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1.1. Da colônia ao Estado nacional: violências, resistências, heranças

1.1.3. Massinguita: da independência à guerra

[Expressão usada no sul de Moçambique para se referir a atos e/ou experiências que sinalizam maus presságios e/ou agouros]

Se quisermos um dia ser artistas da nossa História, e ser reconhecidos como tais, temos de nos aceitar primeiro a nós mesmos, e reconhecer e valorizar a nossa diferença.

Severino Elias Ngoenha

A nova realidade político-social das sociedades africanas proporcionada pela vida no período pós-colonial, manifesta, em maior ou menor grau, o despertar destes povos e de suas respectivas lideranças intelectuais e políticas, para a apropriação da liberdade. Esse fator é verificável, quer no plano das práticas como no dos discursos. As lideranças carregam a certeza obstinada da necessidade de correr atrás do tempo perdido e, no extremo, quase que puxando o futuro em direção ao presente, impuseram “ao tempo, aos territórios e aos homens grandes projetos, mobilizações e utopias para vencer todas as adversidades” (BORGES, 2001, p. 225).

Em Moçambique não foi diferente. Conforme apontado anteriormente, logo após a conquista da independência, o governo da Frelimo, consubstanciado nas decisões do

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seu III Congresso, realizado em 1977, em Maputo, oficializou a varredura de toda e qualquer oposição política e assumiu-se como partido único do país, conduzindo-o a partir de pressupostos supostamente próprios da filosofia marxista-leninista. Este foi o caminho encontrado pela Frelimo para criar, entre moçambicanas e moçambicanos, o sentimento comum e hegemônico de pertencimento à nação, contrapondo-se aos diversos micronacionalismos étnicos. Assim, foram neutralizadas todas e quaisquer ideias, pensamentos e ações particularistas e localistas com base na identidade étnica. Obsessivamente perseguido, este projeto acarretou consequências que eram, em certa medida, previsíveis: o ódio, a revolta e a insurreição das minorias simbólicas – “minorias” no sentido de pessoas ou grupos de pessoas desprovidos do poder decisório social e político – legalmente impedidas de reconhecer e revisitar suas trajetórias sócio- históricas.

De fato, o governo da Frelimo não permitia uma oposição política, o que, na prática, reafirma a hegemonia política e econômica do país nas mãos de moçambicanos do Sul, visto que, uma eventual oposição política refletiria, necessariamente, uma disputa étnica resultante da sistemática ausência de determinados grupos étnicos nos espaços públicos decisórios: direções provinciais e nacionais de empresas estatais e de serviços burocráticos do Estado, ministérios, governos distritais e provinciais, entre outros. Sabe-se, no governo totalitário da Frelimo inexistiam mecanismos legais que permitissem manifestações e muito menos reivindicações contra tais disparidades e, sabe-se também que, exatamente por isso, pairava uma insatisfação política entre os grupos étnicos localizados nas regiões Centro e Norte Moçambique (Ncomo, 2004; Chichava, 2008; Ngoenha, 2009; Cabaço, 2009).

Outro fator determinante para esta tensão política é que a economia de Moçambique no final do século XIX, com a emergência do capitalismo colonial, era baseada em serviços, centrada na exploração de portos e ferrovias que, essencialmente, escoavam produtos oriundos de Malawi, Zimbábue e África do Sul com destino aos mercados europeus e americanos. A construção dessa infraestrutura pelo Estado colonial, por um lado, se concentrou na região sul, fortificando econômica e politicamente essa região, que se beneficiava da grande ascensão econômica da África do Sul. Esse fator influiu, por exemplo, na decisão de se transferir a capital da província ultramarina de Moçambique da Ilha de Moçambique, no Norte, para Lourenço Marques (atual Maputo), no Sul. Por outro lado, nenhuma ferrovia que ligasse as regiões Sul e Norte foi construída. Mais: na impossibilidade econômica de rentabilizar esta região, o

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Estado português cedeu-a, por aluguel, a companhias concessionárias de capital estrangeiro, que trouxeram pouco ou nenhum progresso. De forma resumida, significa dizer que, se no período colonial o poderio econômico e político de Moçambique concentrados no Sul se dissipavam quanto mais se caminhasse em direção ao Norte e essa realidade jamais mudou.

Podemos, pois, datar dessa época (finais do século XIX), a origem de ressentimentos das elites dessas regiões em relação ao sul. A hegemonia do sul sobre as outras regiões vem daí, e exprime as mudanças regionais decorrentes do desenvolvimento do Rand e do Transval [referência à África do Sul]. De certa maneira, a marginalidade ou a marginalização dessas regiões [centro e norte] e de suas elites vem daí (CHICHAVA, 2008, p. 5-6).

