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Vale e pena lembrar nesta ambiência tricontinental, onde as experiências abundam e os exemplos não escasseiam, que por maior que seja a similitude dos casos em presença e a identificação dos nossos inimigos, infelizmente ou felizmente, a libertação nacional e a revolução social não são mercadorias de exportação. São (e se-lo-ão cada vez mais) um produto de elaboração local – nacional – mais ou menos influenciável pela ação dos fatores externos (favoráveis e desfavoráveis), mas determinado e condicionado essencialmente pela realidade histórica de cada povo, e apenas assegurado pela vitória ou a resolução adequada das contradições internas de vária ordem que caracterizam essa realidade.

Amílcar Cabral!

Sabe-se, as percepções e as consequentes representações sociais de determinada realidade se modificam constantemente através das interações sociais e, o potencial

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dessas mudanças se eleva à medida que indivíduos e/ou grupos têm a possibilidade de compartilhar conhecimentos, dizeres, saberes, valores, atitudes etc. Digo isso porque enquanto pesquisador, a oportunidade de entrevistar moçambicanas e moçambicanos sobre o fenômeno da corrupção em Moçambique modificou, antes, minha percepção sobre o tema e, de forma mais genérica, sobre o mundo. Da mesma forma, acredito que esta mesma experiência tenha deslocado meus entrevistados das suas convicções iniciais. Tanto é assim que, em alguns casos, as ideias e opiniões emitidas em seus discursos se refizeram e, eventualmente, se contradisseram. Dito isto, reafirmo que é justamente nessa dialética da relação indivíduo-grupo ou grupo-indivíduo que a consciência emana e constitui-se, necessariamente, em um processo de transformação contínuo onde diversos sentidos são atribuídos aos fenômenos sociais.

Decorre daí que, em vez de buscar traçar aqui uma tipologia da consciência política de moçambicanas e moçambicanas em relação ao tema da corrupção em Moçambique – o que é mais comum em estudos que usam o Modelo de Análise da Consciência Política de Sandoval (2001) – prefiro, antes, falar de uma apreensão da consciência política a partir dos sentidos que moçambicanas e moçambicanas construíram quando refletiram sobre o fenômeno da corrupção em sua sociedade. Assim, me aproximo menos da ideia de algo acabado e fechado (e, por consequência estanque) no que se refere à consciência política dos entrevistados e encaminho minhas considerações para uma exposição de elementos constitutivos de uma consciência política em constante movimento.

Aliás, como tratei de argumentar ao longo deste trabalho (e, ao que me parece, os depoimentos apresentados neste capítulo são demonstrativos disso), moçambicanas e moçambicanos apresentam modos específicos – e, não raras vezes, bem distintos e contraditórios – de perceber e atribuir sentidos ao fenômeno aqui etudado: afinal, partem de lugares sociais e políticos diversos e, muitas vezes, antagônicos. E, como bem definiu Sandoval (1999), consciência política nada mais é do que um processo contínuo de elaboração de visões de mundo e seus sentidos normativos, pragmáticos- situacionais e cognitivos-informaticos.

Deste modo, passo à tentativa de traçar considerações referentes à apreensão de uma consciência política que chama atenção por ser essencialmente heterogênea. Para tal, de forma breve, vou me referir, primeiro, a uma consciência política subalternizada. Em seguida, a partir deste elemento, vou me debruçar sobre as possibilidades de entender a transgressão como um pressuposto de resistência, argumentando em favor da

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existência de um movimento de ideias e atitudes efervescentes e que fazem dos entrevistados desta pesquisa sujeitos representativos de uma consciência política transformadora.

4.8.1. Elementos de uma consciência política subalternizada

Aqui, vou argumentar que, nas ideias, opiniões, reflexões e nos relatos elaborados pelos sujeitos desta pesquisa em torno do tema da corrupção em Moçambique identifiquei elementos constitutivos de uma consciência política que prefiro cunhar de subalternizada sendo que na literatura que me serve de suporte chamam-a de “consciência de senso comum” (SANDOVAL, 1994) ou de “consciência fragmentária” (ANDRADE, 1998). Para me referir à consciência subalternizada identificada, vou me aproximar: (1) da ideia de comodismo presente nos pressupostos do modelo de consciência de Sandoval (1994, 2001), (2) da ideia de fatalismo presente no racionalismo crítico de Martín-Baró (1998) e, ambas vão estabelecer um diálogo com (3) a ideia de dependência da ajuda externa multidimensional de Castel-Branco (2011). Em síntese, este último fala de dependência de ajuda externa multidimensional para se referir aos problemas estruturais resultantes da falta de autonomia político-econômica do Estado moçambicano em relação aos seus “parceiros” econômicos internacionais.

