• Nenhum resultado encontrado

De acordo com Winnicott (1971/1975), logo no início de sua vida, a criança vive em um estado de dependência absoluta. Ela é totalmente dependente dos cuidados físicos oferecidos pela mãe, ou pessoa responsável. Nesse primeiro estágio do desenvolvimento emocional, é importante uma adaptação sensível às necessidades da criança para que ela possa viver uma experiência de continuidade de ser no tempo sem precisar desenvolver eventuais estratégias defensivas diante de situações sentidas como invasivas, ameaçadoras ou às quais seria necessário submeter-se, e que rompem a experiência de continuidade, considerada como sendo a base para o estabelecimento de um sentimento de self.

De acordo com Winnicott (1967/1999, p.5), “é somente sobre uma continuidade no existir que o sentido do self, de se sentir real, de ser, pode finalmente vir a se estabelecer como uma característica da personalidade do indivíduo”.

Winnicott (1963/1983) destaca como fundamental a existência de um ambiente satisfatório, que seja capaz de favorecer esse sentimento de

continuidade e o progresso continuado dos processos de maturação42. Para

ele,

Num ambiente que propicia um “segurar” satisfatório, o bebê é capaz de realizar o desenvolvimento pessoal de acordo com suas tendências herdadas. O resultado é uma continuidade da existência, que se transforma num senso de existir, num senso de self, e finalmente resulta em autonomia (Winnicott, 1967/1999, p.11).

Embora Winnicott focalize mais detidamente o desenvolvimento desse sentimento de self na relação mãe-bebê, observa que o processo de amadurecimento emocional se dá ao longo da vida e compreende um movimento em direção à independência43.

De um estado de dependência absoluta, a criança passa então para um estágio que Winnicott (1967/1999) denominou dependência relativa. Aos poucos, a criança vai adaptando-se a eventuais frustrações e desconfortos, criando condições para, gradativamente, ir aproximando-se da complexidade do mundo e de seus desafios. Para que isso ocorra, a mãe deve apresentar o mundo ao seu filho em pequenas doses, o que evitaria a necessidade de a criança defender-se perante um ambiente eventualmente invasivo. A apresentação cuidadosa e sensível do seio, justo no momento em que o bebê está pronto para viver uma experiência ilusória de criá-lo e encontrá-lo, atendendo às suas necessidades, é elemento essencial nessa fase da vida.

42 Para Winnicott (1963/1984), o conceito de maturidade deve ser considerado levando em

conta a idade das pessoas e está relacionado à possibilidade de se sentir vivo e real.

43 Winnicott (1963/1983) prefere falar em autonomia, pois observa que não existe, de fato, uma

independência. Não existe um indivíduo isolado, totalmente independente e invulnerável. Somos influenciados pela nossa cultura, pelo ambiente que nos circunda e com o qual mantemos uma relação de interdependência.

Desse modo, a mãe permite uma experiência de ilusão que estimula a criança a fazer o seu movimento de criação e encontro diante do que se lhe apresenta. Essa experiência sutil e delicada inaugura a possibilidade de a criança fazer o seu movimento singular, lançando as bases para que o gesto espontâneo e criativo possa repetir-se outras vezes ao longo de sua vida, permitindo uma apropriação paulatina e pessoal do mundo.

Para Aiello-Vaisberg e Machado (2003), a vivência da experiência ilusória carrega em si uma dimensão transformadora, pois favorece o gesto espontâneo e a confiança na capacidade pessoal de ação no mundo, dando os fundamentos para que um viver criativo possa acontecer.

Essas observações fornecem elementos para pensarmos em como suscitar nos jovens este tão esperado desencadeamento de um engajamento no tocante à escolha profissional. Entendemos que a vivência da experiência ilusória, além de desenvolver o sentimento de self e de manter o jovem mais próximo de si e presente em seu viver, estimula seu movimento espontâneo, ajudando-o a apropriar-se de sua vida e do ambiente em que vive. Esses elementos nos parecem essenciais quando lidamos com um ambiente dinâmico como o nosso, em que as rupturas são freqüentes, e que, como vimos, a quantidade de informação veiculada transcende a nossa capacidade de apreensão.

Como diz Winnicott (1970/1999, p.23), é necessário primeiro a pessoa “existir, e ter um sentimento de existência, não na forma de uma percepção consciente, mas como uma posição a partir da qual operar”, para que ela possa

chegar a ser criativa. Algumas condições emocionais são necessárias para que se possa fazer um movimento criativo. A possibilidade de ação, que compreende a possibilidade de escolha, fica comprometida quando o jovem se encontra distanciado de si e da experiência humana compartilhada. Pois, para que uma escolha possa acontecer como gesto espontâneo, como ação de self, é necessário estar presente em sua dramática, mesmo se eventualmente sofrida. Interessa, portanto, desenvolver ações clínicas que, justamente, ajudem os jovens a alcançarem uma posição existencial a partir da qual possam escolher, aproximando-se de um viver criativo, mesmo quando passando por situações desafiadoras, que exigem respostas, escolhas, tomadas de decisões.

