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6 O PODER PUNITIVO, DISCIPLINAR OU DE COMANDO E SUAS RELAÇÕES

6.4 Crimes contra a organização do trabalho

O fundamento para a prestação de tutela penal no âmbito das relações obreiras assenta-se na exaltação do trabalho como condição da dignidade humana, na proteção da liberdade do homem trabalhador e no interesse da coletividade, quando se trata, nesse último caso, dos crimes cujo bem jurídico tutelado corresponde à organização coletiva laboral e a ordem social.

Assim, os diplomas legais passaram a tipificar as condutas que violavam tais postulados, fazendo uso do caráter sancionatório de que dispõe o Direito Penal, a fim de realizar “com maior energia e profundidade aquilo que as outras espécies jurídicas não puderam alcançar ou não dispuseram de meios ao seu alcance para realizar” (CALÓN apud MORAES FILHO, 1991. p. 43-45).

As novas figuras delituosas que surgiram com a industrialização e, por conseguinte, com a consagração do trabalho subordinado como paradigma da produção nas grandes indústrias, passaram a sofrer reprimendas veementes do Estado, sujeitando seus infratores a penas de multa e até privativas de liberdade. Nesse contexto é que se desenvolve a proteção subsidiária do Direito Penal, tipificando as condutas ofensivas aos interesses próprios da sociedade capitalista industrializada. Basta, para tanto, conferir o rol de crimes inserto no Código Penal brasileiro e seus respectivos objetos de proteção.

Entretanto, a passagem do modelo de acumulação Fordista/Taylorista para o modelo de Acumulação Flexível não somente aprofundou as contradições inerentes ao próprio paradigma de Sociedade de Trabalho, senão contribuiu também para escancará-las. De um lado, colocou em destaque as mazelas decorrentes da estrutura excludente do sistema capitalista industrial e, em seguida, financeiro; de outra face, protagonizou uma ruptura paradigmática, na qual se testemunha a transformação da relação de trabalho subordinado e o surgimento de novas formas de contratação que fogem, em absoluto, aos critérios firmados pela doutrina tradicional – trabalho de tempo parcial, o trabalho clandestino e as mais variadas e novas formas de exploração, que passam também a conviver com o chamado Desemprego Estrutural. Veja-se, por exemplo, que a doutrina tradicional costuma relacionar os crimes contra a organização do trabalho às relações empregatícias 15, colocando de lado as inúmeras outras possibilidades de realização do labor humano – cooperativas de trabalho, terceirização, trabalhador autônomo, liberal, clandestino, de tempo parcial, dentre outras –, que hoje correspondem a significativo percentual das formas como o trabalho humano é prestado na sociedade. E, como já foi anunciado, todas elas coexistindo, como afirma Antunes (2006), com o Desemprego Estrutural 16.

Não é, pois, por outro motivo que Feliciano (2010) propõe a refundação do Direito Penal do Trabalho, na medida em que vislumbra nele um quadro de ineficiência e inaptidão para cumprimento de seu desiderato. Para ele, a análise dos institutos integrantes da tutela penal das relações laborais revela, sobretudo, um panorama de anacronismo e resistência ideológica.

No âmbito das relações individuais de trabalho, constata-se, na atualidade, a inexistência de efetiva tutela no que diz respeito aos problemas enfrentados pelos

15 Nesse sentido, Altamiro José dos Santos diz que “É exatamente o conflito que constrói a conduta

punível. Se esta decorrer da relação de emprego, presente o Direito Penal do Trabalho, para discipliná- la, desde que em sintonia com a tipicidade, antijuridicidade, a inimputabilidade e a isenção de penalização; ocorrendo, então, o crime ou a contravenção penal específicos deste ramo jurídico”. In Direto Penal do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 1997, p. 83.

16 Refere-se ele às evidências empíricas, presentes em várias pesquisas, para admitir que o mundo

do trabalho sofreu, como resultados das transformações e metamorfoses em curso nas últimas décadas, um processo de desproletarização do trabalho industrial, fabril, que se traduz, de um lado, na diminuição da classe operária tradicional e, do outro, numa significativa subproletarização do trabalho, decorrente “das formas diversas de trabalho parcial, precário, terceirizado, subcontratado, vinculado à economia informal, ao setor de serviços, etc.”. Verificou-se uma “heterogenização, complexificação e fragmentação do trabalho”. Para ele, há um múltiplo processo que envolve a desproletarização da classe-que-vive-do-trabalho e uma subproletarização do trabalho, convivendo, ambas, com o desemprego estrutural.

empregados assalariados na modernidade. Para tanto, é necessária a identificação dos abusos cometidos pelos patrões contra os trabalhadores subordinados e em que medida a atuação sancionatória do Direito Penal seria imprescindível a garantir o eficaz cumprimento das medidas protetivas instituídas em seu benefício.

Os arrojados instrumentos de controle de jornada, que permitem ao empregador monitorar o funcionário ainda quando ausente do estabelecimento físico de trabalho e a invasão à intimidade por meio da informática e internet são apenas dois exemplos de condutas que excedem o poder diretivo, mas que correspondem a práticas corriqueiras no cotidiano das grandes empresas. Suas graves repercussões sobre o trabalhador e, ainda, sobre toda a sociedade constituem importante critério para definir a conveniência ou não da intervenção penal.

No âmbito do Direito Sindical ou Coletivo do Trabalho, é possível notar que a doutrina jurídico-trabalhista clássica negligencia, quando exclui os movimentos sociais emancipatórios de suas preocupações teóricas, quando se sabe, ao se analisar as propostas apresentadas pelas chamadas teorias dos movimentos sociais, que, no âmbito das relações coletivas e historicamente, sempre se privilegiou as lutas e insurgências dirigidas à emancipação social.

