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Constatamos nessas peças um primeiro campo psicológico-vivencial que denominamos “Miséria e riqueza”, que se organiza a partir da crença de que escapar da miséria e ficar rico é condição essencial para uma vida respeitável.

Esse campo aponta para uma preocupação desses jovens em obter sucesso financeiro a qualquer custo e, ao mesmo tempo, evidencia um forte receio de algum dia virem a se perceber mendigos. Aparentemente, no universo desses adolescentes, miséria e riqueza são compreendidas como fatores indicativos de fracasso ou de sucesso pessoal, remetendo diretamente à capacidade de cada um de conseguir ou não alcançar um padrão financeiro elevado e socialmente valorizado. Segundo essa perspectiva, a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso financeiro recai sobre cada um isoladamente, aproximando o processo de definição e inserção no mundo profissional a uma verdadeira prova de fogo, em que as qualidades e capacidades dos jovens parecem “em xeque”, podendo ocasionar sentimentos

de desvalorização e inadequação diante de dificuldades e de projetos malsucedidos.

Essa cobrança pessoal em relação ao êxito financeiro nos faz pensar em uma visão restrita e individualista do viver, que desconsidera a multiplicidade de fatores que influenciam as situações experimentadas no dia-a-dia. Aparentemente, a interdependência e inter-relação essencial fundamental que faz da humanidade uma unidade em constante transformação não é vislumbrada, pois nesse campo afetivo-emocional cada um vive fechado em si mesmo, voltado para “o próprio umbigo”, ocupado em tentar garantir seus interesses em um ambiente contemporâneo marcado pelo dinamismo e pela instabilidade.

Em “Uma convidada inesperada” os jovens trazem em cena um mundo endinheirado, com pessoas muito ricas e supostamente bem sucedidas, que contrasta com a figura da mendiga. Notamos que essa personagem causou desconforto no grupo, alguns a acolheram bem, como a “perua” que até pensou em levar a mendiga para casa, afinal esta era a mãe do noivo. Mas outros diziam que a festa tinha virado uma bagunça e, finalmente, acabaram encerrando a dramatização com cada um voltando para o seu canto85.

Tal contraste entre diferentes condições financeiras também aparece na peça “Entre livros e chocolates”, na figura do vendedor que busca trabalho com melhor remuneração e para quem o décimo terceiro salário e as comissões

85 Interessante lembrar que também encontramos mendigos em outras dramatizações, em

outros grupos, como, por exemplo, nas narrativas apresentadas nas páginas 09 e 100, remetendo, em muitos casos, a esse medo de perceber-se nessa condição.

fazem muita diferença, contrapondo-se às personagens das empresárias. Deparamos aqui com a dura realidade de muitos brasileiros, que enfrentam dificuldades financeiras que lhes impossibilitam receber um atendimento de saúde satisfatório.

As empresárias disputavam o bom vendedor, enquanto este, na intimidade de sua família, sofria a perda da esposa por falta de poder aquisitivo e de atendimento adequado. Nesse episódio, o grupo parece sensível às dificuldades experimentadas por muitos brasileiros no dia-a-dia, como, por exemplo, quando têm de depender de serviços públicos de baixa qualidade, trazendo em cena um olhar voltado para os outros, que contrasta com comportamentos individualistas observados acima.

Talvez pelo fato de reconhecerem essas dificuldades vividas por grande parte da população, esses jovens se sintam, em alguns momentos, atravessados por sentimentos como o de querer se virar da melhor forma possível para evitar tal condição para si, aproximando-se do registro do “salve- se quem puder”, do “cada um por si”. Ou talvez os jovens que participaram desse grupo também se percebam com hábitos dispendiosos, tendo, então, de ganhar um bom dinheiro para poder continuar mantendo o mesmo padrão econômico oferecido pelos pais até então.

Entretanto, é curioso observar como esses jovens, oriundos de famílias bem estabelecidas do ponto de vista financeiro, mostram-se tão receosos quanto à possibilidade de ficarem sem dinheiro. Aparentemente, reconhecem sua própria fragilidade diante de um futuro que lhes é desconhecido e incerto,

no qual ronda sempre a possibilidade de virem a se encontrar em situação semelhante à do vendedor de livros e chocolates. Levando em conta o momento em que se encontram, de transição para a vida adulta e de inserção no mundo do trabalho, é, no entanto, lícito pensar que a preocupação em conseguir manter-se financeiramente e constituir um patrimônio remeta a sentimentos relacionados ao desejo de alcançar independência e êxito na consolidação de um bom padrão de vida.

A angústia derivada do ter de ganhar dinheiro a qualquer custo, que aparece de modo mais evidente e forte na primeira peça apresentada, leva-nos a refletir acerca do que a geração dos pais e a sociedade contemporânea estão conseguindo passar para os jovens. Enquanto nos preocupamos em promover uma trajetória profissional que possa acontecer como gesto espontâneo, parece que esses jovens estão falando em medo da miséria e em busca de enriquecimento a qualquer custo, não importando o caminho escolhido para alcançar tal objetivo, mesmo que isso possa significar trilhar um caminho profissional que não necessariamente esteja afinado com interesses pessoais verdadeiros.

Embora a preocupação com o êxito financeiro não seja em si mesma algo que conduza à busca de opções de ocupações falso self, observamos na peça “Uma convidada inesperada” a tendência a considerar que a realização profissional corresponde tão somente à obtenção do sucesso financeiro. Isso parece indicar uma evidente desvalorização dos interesses pessoais como critério para a escolha profissional. Esses jovens, vindos de escolas

particulares, mostram-se aparentemente pouco livres para escolher, convidando-nos a nos perguntar se de fato podem escolher e sugerindo que essa necessidade tão evidente de enriquecimento talvez esteja relacionada ao receio de se enxergarem em desamparo, este último associado à dependência do adulto.