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CAPÍTULO II – Crise civilizatória

2.5. Crise cultural

O capitalismo promoveu um verdadeiro processo cultural ao desestruturar a unidade pré-capitalista. Aquela unidade baseava-se em referenciais transcendentes e míticos. As relações mercantis arruinaram as crenças nas forças sobrenaturais da natureza, o poder daqueles que manipulavam o sagrado, o patriarcado, a sacralização do passado, as tradições e dogmas que eram repetidos e repassados de geração em geração e todas as referências míticas que constituíam a unidade do grupo social daquele período da história da humanidade.

Ao dessacralizar e laicizar a sociedade, o capitalismo também gerou desencantamento em relação ao mundo e substituiu o mítico pelos fetiches. Sobre esse processo, volta-se a encontrar em Bihr explicações pertinentes: “A fórmula geral desses

fetiches é a que Marx tornou disponível a partir de sua crítica do fetichismo da mercadoria, da moeda e do capital: fetichismo = reificação das relações sociais + personificação das coisas sociais. Todo fetichismo resulta, então, de um duplo processo, um objetivo, outro subjetivo, inextricavelmente misturados (1999:167).

Se por um lado, o capital construiu um processo cultural que reificou as relações sociais, enrijecendo-as, transformando-as em coisas mercantilizadas de diversas formas, por outro, esse mesmo processo assemelhou as coisas às pessoas, reificando-as, dotando-as de desejos e vontades.

A cultura capitalista de fetichizar, tornando coisas as relações pessoais e personalizando as coisas, construiu muitos tipos de fetiches: mercado auto-regulável, mercadoria, igualdade jurídica, propriedade privada, democracia representativa, soberania das nações, racionalidade científica, cientificismo capaz de resolver todos os problemas da humanidade, entre outros.

No entanto, todos esses fetiches que sustentam a prática capitalista, apresentam sintomas de crise porque parece haver um grande descrédito e crítica em relação a eles. As formulações de BIHR a respeito são elucidativas:

Essa crise crônica é explicada, em primeiro lugar, pela pluralidade dos fetiches e mais ainda pelas rivalidades (as contradições potenciais) que os colocam em oposição. Estas últimas não só privaram a ordem significante capitalista da unidade e da coerência do universo mítico próprio aos modos de produção pré-capitalistas, mas têm tido tendência a desacreditar os diferentes fetiches uns pelos outros. (BIHR; 1999:169/70)

No decorrer das leituras e tentando esclarecer ainda mais o tema, pela importância que ele adquiriu na contemporaneidade, Berardi (2003), destaca as manifestações da crise cultural da humanidade que vão produzir efeitos desestruturantes na sociedade de consumo. O humano tornou-se ele próprio o objeto de consumo. A existência foi mercantilizada e mais ainda, privatizada.

A partir da riqueza de elementos trazidos à reflexão sobre o tema, um dos mais fundamentais versa sobre o individualismo exacerbado. Este, instigado ao consumo ilimitado, na lógica privativista, produz uma crise crônica de sentido, em que cada um procura dar sentido individual à sua existência, cada um fechando-se em si mesmo. Desenvolve-se a cultura narcisista, identificável na indústria do culto ao corpo – tudo para se auto-admirar e exibir-se para o grupo social da esfera de suas relações, em função de seu narcisismo.

Por outro lado, fragilizam-se os investimentos humanos em relação a objetivos coletivos mais amplos, com finalidades transformadoras e com sentido social. A ausência disso só gera vazio, angústia e indiferença a um mundo que, de repente, parece não ter mais relação direta com nosso ser, porque não participamos, deliberadamente, de sua produção.

Dessa forma, complementando as análises sobre todo o processo de produção de subjetividades no mundo atual, Berardi nos fornece argumentos sobre o modo de viver da humanidade e chama o modo de vida atual de “fábrica de infelicidade”. O referido autor, antes de fundamentar um rosário de problemas produzidos pelo modo de vida capitalista, destaca o fenômeno cultural que produz signos – do conjunto de comunicação e informação digitalizada, virtual – e que está criando “las condiciones

para la formación de una consciencia social del cognitariado” (Berardi; 2003:14).

Afirma ser isso um fenômeno importante capaz de gerar alternativas para os próximos tempos.

Assim, no processo do capitalismo cognitivo que Berardi denomina de semiocapital o sistema nervoso digital incorpora-se ao sistema nervoso orgânico, ao circuito da comunicação humana. O mundo conectado e a subsunção da mente ao processo de valorização capitalista produzem uma enorme transformação e um estado de psicopatologia quase generalizada, manifestada no stress competitivo, na aceleração dos estímulos e no stress de atenção.

La cultura neoliberal há inyetado en el cerebro social un estímulo constante hacia la competencia y el sistema técnico de la red digital há hecho posible uma intensificación de los estímulos informativos enviados por el cerebro social a los cerebros individuales. Esta aceleración de los estímulos es un factor patógeno que alcanza al conjunto de la sociedad. La combinación de competencia econômica e intensificación digital de los estímulos informativos lleva a um estado de electrocución permanente que se traduce en una patología difusa, que se manifiesta, por ejemplo, en el síndrome de pânico y en los transtornos de la atención. (BERARDI;2003: 18)

Constata-se que algumas características do capitalismo neoliberal, como a escassez de contato físico, a digitalização da vida, a constante excitação da mente, a saturação patológica e o entusiasmo competitivo e produtivista, provocam stress, depressão, desespero, pânico, frustração e sentimento de derrota e outras manifestações de patologia social. Cresce o consumo de drogas – lícitas e ilícitas – como mecanismo de aceleração dos estímulos e como anti-depressivos.

Por outra parte, estamos cada vez menos dispuestos a prestar nuestra atención gratuitamente. No tenemos ya tiempo para el amor, la ternura, la naturaleza, el placer y la compasión. Nuestra atención está cada vez más asediada y por tanto la dedicamos solamente a la carrera, a la competencia, a la decisión econômica. Y, en todo

caso, nuestro tiempo no puede seguir la loca velocidad de la máquina digital hipercompleja. (BERARDI; 2003:23).

A sociedade planetária, intensamente conectada, compartilha acontecimentos através de informações que circulam quase em tempo real. Tempo que é acelerado constantemente e que parece não permitir mais relações motivadas pelo puro prazer de conviver. Dessa forma, aumenta a solidão das pessoas, fazendo com que todos sejam competidores entre si. Vencer torna-se o imperativo de todas as ações humanas. A própria sexualidade não tem mais relação com o conhecer-se, com a gratuidade, mas adquire características de consumo, de exibição, de status, muitas vezes atividade regulada pela indústria.

Percebe-se que a vida digitalizada produz crescente automatismo nas emoções desde a infância que, de acordo com Berardi, está sofrendo um processo de reprogramação neurológica, psíquica e emocional

A gravidade das reflexões de Berardi acentuam-se na medida em que ele postula que a infinita vastidão e velocidade da infoesfera superam a capacidade de elaboração do organismo humano, produzem stress perceptivo e psíquico, transforma-se em pânico, o que vai além de um processo individual. Transforma-se em processo coletivo, com manifestações irracionais de agressividade, intolerância e impaciência.

Acreditando nessa realidade, não é difícil perceber as repercussões de todos esses fatores culturais na vida cotidiana e notadamente nos comportamentos juvenis no âmbito da escola. O sistema capitalista, que se firmou prometendo prazer, liberdade e felicidade, provou, amplamente, ser necrófilo em relação à natureza e torna-se, cada vez mais, uma “fábrica de infelicidade” para o ser humano.