E mais. É lamentável o retrocesso doutrinário e jurisprudencial que vêm acontecendo, por exemplo, nos julgamentos das greves, em que os tribunais têm invariavelmente julgado os movimentos abusivos e ainda impondo aos sindicatos multas absurdas17. É comum ver também a presença de fortes aparatos policiais que surgem, quase sempre, “em nome” da paz social, mas que se destinam a “preservar” os direitos da classe econômica envolvida.

Sem se inverter essa perspectiva teórica, uma greve deflagrada contra o desmatamento na Amazônia – um patrimônio da humanidade –; contra o ultraliberalismo global, que espalha miséria, injustiças e patologias sociais, não teriam legitimidade. Ao contrário, poderiam ser tipificadas pela lei penal como crime.

Ademais, outro caso de lacunosidade identificável na tutela penal das relações trabalhistas consiste na inexistência de dispositivos que coíbam condutas

17 Não é desta maneira, criminalizando os movimentos sociais e não reconhecendo a sua natureza

política, que a professora Fernanda Barreto Lira enquadra a greve, no contexto dos movimentos emancipatórios, para além da dogmática jurídica e da doutrina da OIT. LIRA, Fernanda Barreto. A Greve e os Novos Movimentos Sociais. Para além da dogmática jurídica e da doutrina da OIT. São Paulo: LTr, 2009.

antissindicais, haja vista a elevação da liberdade de associação/sindical à qualidade de direito fundamental na Constituição Federal de 1988.

Embora o art. 199 do CP tenha a liberdade associativa por objeto de proteção, tal tutela é parcial, limitada e meramente ilusória 18. Além disso, é insuficiente para proteger a organização coletiva do trabalho em face dos variados tipos de ameaça que sofre hoje. Como contraponto:

Toma-se por padrão internacional, hoje, o caso francês, cuja legislação contempla uma larga tipificação do chamado délit d'entrave, pela qual se sancionam penalmente diversos comportamentos patronais tendentes a obstruir o funcionamento normal das instituições representativas dos empregados ou o legítimo exercício da ação sindical. Aliás, o direito francês é dos mais desenvolvidos em matéria penal-laboral, a ponto de tipificar delitos de travail dissimulé (seja par dissimulation d'activité, seja ainda par dissimulation d'emploi salarié, nos termos dos arts. L. 324-10 e L 324-11 do Code du Travail de 1973 e dos arts. L. 8221-3 e L. 8221-5 do Code de 2007- 2008) [...] (FELICIANO, 2010, p. 105-106).

Segundo Lira (2009), torna-se imprescindível, ainda, redefinir os fundamentos para o exercício do Direito de Greve. Neste sentido, aponta para os seguintes pressupostos:

a) Ter em mente que tal ajuntamento coletivo se dará em termos políticos, enquanto força contra-hegemônica dirigida à desqualificação da teoria neoliberal e à globalização excludente; b) ter consciência do fato de que a força do capitalismo hegemônico é global, enquanto a luta coletiva deverá estabelecer-se nos terrenos locais, transnacionais e globais; c) enquanto movimento coletivo de caráter político, não poderá estar circunscrito à velha centralidade do mundo do trabalho subordinado; d) seguindo a tradição e a evolução histórica do movimento operário, torna-se um instrumento de luta dirigido à negociação coletiva – não tradicional – em busca de consenso, além de estabelecer a ponte entre a democracia representativa e a democracia participativa; e) para a consecução de tais objetivos, deve-se reunir a sociedade do trabalho como um todo – empregado, clandestinos, desempregados, integrantes de empresas de economia social ou solidária, trabalhadores autônomos, trabalhadores do conhecimento, instituições não governamentais; articular-se com outros movimentos coletivos organizados, os ‘foruns’ sociais, etc.(LIRA, 2009, p. 152).

A propósito, Baratta (2004) em artigo intitulado “principios de derecho penal mínimo: para una teoría de los derechos humanos como objeto y límite de la ley

18 Conforme esclarece Guilherme Guimarães Feliciano, a liberdade de associação que a CF/88 garante

no art. 8º, V, e reforçada pelo preceito do art. 199 do CP é meramente formal. Trata-se de um discurso incoerente, na medida em que o Estado protege aquela liberdade em face da sociedade civil (“ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato”), mas não isenta os cidadãos dos efeitos oblíquos da associação compulsória, como o pagamento do imposto sindical e, também, pela manutenção do princípio da unicidade sindical. In Refundando o direito penal do trabalho: primeiras aproximações = Rediscovering labor criminal law: first approaches. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, São Paulo, n. 37, p. 86-127, jul./dez. 2010. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/41962>. Acesso em: 15 set. 2011, p. 102-103.

penal”, defende o princípio da articulação autônoma dos conflitos e das necessidades reais. Para ele, não é possível falar em mudanças na política criminal sem que os sujeitos assumam uma posição ativa na definição dos conflitos que integram e na tomada de soluções que se conformem a suas reais necessidades. Nas palavras do criminologista:

Ningún cambio democrático en la política del control social puede ser realizable si los sujetos de necesidades y derechos humanos no logran pasar de ser sujetos pasivos de un tratamiento institucional y burocratico, a ser sujetos activos en la definición de los conflictos de que forman parte y en la contricción de las formas y de los instrumentos de intervención institucional y comunitaria idóneos para resolverlos según sus propias necesidades reales (BARATTA, 2004, p. 329).

7 A VISÃO DA TEORIA JURÍDICO-TRABALHISTA CRÍTICA ACERCA DO