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O campo psicológico-vivencial, que identificamos como “Desonestidade e oportunismo”, articula-se a partir da crença de que, para ser bem sucedido, para se crescer financeiramente e até profissionalmente, a regra é ser esperto, oportunista. É bom aquele que rouba, trapaceia, que é malandro.

Esse campo apresenta-nos um cenário em que as pessoas buscam sempre o benefício próprio em detrimento de outros, envolvem-se em relações pouco éticas no intuito de ganhar mais dinheiro e sempre levar vantagem em tudo. Entramos aqui no mundo da competição acirrada da busca de poder e riqueza a qualquer custo, que observamos em diversas peças de teatro espontâneo apresentadas ao longo deste trabalho86, e que parece ganhar tamanha importância a ponto de permitir que um verdadeiro “vale tudo” seja a lei.

86 Podemos aqui lembrar das personagens do empresário rico e maldoso do programa Silvio

Santos (p. 120), do candidato envolvido no caso da bolsinha de dólares (p,188) e do alpinista dissimulado mancomunado com o detetive oportunista (p. 100), que também fazem alusão a esse lado sombrio e desonesto e que encontramos em peças criadas por outros grupos.

A ocorrência desse campo é preocupante, na medida em que sinaliza a vigência de um regime moral frouxo e distanciado de perspectivas éticas de respeito à alteridade. Essas dramatizações nos fazem pensar na decadência das instituições, na falta de referências claras de moralidade, remetendo à sociedade atual, na qual convivemos com situações semelhantes às apresentadas pelos jovens em suas peças de teatro espontâneo. Torna-se, no entanto, urgente perguntarmo-nos acerca da influência, na vida dos jovens e da população de modo geral, dessas histórias amplamente divulgadas pela mídia, delatando pessoas que enriqueceram ilicitamente.

Em que medida a nossa sociedade da informação tem contribuído para criar esse tipo de imaginário coletivo, de que “vence na vida, é bom, aquele que rouba, trapaceia, é malandro...”, dando a entender que, para se alcançar sucesso financeiro e, como vimos no campo anterior, talvez pessoal, seja necessário ser desonesto, competitivo, focado apenas em si?

Esse campo nos dá indicações acerca de como esses jovens sentem as relações estabelecidas entre as pessoas no ambiente em que vivem. Vemos isso na apresentação de personagens desonestas, superficiais e fúteis, que encontramos nas figuras da estilista particular que se aproveitava das clientes, das empresárias peruas criticando o vestido da noiva e a comida da festa que consideravam “pouco finas” ou na figura das fofoqueiras no cabeleireiro falando da vida alheia. Temos, também, aqueles que não trabalham muito, como o empresário multibilionário, que ganhou dinheiro roubando e o cowboy que herdou a sua fortuna sem ter que trabalhar e que gosta de tomar o seu whisky

enquanto observa seu patrimônio. Lembramos, também, da ex-namorada do jogador de futebol. Surpreende aqui o modo como essas personagens enriqueceram, seja roubando ou sem ter de trabalhar muito. Fica a impressão de um ambiente marcado por sentimentos de inveja, competição, arrogância, que nos convida a rever em que medida nosso ambiente contemporâneo tem permitido esse tipo de comportamento e levado esses adolescentes a pensarem tanto em dinheiro.

Nessa nossa sociedade da informação, em que todo tipo de assunto é muito ventilado, talvez valha a pena nos perguntarmos se nossas crianças estão mesmo se beneficiando com tudo isso, se não estariam perdendo um pouco da ingenuidade, da pureza, da espontaneidade dos primeiros anos de vida, afastando-se muito precocemente de um mundo mais protegido do brincar, da fantasia e imaginação.

Na peça “Entre livro e chocolates” encontramos um publicitário que rouba idéias, um advogado que tenta passar propina e um juiz mancomunado com a dona da fábrica de chocolates, retomando a idéia de relações meio obscuras e interesseiras permeando o viver no mundo contemporâneo. Presenciamos, ainda nessa mesma peça, a disputa pelo bom funcionário. Mas notamos que, no final da história, o vendedor tem de trabalhar duro para compensar as perdas na livraria, para só depois disso poder receber o que lhe é devido, ou seja, aquilo a que já tinha direito. Combinam que vai receber salário justo, em função do tempo que ele trabalhar. Mesmo sendo um excelente funcionário, ninguém pensou em lhe oferecer alguma vantagem ou procurou facilitar a sua

situação no tribunal. Ao contrário, o veredicto dos juízes pendia sempre contra ele. Surpreende perceber que, no final dessa dramatização, o bom vendedor vira réu e é obrigado a pagar dívidas e trabalhar dobrado. O esforço, o trabalho responsável e apaixonado aparecem aqui na figura de um sujeito que até parece meio ingênuo, deixando a sua vitalidade ser roubada por empresárias que o querem apenas para garantir o cumprimento de suas metas empresariais. Esse predomínio de interesses particulares em detrimento de outros e do coletivo sugere a existência de dois caminhos a seguir: o do bem, do correto, do trabalho honesto e respeitável, e o do “salve-se quem puder”, da desonestidade, das propinas, dos jogos de interesses. Reconhecemos nas peças essa tensão entre bem e mal, entre ética e perversão, entre forças que, aparentemente, são consideradas boas e construtivas, contrapondo-se a outras obscuras e maléficas. Bem e mal parecem, eventualmente, confundirem-se, pois quem é mau também é bom e quem é bom pode ser mau em alguma outra situação, sugerindo um limite tênue entre esses dois pólos, revelando a dualidade na qual estamos envolvidos.

Na dramatização “Uma convidada inesperada”, encontramos no casamento do multibilionário a personagem do espectro, uma presença impactante que remete à idéia de “encosto” e assombração. Toda vestida de preto e com o rosto semiescondido, ela parece trazer em cena esse lado sombrio das relações humanas, quando o desejo de poder e de riqueza sufoca qualquer outra possibilidade de um viver mais harmonioso. Talvez, no fundo, os jovens estejam apresentando nessas dramatizações um questionamento acerca

do que de fato é bom ou é mau, investigando e perguntando-se que adulto querem ser e qual caminho pretendem seguir, se o caminho da desonestidade, do oportunismo malandro ou do trabalho dedicado e honesto que encontramos na figura do vendedor trabalhador.