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CRIANÇA HOSPITALIZADA: O CORPO E ALÉM DELE

3 INFÂNCIAS: CAMINHAR PARA UTOPIAS

3.3 CRIANÇA HOSPITALIZADA: O CORPO E ALÉM DELE

O hospital apresenta-se como um lugar com duplo sentido para as crianças que participaram da pesquisa realizada por Carrijo (2013). Elas revelam um desconforto com

relação aos procedimentos, que causam dor, medo e tristeza, porém na medida em que experiências de hospitalização otimizam vivências mais ativas do sujeito, que o situe para além da condição de paciente, é possível compreender a hospitalização como parte da vida e não como suspensão da vida para o seu retorno mediante a cura.

Após a confirmação da necessidade de internação hospitalar, a criança e sua família vivenciam um ritual burocrático, acompanhado da aceitação e entrega do corpo aos procedimentos e saberes clínicos, acompanhado de submissão à ordem disciplinar que definem a ruptura com as rotinas e hábitos externos e a vivência de novos padrões com horários determinados para receber visitas, para acordar, comer, receber cuidados que representam perda da privacidade e individualidade para Ribeiro (1998).

Estatísticas de diagnósticos que levam as crianças a serem hospitalizadas, segundo levantamento de Fonseca (2008) realizado a partir dos atendimentos nas classes hospitalares, relacionam-se às condições econômicas, sociais e ambientais, que reforçam a exclusão de crianças hospitalizadas, apesar do avanço médico-científico e de políticas públicas de saúde.

QUADRO 3 - Índices dos motivos de internação de crianças atendidas em classes hospitalares

Diagnóstico Percentual de ocorrência

desnutrição 11%

pneumonia 17%

problemas gastrointestinais 14%

problemas oncológicos 13%

problemas renais 8%

problemas ortopédicos, doenças cardíacas ou congênitas e outras

37%

Fonte: Fonseca, E. Mapeamento de escolas em hospitais no Brasil. Disponível em: http://www.escolahospitalar.uerj.br

Além da exclusão social, as crianças hospitalizadas durante o tratamento vivenciam situações desagradáveis, como Luz e Martini (2012) apresentam a partir de desenhos e da fala de seis crianças e adolescentes, que participaram da pesquisa para expressar o significado da hospitalização. O trabalho indica que as crianças associam o período de internação hospitalar a: estar doente, estar longe de casa, estar exposto a procedimentos dolorosos, ficar triste, sofrer e ter vontade de chorar, perder a liberdade.

No mesmo mapeamento, Fonseca (2008) indica que 24% do alunado atendido nas classes hospitalares pesquisadas têm diagnóstico de doenças graves ou letais, deslocando os maiores riscos vivenciados pelo universo de crianças para aqueles que, segundo a autora,

referem-se à sua saúde mental, à sua autoestima, à visão que seus familiares possam ter deles, à utilização de seu potencial.

A hospitalização provoca alterações significativas na rotina das crianças em tratamento de saúde, que tendem a cercear, limitar, impedir, retirar as condições de vida da criança por causa do adoecimento. Rocha (2012) considera que a hospitalização, em diversos momentos, sufoca a criança com práticas diferenciadas do seu cotidiano e procedimentos invasivos. O papel de paciente descaracteriza a individualidade de cada criança e a necessidade de cuidados médicos, que em alguns casos requerem imobilização, tornam as crianças alheias ao que acontece fora do hospital, distante de seus familiares, amigos e da escola.

Rocha (2012) considera que há mudanças físicas e emocionais decorrentes da patologia, da qual as crianças estão acometidas. No caso de doenças crônicas, o período é longo e pode ser permanente, além da doença intensificar as angústias referentes à morte e às dores, provocando medo, ansiedade, irritação...

Para Ceccim (1997), os corpos e emoções das crianças são cruzados pela enfermidade e pela hospitalização que percorrem sua cultura e suas relações, alterando o conhecimento de si, do outro e da vida. Essa situação solicita uma possibilidade de acolhimento dos medos, desejos e ansiedades da criança (escuta à vida) para uma construção positiva a respeito da sua condição, da saúde e de seu corpo-pensamento. Por isso, os recursos tecnológicos utilizados no diagnóstico e o desejo de cura dos profissionais devem estar voltados para uma tarefa ética: “[...] o acolhimento da alteridade com as crianças e o contato com as marcas produtoras de diferenças em nós mesmos, para tornar nosso trabalho suscetível de transformações” (CECCIM, 1997, p. 37).