Nesse sentido, em momento de escolha profissional, as intervenções direcionadas aos jovens devem procurar oferecer oportunidades de vivência do fenômeno ilusório, de criação e encontro daquilo que se apresenta, em um ambiente capaz de garantir a continuidade da experiência vivida. A partir de experiências como essas, o jovem poderá, aos poucos, perceber-se capaz de gestualidade no mundo, ganhando confiança em si e no ambiente em que vive. Ao se aproximarem de um viver criativo, os jovens, naturalmente, acabarão participando do processo de escolha que estão vivendo, indo em busca do que os encanta. Então, não será mais necessário informá-los a respeito das possibilidades das profissões, dos cursos a seguir, etc., pois eles mesmos estarão motivados e prontos para buscar, entre as tantas informações que lhes chegam, o que lhes interessa e faz sentido.

Nessa perspectiva, deixamos de propor intervenções clínicas cujo objetivo seja informar o jovem a respeito de si e do mundo do trabalho e nem tampouco procuramos ensiná-lo ou treiná-lo a escolher e a tomar decisões. Olhamos para o jovem acreditando em sua capacidade criativa, apresentando- lhe oportunidades de criação/encontro que estimulem o viver criativo, ajudando- o a apropriar-se de sua vida, de suas escolhas e de seus projetos de futuro.

Tomando como base teórica uma Psicanálise relacional, aproximamo- nos da dramática vivida por aqueles que nos procuram em busca de uma orientação acerca do caminho profissional a seguir, afastando-nos de uma vertente psicanalítica que procura entender o comportamento humano em termos de instinto pulsional, inconsciente recalcado, mecanismos de defesa ou de reparação de objetos internos, remetendo a entidades abstratas acontecendo no psiquismo dos jovens.

Reconhecemos também que a ênfase na dimensão representacional, trabalhando com as imagens que os jovens formaram a respeito de si44, identificando seus interesses e motivações, e atualizando suas representações acerca da realidade que os circunda, corre o risco de manter o trabalho em orientação profissional muito próximo de uma dimensão intelectualizada, distanciada do self verdadeiro, dificultando ainda mais a possibilidade de uma

44 Bohoslavsky (1977/2003) fala em “identidade ocupacional” e em “identidade vocacional”. A

“identidade ocupacional” referir-se-ia à representação que o jovem constrói a respeito de uma profissão, no que diz respeito a como, onde, com quê acontece o exercício dessa profissão. A “identidade vocacional” estaria ligada ao porquê e para quê da escolha de uma profissão, remetendo a motivações pessoais e à imagem que o jovem estabelece a respeito de si mesmo.

escolha afinada com o ser, podendo até levar o jovem a trilhar um caminho

falso self.

No ambiente dinâmico em que vivemos, marcado pela transitoriedade e descontinuidade, sentir-se vivo, real e autêntico é o que pode oferecer as bases para que uma escolha venha a acontecer como gesto espontâneo. Essa possibilidade de escolha como ação criativa subentende uma maturidade45

emocional que acontece em momentos diferentes para cada um, cabendo acompanhar de perto o movimento do adolescente em busca de autonomia, respeitando o seu ritmo, o seu tempo, sustentando a indefinição até que uma escolha possa ser feita.

Ao abordar o modo como se estabelece a capacidade ética nas pessoas, Aiello-Vaisberg (2005) emprega o termo capacidade remetendo à existência prévia de certas condições pessoais para se poder lidar criativamente com os acontecimentos que surgem, sem se sentir invadido ou ameaçado em sua continuidade de ser. A respeito do termo capacidade, a autora esclarece que:

Permite distinguir presença ou ausência de condições para lidar com ocorrências ambientais. Algumas ocorrências que, em presença de certa capacidade, resultariam num movimento de criação/encontro, seriam, na sua ausência, movimentos invasivos. Ou seja, quando já existe a capacidade, algo que é apresentado, poderá ser

45 Na obra winnicottiana a idéia de maturidade está relacionada ao self, à possibilidade de se

sentir vivo, real e capaz de gestualidade espontânea. Esse termo vem sendo empregado de modo distinto, por exemplo, por Neiva (2002), que chega a propor uma escala para medir a maturidade do jovem para a escolha profissional, a EMEP. Safra (2005) esclarece que o modo de abordar o humano ou aspectos do ser humano a partir de testes ou questionários que se propõem a observar de forma objetiva o fenômeno humano estudado subentende, do ponto de vista epistemológico, um modelo de pesquisa do tipo sujeito-objeto, colocando os jovens, ou seus comportamentos, no lugar de objetos sobre os quais nos debruçamos para observar, medir, intervir.

criado/encontrado. Por outro lado, tudo o que irrompe independentemente da capacidade presente, será vivido como invasão ambiental (Aiello-Vaisberg, 2005, p.17). Nessa perspectiva, podemos também falar em capacidade para escolher uma profissão de modo afinado com o ser. Essa capacidade subentenderia um estado de self que permitiria fazer um movimento criativo de escolha diante do que se apresenta, sem se sentir ameaçado ou invadido. Essa capacidade de escolher, no entanto, não se alcança de uma vez por todas, mas, como diz Aiello-Vaisberg (2005, p.23), “precisa ser continuamente reconquistada no transcorrer dramático da vida de cada um”.