Acho que depois daquilo que o país virou com a morte dele, dá pra concluir muita coisa não achas? Acho que esse é um bom exemplo da alta, da grande corrupção mesmo. Samora Machel estava a travar os negócios ou a possibilidade de negócios de muita gente e gente que, também tinha certo poder e mostraram esse poder [Sandra. Maputo, 112/07/2013].

Alexandre, não só usa a mesma expressão que Sandra – “travar” – como também defende a mesma ideia...

Mas, na maioria das vezes, mesmo que você, individualmente, tem vontade de fazer diferente, honestamente, é influenciado, é engolido pelo sistema, como costumamos dizer aqui, entendes, então, nem sempre dá para ser honesto ... [Como assim?] Na maioria das vezes, por mais honesta que uma pessoa seja, por causa do meio onde está, pode se ver numa situação em que você tem que jogar as regras do jogo, senão você é a pessoa que atrapalha tudo e tem que ser afastada, descartada. A máquina precisa rodar, funcionar, a máquina da corrupção funciona em coletivo, se um não funciona, não faz a sua parte, trava tudo, é preciso trocar, entendes? É como a peça de um carro,

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pode ser pequena, mas quando está estragada, avariada, o carro por mais grande que seja, não anda por causa daquela peça [Sandra. Maputo, 12/07/2013].

Ainda que polêmica, esta visão do problema que os entrevistados manifestam está, de certa forma, prevista nos estudos sobre a corrupção. Basta lembrar que, em Huntington (1975), se por um lado, a corrupção pode acentuar as desigualdades existentes – e continuar sendo um fator de reprodução do sistema e de estabilidade política – já que privilegia aqueles que já detêm maior acesso ao poder político e, portanto, maior acesso às riquezas do país; ela também pode, por outro lado, ser um canal de acesso gradativo à participação política e à integração de novos grupos no sistema. Assim como a corrupção decorrente da expansão da intervenção governamental pode estimular o desenvolvimento econômico. Por isso mesmo, para este autor, não por acaso, ao contrário da prática nos países desenvolvidos, os países em modernização podem aceitar como normal a utilização difundida do cargo público para a obtenção de riqueza, enquanto, ao mesmo tempo, encaram de maneira mais rigorosa o uso da riqueza para a conquista de um cargo público.

Posto isto, para finalizar, gostaria – porque julgo pertinente – lembrar aqui a interpretação de Charles Taylor (2000) quando afirma que o maior dano da corrupção é a perturbação do elo social básico – a confiança no outro. Segundo este autor, a corrupção está associada diretamente à incapacidade institucional de permitir a participação dos indivíduos na vida pública. A corrupção afeta os indivíduos, mas é na falência de seus vínculos com a sociedade que ela se manifesta de forma efetiva. Incapazes de participar, ou de assumir seu papel na instituição de um autogoverno, que para ele deve caracterizar um Estado republicano, os cidadãos perdem o sentido de identidade coletiva, que está na raiz das sociedades fortes e florescentes. A ideia de bem comum só pode aparecer em comunidades nas quais o sentimento de pertencimento a um todo é capaz de levar os indivíduos a agir em favor de objetivos que são reconhecidos e aceitos como de toda a comunidade. Perdido o elo dos cidadãos com o Estado republicano, as portas estão abertas para uma série de processos que ameaçam a sobrevivência das sociedades organizadas sob os valores da república.

De qualquer forma, se esta dimensão diz respeito ao sentimento em relação à sua capacidade individual e/ou coletiva de intervir em uma situação política específica e nela estão previstas três interpretações para identificar as causas e motivações que indivíduos atribuem aos fenômenos sociopolíticos – (a) Forças transcendentais:

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fenômenos históricos, desastres naturais ou intervenção divina. Produz baixo sentimento de eficácia política, gerando, via de regra, situações de submissão e conformismo frente às situações de angústia social; (b) Soluções individuais: as pessoas atribuem a si mesmas as responsabilidades acerca do que acontece e, por isso, procuram soluções individuais para situações sociais e; (c) Ações de outros indivíduos ou grupos: as pessoas acreditam que situações de angústia social são resultantes das ações de grupos ou indivíduos, o que pode levar a um sentimento de coragem para a mudança da situação – vale pontuar que, este estudo indica que, em Moçambique está mais presente a primeira interpretação: a de forças transcendentais. Ou seja, no país, registra-se um baixo sentimento de eficácia política.