Na prática, para os grupos excluídos, que constituíam parte significativa de moçambicanas e moçambicanos, as barreias impostas pela Frelimo impedindo seu acesso ao poder cultural, econômico e, principalmente, político, representava a continuidade da uma realidade opressora, caracterizada pelo desprivilegio. Para estes grupos, era preciso, portanto, superar essa situação. A luta precisava continuar. Para eles...

A independência significou, no fundo, a transição de uma ditadura fascista para uma de índole comunista. O partido único de Salazar/Caetano – a União Nacional (ANP) – foi substituído por uma auto-intitulada vanguarda revolucionária: a PIDE/DGS passou a designar-se SNASP. E o decreto presidencial que instituiu essa nova polícia foi descrito por um sonante jurista moçambicano como uma “monstruosidade jurídica” pois conferia-lhe amplos poderes para prender e mandar prender à revelia dos tribunais e impedir que as pessoas que caíssem sob sua alçada estivessem abrangidas pela cláusula do Processo Penal que estipulava que um detido tinha 7 dias para constituir defesa e de arrolar testemunhas (NCOMO, 2005).

O pensamento de Amílcar Cabral enfatizava que pessoas não lutam por ideias ou coisas que estejam na mente dos outros, mas por coisas práticas como a paz, melhores condições de vida e pelo futuro de seus filhos. A ideia central de Cabral – e que ajuda a compreender, pelo menos em parte, os atuais conflitos que se dão no continente – é que conceitos como liberdade, fraternidade e igualdade “são palavras vazias para as pessoas se não significam uma melhoria real em suas vidas” (apud LOPES, 2011, p. 8). Esta parece ser a realidade de parte significativa de moçambicanas e moçambicanos do Centro e Norte de Moçambique após a conquista da independência.

Esta conjugação de fatores levou a que outro grande conflito armado deflagrasse em Moçambique. Entre 1976 e 1992, uma guerra interna adiou o sonho da tão esperada

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liberdade e progresso do país que, durante as duas décadas subsequentes, sofreu diversos infortúnios. Tudo começou quando um grupo de dissidentes da Frelimo – que no início da década de 1980 se constituiria como Resistência Nacional de Moçambique (Renamo) – inconformadas com diversas práticas da Frelimo, se articularam enquanto grupo de guerrilha, primeiro em Zimbábue, perto da fronteira com Moçambique. Pouco anos depois, a sede do grupo se transfere para África do Sul, onde recebe apoio do governo segregacionista sul-africano, antes de se estabelecerem de forma definitiva, em 1986, no distrito de Gorongosa, província de Sofala, no Centro de Moçambique.

De fato, até 1983 com o apoio dos governos brancos e racistas do Zimbabwe e da África do Sul, a Renamo perpetrou ataques a aldeias e infraestruturas sociais em Moçambique, fazendo vítimas mortais e enterrando minas terrestres em estradas e campos de cultivo. Ações como estas desestabilizaram a já fraca economia moçambicana, não só porque o governo se viu obrigado a concentrar importantes recursos na máquina da guerra, mas principalmente porque levaram ao êxodo de milhares de pessoas do campo para as cidades e para países vizinhos, diminuindo assim a produção agrícola, principal atividade econômica do país. A resistência perde força quando em 1983, a Frelimo assina um acordo de boa vizinhança com o governo racista sul-africano, que ficou conhecido como o Acordo de Nkomati6. Três anos mais tarde, já

na atual Gorongosa, distrito da província de Sofala, região central do país, a Renamo ressurge e expande suas ações militares para todas as províncias de Moçambique, inviabilizando a política de socialização do campo por meio das aldeias comunais e áreas de produção agrícola estatais que eram fundamentais para a administração da Frelimo.

Atualmente, ainda é forte em Moçambique o debate acadêmico e político sobre as causas deste conflito. Uns defendem que ele teria resultado da ambição inconsequente e individual de um pequeno número de insurgentes da Frelimo que teria cedido aos aliciamentos dos governos racistas do Zimbábue e da África do Sul. Estes, é fato, viam na desestabilização do governo moçambicano possibilidades imediatas de aniquilamento das influências comunistas na região. Outros defendem uma explicação a partir de uma racionalidade econômica e política. Entendem que, haveria uma decisão anterior a esse apoio do exterior, ou seja, parte significativa de moçambicanas e

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Também conhecido por acordo de “Não Agressão” ou de “Boa Vizinhança”, o Acordo de Nkomati foi assinado a 16 de março de 1984. Nele, o governo da Frelimo, liderado por Samora Machel, se comprometia a cessar o apoio fornecido ao Partido Nacional Africano (ANC) que lutava contra o regime do apartheid na África do Sul e tinha bases de treinamento em Moçambique. Por outro lado, o então presidente sul-africano Pieter Botha faria o mesmo em relação à RENAMO. O acordo, entretanto, não passou de mera formalidade, com efeitos práticos nulos.