Para Sandoval (1994), os padrões de comportamento, as crenças sociais, os pontos de vistas políticos, os modismos estão persentes na vida cotidiana dos indivíduos e são expressos de maneira não racional e espontânea, uma vez que, “(...) o cotidiano impõe sobre as pessoas uma forma de pensar imediatista e utilitária, favorecendo o desenvolvimento do pensamento superficial” (p. 64) que leva ao comodismo e à alienação do sujeito que é tipicamente manifestada na rotina da vida cotidiana. Para este autor:

(...) a rotina quotidiana é aquele aspecto da realidade social que mais se presta à alienação, a qual se manifesta na co-existência silenciosa entre as tarefas envolventes do viver diário e da ordem social maior que o determina. Alienação é tipicamente expressa em suposições não-questionadas da inevitabilidade da rotina diária e o ‘natural’ das desigualdades e dominação nas relações de poder na sociedade, tal como se encontram estruturadas. A aceitação espontânea de normas sociais e em última instância da estruturação de classes, desigualdades sociais, e submissão política disfarçada de ‘requisito’ do viver rotineiro, podem ter o efeito de tornar o indivíduo um conformista na medida em que carece da instrumentação intelectual para um raciocínio

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sistemático e crítico, e das práticas diárias do exercício democrático de direitos e obrigações de cidadania. Essa alienação, evidenciada no fragmento da consciência das pessoas, é melhor ilustrado na dificuldade que tem de conceitualizar a estrutura social, a estratificação social e o regime democrático (Sandoval, 1994, p.64-65).

Assim, ao analisar os diversos discursos coletados sobre o tema da corrupção em Moçambique, é possível notar o comodismo de moçambicanas e moçambicanas em relação ao problema social aqui em causa na medida em que, com muita frequência, os entrevistados se referiam à corrupção como “forma de sobrevivência”, como “uma maneira de ajudar o outro” perante uma força opressora maior ou ainda como “uma forma de ganhar algum” para complementar a renda já que os salários são “muito baixos” e “não dão para nada”. Esses lugares comuns foram usados seja para definir o fenômeno, seja em situações em que os sujeitos procuravam explicar ou justificar a prática da corrupção em Moçambique. É interessante notar que, de forma geral, todos os entrevistados condenam a prática, mas, quase nunca, de forma intransigente e terminante (daí a característica cômoda).

Ao contrário, o que se percebe é uma postura compreensiva... que tende à empatia: a corrupção é um mal, mas um mal tolerável haja visto os motivos nobres pelos quais os que a ela recorrem fazem essa escolha. Ora, o imediatismo e o utilitarismo apontados por Sandoval (1994) estão presentes nesta premissa reveladora de uma consciência política subalternizada ou de senso comum na medida em que, antes mesmo de buscar entender as causas que levam a que a sociedade entenda o problema da corrupção como “uma coisa normal” moçambicanas e moçambicanos procuram tirar proveito de algo sabidamente ruim e malévolo. A justificativa é que, pelo menos imediatamente, pontualmente, a prática ajuda a solucionar ou superar as dificuldades da vida como “alimentar a família” ou “garantir seu emprego”.

Ocorre que, dada a predisposição para aceitar, tolerar ou normatizar a prática da corrupção, não é mais justificável seu caráter pontual, eventual porque considero que a corrupção é parte da dinâmica da vida sociopolítica moçambicana... A corrupção, de tanto ser reinventada, caiu no senso comum, ainda que, os sentidos a ela atribuídos refletem os diversos lugares de percepção.

Em certa medida, o comodismo de Sandoval (1994) guarda similaridade com a ideia de fatalismo de Martín-Baró (1998). A diferença é que o primeiro, centra sua análise no indivíduo e, o segundo, no conjunto, no grupo, no social. Martín-Baró afirma que as instituições sociais como a família, a escola e a moral (entendida como normas

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reais que regem o comportamento concreto e os costumes de uma sociedade ou grupo social) produzem a dependência, a passividade e o individualismo (unido a certo fatalismo pré-determinista e a-histórico). Para este autor, o fatalismo:

(...) es aquella comprensión de la existencia humana según la cual el destino de todos está ya predeterminado e todo hecho ocurre de modo ineludible. (...) En cuanto tal, el fatalismo pone de manifesto una particular relación de sentido que estabelecen las personas consigo miesmas e con les hechos de su existência y que se traducirá em comportamiento de conformismo y resignación ante cualquier circunstancia, incluso las más negativas (MARTÍN-BARÓ, 1998, p. 76).

