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CAPÍTULO II – Crise civilizatória

2.2. Crise das instituições sociais

2.2.3. Crise da instituição Escolar

Na convivência diária, junto às escolas de educação básica, é possível sentir um desconforto latente ou mais explícito nas relações entre professores, alunos, direção e pais de alunos. Parece pertinente afirmar que esse mal-estar (que por sua abrangência excede o que vem sendo abordado usualmente como mal-estar docente) sintomatiza uma situação cujas dimensões são de crise generalizada, pois permeia e invade todos os espaços e tempos escolares, com maior ou menor intensidade.

Pode-se perceber, mesmo num olhar superficial, que a própria estruturação das instalações do ambiente escolar – dos prédios e pátios – vem se modificando nos últimos anos. Mudança que pode ser observada, por exemplo, na colocação de grades de ferro nas janelas e portas, muros cada vez mais altos, além de vigias nos portões, sistemas de segurança, entre outros medidas. Um aparato organizado não só para garantir proteção contra a ameaça de uma possível violência externa, mas também para controle interno, com a finalidade de conter a fuga das crianças e jovens.

Aprofundando mais a observação, é possível constatar, no cotidiano do processo educacional, comportamentos das crianças, adolescentes e jovens que desafiam qualquer pedagogia: a cada ano que passa, agravam-se o desinteresse, a desmotivação

pelo estudo proposto, agressividade entre os colegas e às vezes com os professores, desobediências, indisciplinas, índices de reprovação crescentes e formas diversas e freqüentes de fugir das aulas e da escola. O limite extremo é a evasão pura e simples.

De outro lado, percebe-se as tentativas dos professores, diretores e pais, diante das investidas e da fuga das crianças e jovens, de reforçar os controles, adotando critérios rígidos de disciplinamento e outros mecanismos de persuasão e de pressão para mantê-los no ambiente escolar.

Verifica-se, ainda, entre as crianças e jovens estudantes, manifestações que podem ser consideradas processos de somatização, pois não é fato raro encontrar crianças e jovens sendo socorridos no âmbito escolar diante dos mais diversas formas de indisposição corporal (dores de estômago, vômitos, dores de cabeça, diarréia, etc.), além do crescente número de casos de alunos com depressão, apatia, déficit de atenção ou hiperatividade.

Todavia, a situação não é muito diferente entre os professores quando se trata de observar fuga e mal-estar. Vale lembrar que se está falando apenas a partir da percepção mais imediata. Dessa forma, pode-se dizer que também os educadores parecem estar cansados, estressados e esvaziadas de suas potências, talvez pela mesmice de seu cotidiano institucional ou pelas dificuldades de vida frente aos baixos salários e condições de trabalho adversas ou mesmo por não entenderem e/ou não conseguirem dar conta das manifestações dos alunos já mencionadas.

Pode-se argumentar que essa crise residiria principalmente nas escolas públicas (por efeito da própria crise do Estado?) de periferia ou em decorrência de fatores eminentemente políticos, econômicos e sociais. Sobre esse aspecto, educadores e educandos teriam suas vidas atravessadas pelo mal-estar, pelo desconforto e sofrimento, tendo como causa principal a má distribuição de riquezas, num país como o Brasil, fruto de desenvolvimento dependente e concentrador de renda, submetido às exigências do mercado transnacional capitalista, tendo como conseqüência a fome, a prostituição infantil, a violência doméstica, problemas com drogas, alcoolismo, desemprego além das péssimas condições de vida na periferia das cidades. No limite dessa abordagem, a crise da e na escola seria apenas um efeito.

A partir disso, conclui-se que o denominador comum deste paradoxal mal-estar, que afeta tanto educadores como educandos, seria determinado por motivos de ordem política e econômica e que sanadas, em parte, ou no todo, essas condições, retornaria uma relação saudável e harmoniosa entre os mestres e seus alunos.

Sem discordar totalmente da pertinência de tal leitura, é possível, no entanto, acreditar que essa compreensão e enfoque não dão conta de uma série de outros fatores importantes, relacionados à crise vivida na escola e que muitas vezes são deixados à sombra ou minimizados. Partindo dessa hipótese, pode-se propor a abertura da categoria educação a novos movimentos, inquietações, e a novos e possíveis experimentos e desafios, dando-se atenção aos fazeres próprios do âmbito escolar.