A morte de crianças foi fato corriqueiro durante séculos, seu corpo definhava e não havia lugar para elas nem nas palavras nem na sociedade, como apresenta Mendonça (2013). Somente quando a mortalidade infantil tornou-se um problema de Estado, houve algum investimento na infância e dessa forma “ a criança foi ganhando corpo; um corpo, pelo qual se fundou a imagem que a constitui como sujeito desejado e, portanto, desejante; um corpo coberto por uma imagem que passa a protegê-la do real da vida” (MENDONÇA, 2013, p. 128).

Arroyo e Silva (2012) voltam a reflexão para corpos que revelam a diversidade e a desigualdade social ocultas e para as lutas no sentido de superar o preconceito e a inferiorização contra as classes, o gênero, a etnia, a raça de origem. Agregam-se a estes corpos o corpo de crianças que, além desses fatores excludentes, têm seus corpos doentes, internados, picados para coletas e medicamentos, transportados em macas.... As análises dos autores propõem-se a entender o que narram e o que dizem os corpos infantis e sobretudo o que não é dito e está

oculto nas histórias das crianças em diferentes contextos socioculturais e de classe, assim como ao som apenas dos bips de equipamentos, os corpos de crianças contam a experiência da internação no adoecimento e falam mesmo no silêncio hospitalar.

Goldin (1997) destaca a necessidade do respeito à privacidade e confidencialidade da criança enferma, que se configura como liberdade de não ser observado sem autorização, pois, muitas vezes, o seu espaço de intimidade é invadido por diferentes pessoas/profissionais com que não tiveram nenhum contato prévio.

A Declaração dos Direitos da Criança e do Adolescente Hospitalizados (BRASIL,1995) surgiu do reconhecimento da necessidade de formalizar os direitos por meio da ação entre a Sociedade Brasileira de Pediatria, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Ministério da Justiça. (Anexo A)

Para Ceccim e Carvalho (1997), a Declaração dos Direitos da Criança e do Adolescente Hospitalizados representa um benefício para pacientes e profissionais, pois oferece condições para minimizar o sofrimento humano. Sua abordagem volta-se para a pessoa integral, para dar ouvidos, assumir o atendimento à saúde e valorizar o crescimento e desenvolvimento da criança e do adolescente, acolhendo no respeito a esses direitos “[...] o potencial construtivo do jogo de forças da vida” (CARVALHO; CECCIM, 1997, p. 191).

O corpo-infância com suas marcas e mensagens traz indagações e sugere a busca da história tensa e radical da infância, uma vez que desocultar os corpos infantis é reconhecê-los como sujeitos de cultura, história e humanização na materialidade do viver e na luta pela vida, reafirmando a dimensão lúdica, que seus corpos brincantes revelam “[...] a totalidade das formas de sociabilidade, de criatividade, de construção de sua humanidade” (ARROYO; SILVA, 2012, p. 16).

A criança hospitalizada ou em tratamento de saúde é aquela a quem falta uma condição plena de vida. Ceccim (1997) reflete sobre a noção de bem-estar como processo individual e coletivo que se desenvolve em ciclos (ser saudável, adoecer e curar-se) como afirmação da vida. Ao tomar a vida como critério da saúde, o autor propõe ampliar e redimensionar a responsabilidade das equipes pediátricas nos hospitais:

É assim que os profissionais de saúde abandonariam a cooperação com os doentes na luta pela vida, para estabelecer uma parceria nas lutas da vida, enfrentando adoecimentos e condições especiais de saúde como singularidades ao ‘mais viver’ (CECCIM, 1997, p. 31)17.

Dessa forma, saúde não representa a ausência de doença, mas o tratamento e a prevenção de doenças, como prática social capaz de compreender as condições subjetivas, a qualidade da vida afetiva, as possibilidades de retorno e continuidade dos laços das crianças com o seu cotidiano. (CECCIM, 1997)

O corpo apresenta destaque para os assuntos da infância e para o cotidiano do pensar e fazer político pedagógico, principalmente os corpos ocultos ou inexistentes, invisíveis mesmo para os estudos atuais. Trata-se de reflexões sobre os corpos precarizados, suas relações sociais e seu viver como sujeitos-educadores em suas múltiplas resistências e reações à opressão que marcam meios para o reconhecimento da infância.