Segundo este autor, a aceitação ideológica do fatalismo supõe uma aceitação prática da ordem social opressiva. Assim, o fatalismo passa a ser um grande aliado do sistema estabelecido, principalmente, por justificar uma postura de conformismo e submissão às condições sociais e políticas que lhes são impostas, facilitando a opressão e reproduzindo as condições de domínio social. A partir desta visão de Martín-Baró (1998), é possível considerar que o fatalismo está presente na sociedade moçambicana como consciência de senso comum. É bom lembrar que, na sua proposta epistemológica, conhecida como “realismo crítico”, o autor questiona o senso comum e defende o rompimento com o fatalismo – um dos objetivos da sua psicologia da libertação.

Entretanto, interessa pontuar que, se por um lado, os sujeitos entrevistados consideram importante recontar a história do país chamando a atenção para dados históricos que produziram indivíduos e/ou grupos privilegiados (e que se beneficiam de esquemas corruptos) e, então, se colocar na posição de desprivilegiado (e vítima da corrupção), por outro, nem todos o fazem para transformar essa realidade de opressão e exploração. Frases conformadas como “É preciso molhar a mão deles para ter um negócio mais ou menos neste país” ou “Nem adianta ires queixar ao chefe porque o chefe também faz parte do esquema. E, é melhor não saberes onde vai terminar essa escada de chefes” indicam que indivíduos e/ou grupos que exploram o negócio da corrupção consolidaram de forma definitiva sua posição por meio de normas e/ou status quo que se mostram inexoráveis. À este fator concreto, soma-se outro de caráter simbólico presente em um depoimento em especial, onde o entrevistado argumenta sobre o que dificulta a luta e o enfrentamento da corrupção em Moçambique:

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Acho que a corrupção aproveitou-se da nossa própria identidade cultural para enraíza-se... O que eu quero dizer com isso... Eu acho que a própria cultura dos moçambicanos e africanos... Nós somos muito hierarquizados... Onde a opinião dos mais velhos é muito importante e conta muito, tem o líder religioso e político, a opinião deles conta muito. Nós estamos habituados a viver assim, nessa ordem de superioridade e a respeitar seja qual for a opinião do mais velho e dos líderes sem nunca se contrapor... É como se os líderes estivessem se aproveitando dessa autoridade para diminuir a possibilidade de serem confrontados... Está errado, mas como és um líder... Como africano, é complicado chamar atenção ao meu pai, minha mãe, meu avô... Aqui na nossa cultura, toda e qualquer pessoa que está na faixa etária do meu tio, é meu tio, os que estão na faixa do meu pai, são meus país e do meu avô, meus avôs e eu não devo, aprendermos isso, não devo chamar atenção nem contradizê-los nunca... Por isso, fica complicado e essa estrutura ajuda a disseminar a corrupção porque eles fazem e sabem que não serão confrontados... Eles conhecem a posição que ocupam e entendem que é um privilégio... Acredito que a corrupção aproveitou-se da nossa fragilidade, da nossa cultura... Para quebrar a autoridade deles tem que quebrar muitos tabus, mas se nós estivéssemos a viver numa sociedade de relacionamentos mais horizontais talvez já tivéssemos sentado e conversado a respeito, chamar as coisas pelos seus próprios nomes... Mas aqui és logo a ovelha negra da família, és da oposição, és rebelde, dão-te logo um nome. A nosso cultura permite que a corrupção se enraizasse nas nossas relações interpessoais... Porque vais denunciar o teu tio? O teu avo? O teu pai? O recriminado vais ser tu. Muitos males que assolam as sociedades africanas estão relacionados com isso.

A aceitação deste pressuposto encaminha, quase que necessariamente, para a assimilação de uma realidade dura e que se mostra incontornável a qual, cabe ao sujeito desprivilegiado aceitar e procurar formas alternativas de sobrevivência, entre elas a predisposição e eventual aderência à prática da corrupção.

Dito isto, a meu ver, esta análise seria preconceituosa, limitada, simplista, superficial e, de senso comum se apenas reafirmasse que moçambicanas e moçambicanos são acomodados e fatalistas, razão pela qual a corrupção atingiu níveis alarmantes no país. Aliás, esta dissertação, já o disse, quer se colocar como uma alternativa a esta visão sobre a corrupção em Moçambique – e nos países africanos em geral – considerando outros aspetos que encaminhem para uma discussão um pouco mais aprofundada sobre o tema em debate.

Ora, ao perpassar estes dois conceitos – o comodismo de Sandoval (1994) e o fatalismo de Martín-Baró (1998) – pelas sete dimensões da consciência política de Sandoval (1991), pude observar nas falas dos entrevistados sentidos diferenciados e, por vezes, antagônicos da realidade narrada; sentimentos de injustiça e avaliações constantes da capacidade de intervir na realidade que lhes é imposta: o que me levou a sintetizar a ideia de uma consciência política subalternizada dos sujeitos. Esta formulação encontra ressonância na ideia de dependência de ajuda externa multidimensional de Castel-Branco (2011), que se refere às (in)capacidades e/ou