Tomando essa idéia de abertura a novas hipóteses, arrisca-se a propor que a crise da escola, assim como as crises em outras instituições, ou “lugares especiais”26, está relacionada com a crise da Modernidade e suas delimitações, dos disciplinamentos que lhe são próprios. Das leituras de Manacorda (1997), tem-se a informação de que a escola atual, sua estrutura e conformação, nasceu no início da Revolução Industrial, quando a fábrica passa a expropriar a ciência do artesão e são criadas escolas para que os jovens trabalhadores realizassem as aprendizagens necessárias para a produção, antes apreendidas no convívio comunitário e familiar.

Complementando essas informações, somam-se outras que ajudam a entender o que contribuiu para que a escola tivesse a conformação atual. A educação escolar que temos compôs-se, originalmente, de acontecimentos da Modernidade, como a Reforma Protestante, a Contra-Reforma, o Iluminismo, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, e sobre ela pesa uma singular gravidade, pois encampou um ideário herdado e traduziu tanto uma missão civilizatória idealizada: a “missão educativa”, “a tarefa emancipadora”, a “missão civilizadora”, quanto um empreendimento pretensioso e grandioso, coforme observa Silvio de Souza Gadelha Costa (2002).

26 Lugares especiais: expressão utilizada por Paolo Virno (2003), em seu livro Gramática da Multidão,

para referir-se aos espaço disciplinados e disciplinadores de falares, termos, noções muito específicos (jargões profissionais, por exemplo), institucionais ou não, com delimitações precisas com relação a outros espaços, em oposição aos lugares comuns, públicos, onde não vigem fronteiras. Lugares especiais são os que mantém suas próprias linguagens e normas, o que os diferenciam dos lugares comuns e externos ao seu funcionamento.

O ideal dessa missão civilizadora da educação, segundo Gadelha Costa, definir- se-ia por duplo sentido:

Primeiro o de levar ao “outro” aquilo que quem se auto- atribui a denominação de “educador civilizador”, acreditaria que detém. Mas, não só, trata-se de algo que viria recobrir ou compensar justamente aquela condição de carência ou falta, entendida a priori como características inerente ao “outro” (COSTA; 2002, texto

mimeo.)

Dessa forma vemos que as pedagogias atuais – progressistas ou tradicionais – estão repletas dessas concepções, enraizadas nas determinações oriundas da Modernidade. Sobre essa temática, Gadelha Costa analisa que, sem dúvida, o professor e a escola contemporânea encarnam a cultura européia humanizada (universalização da concepção liberal-burguesa de ser humano), que na época celebrava a emergência do novo homem, vaidoso de si, de seus conhecimentos, de sua ciência e valores técnicos.

Tentando compreender as origens de muitos paradigmas contemporâneos, pode- se encontrar explicações nos fundamentos que constituíram a Modernidade. Dela herdou-se a concepção – encarnada pela burguesia liberal – que se auto-entendeu como o melhor que a história produziu, o ponto máximo. A burguesia compreendeu a si mesma como a própria definição do humano, fazendo a crítica do passado, aniquilando- o, suprimindo o “velho”, o “inculto”, o “outro”, o não europeu. O outro seria, melhor dizendo, o “selvagem”, o tupi-guarani, mas também as civilizações ameríndias: maias, astecas, incas e ainda, os negros, os árabes e sarracenos ou mesmo, estranhos povos do oriente.

Nessa caracterização e com esses olhar arrogante sobre os povos não ocidentais, o que seria ensinar e aprender? Muito sucintamente, ensinar seria: “Passar adiante,

transmitir tal e qual o que anteriormente já havia sido passado, descoberto, feito, cultivado, por outros homens, suas instituições, pela cultura. Aprendizagem estaria vinculada à recognição, repetição do ensinado e transmitido... repetição do mesmo, do igual, do semelhante.”(Costa; 2002, texto mimeo.)