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moçambicanos se viu na obrigação de rebelar-se contra o Estado e contra a exclusão aos ganhos material ou político e que, o apoio externo seria uma consequência inserida em uma lógica própria de situação de guerra.

O historiador moçambicano Egídio Vaz (2012) conjuga as duas opiniões, divide o conflito em dois períodos e vai mais além, inserindo o conflito na esfera da ordem política mundial vigente à época. Argumenta que o primeiro período do conflito estendeu-se de 1977 até a assinatura do Acordo de Nkomati, em 1984. “Esse período foi marcado pela falta de um discurso coerente, de uma causa, e caracterizou-se pela matança, pela destruição e pelo enfraquecimento da infraestrutura nacional”. De acordo com o historiador, o segundo período começou já nos finais da década de 1980 com a queda do Muro de Berlim e a desagregação da União Soviética. “Aqui, a Renamo apropriou-se de novos valores: a democracia e a liberdade”. A partir deste momento “estávamos perante uma guerra civil, dirigida pelos moçambicanos com uma agenda política”. Foi esta “nova postura da Renamo que impulsionou o governo da Frelimo a adotar a democracia como novo sistema político no país” (citado por Deutsche Welle, 2012).

De uma ou de outra forma, a guerra teve também causas internas que podem ser encontradas na forma como o governo da FRELIMO geriu o seu povo nos primeiros momentos da sua independência, nomeadamente com a matança indiscriminada de todos aqueles que a enfrentavam e punham em causa a linha ideológica da FRELIMO. Por um lado. Mas, por outro, pelo afunilamento das formas e da visão do desenvolvimento do país, o que não agradou a alguns setores, inclusive pela forma como desprezou a cultura. Há aspetos que foram muito bem explorados e otimizados pela RENAMO ao longo da sua guerra (VAZ, 2012).

Dados de um relatório produzido pela Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade de Moçambique em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Infância (Unicef) que aborda sobretudo a acriança afetada pela guerra civil moçambicana – mais conhecido como “Relatório Machel” – apontam que, após quase duas décadas de derramamento de sangue, o conflito fez 1 milhão de mortos, dos quais 45% eram crianças com idade inferior a 15 anos. Entre os feridos que deram entrada em unidades sanitárias, 23% eram crianças e, das cerca de 50 mil pessoas amputadas, 7 mil eram crianças e mulheres. A guerra provocou também o deslocamento interno de 4,5 milhões de pessoas e o refúgio no exterior de outras 1,5 milhão. Além das vítimas humanas, o conflito destruiu ou inviabilizou infraestruturas de 150 aldeias e localidades: 1.800 escolas, metade das rodovias e das unidades sanitárias, estimando-se um prejuízo

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na ordem de 7 bilhões de dólares americanos para a economia nacional. Ao final do conflito havia 250 mil crianças órfãs ou desacompanhadas. A este número, soma-se àquelas que participaram ativamente do conflito: dos 92.881 soldados e guerrilheiros desmobilizados após o Acordo Geral de Paz de 1992, cerca de 28% tinham menos de 18 anos, 4.678 menos de 13 anos, 6.828 estavam entre 14 e 15 anos e 13.982 entre 16 e 17 anos. Sabe-se, entretanto, que grande maioria delas

[...] foram submetidas a repetidas experiências traumáticas: ameaças de morte, terror, agressões, processos sistemáticos de desumanização, fome, sede, mal nutrição, exploração pelo trabalho, abuso sexual [...]. No que toca à sua personalidade, foram verificados os seguintes distúrbios: falta de confiança nos adultos e em si próprias, falta de perspectiva de futuro e/ou perspectiva pessimista, isolamento, depressão, resignação, altos índices de agressividade, perda de sensibilidade, regressão, introversão, fobias diversas e sintomas neuróticos diversos (SERRA, 2003, p. 9).

É preciso reter e levar sempre em consideração que tanto as crianças órfãs e desacompanhadas, bem como aquelas que foram desmobilizadas durante o processo do acordo de paz, estão entre os indivíduos que constituem a sociedade moçambicana de hoje.