Todavia, a missão civilizadora da educação mostrou-se, desde o início e atualmente, um empreendimento dos mais difíceis e complicados, devido a vários fatores, sobretudo porque o outro se revela diferente, com seus estranhos modos de agir, pensar e sentir, na singularidade de se ligar ao tempo e ao espaço, motivando desconforto e desconfiança para os educadores (civilizados). Em decorrência disto, do conflito instaurado, o processo civilizatório educacional se desenvolveu e se desenvolve sob o signo do embate, do jogo de forças e tentativas de dominação.

Por conseguinte, parece não ser arbitrário afirmar que o central da crise da escola contemporânea – que por sua vez provoca tantas perplexidades, mal-estar, sofrimento, inadequações nos jovens e crianças, como também nos professores e pais – é fundamentalmente a incorporação histórico-colonialista pelos professores e pela instituição de que devem ensinar um misto de catequese religiosa-humanista e engajamento crítico-progressista a valores ou entidades transcendentes, universais, abstratos, dados de antemão (conceitos que são efetivamente preconceitos), exteriores às relações concretas, que efetivamente vivem os sujeitos do espaço escolar. Agregado a essas concepções, está também o fato de conceber o aluno como um “outro”, “selvagem”a priori: carente, necessitado, inculto, criança, jovem, aluno (que na etimologia da palavra quer dizer sem luz), pronto para ser humanizado e preparado para a vida, para o trabalho, para a profissão, para a cultura, enfim, para a civilização. A respeito dessa arrogância, Paulo Freire já escrevia: “Ninguém educa ninguém (...) os

homens se educam em comunhão.” (FREIRE; 1974: 79)

Partindo dessas constatações, é pertinente considerar que o paradigma do ensino está em crise, mais do que nunca, hoje, quando a sociedade toda torna-se pedagógica27, pelo avanço tecnológico, principalmente pela difusão e velocidade das informações, graças ao grande desenvolvimento das NTIC, pela socialização dos saberes e fazeres (General Intellect ou intelectualidade geral), o que, no conjunto, acaba por borrar as fronteiras e limites de separação que eram próprios dos lugares especiais, bem como

27 Aquilo que o discurso neoliberal conseguiu introduzir na agenda de debates como “aprender a

aprender” associando às noções de habilidades, competências e – compartilhado com o pensamento crítico – “princípio educativo”, vem se dando na socialização direta, nas conversações, na cooperação social, no lançar mão da inteligência pública como recurso.

pelas mutações no mundo do trabalho, as hierarquias e práticas autoritárias e arbitrárias percebem-se questionadas.

Reforçando essa herança histórica, oriunda da Modernidade, talvez com muito mais propriedade, Jacques Rancière interpreta e publica “O mestre ignorante”, sobre as peripécias do professor Joseph Jacotot, revolucionário na França, de 1789, contemporâneo e agente da implementação da revolução liberal-burguesa.

Essa redentora revelação iluminista, e positivista pretendia conciliar a ordem e o progresso, através de uma instituição modelar, a instituição pedagógica (a escola), lugar do exercício da autoridade e da submissão para o povo e classes populares incultos e ignorantes.

Na criação da escola pública, na França e na Europa dos fins do século XVIII e início do século XIX, a instituição tornava-se a palavra de ordem central, condição para o ingresso do povo na sociedade nova e na ordem governamental moderna que prometia reduzir as desigualdades sociais, reduzindo a distância entre os ignorantes e os sábios. Nesse sentido, Jacques Rancière afirma que “No alvorecer da marcha triunfal

do progresso para a instrução do povo, Joseph Jacotot fez ouvir esta declaração estarrecedora: ‘Os amigos da igualdade não têm que instruir o povo, para aproximá-lo da igualdade, eles têm que emancipar as inteligências’ ”. (2002: 11)

Obviamente não se trata de uma questão de método, como formas particulares de aprendizagem, mas de uma questão ontológica. A igualdade das inteligências, sua potência para saber, capacidade de aprender, de pensar e fazer, é uma premissa e não uma promessa ou objetivo a ser alcançado. Ou seja: “Quem estabelece a igualdade

como objetivo a ser atingido, de fato a posterga até o infinito.” (Rancière; 2002: 10)

Dessa forma, está instaurado o conflito, desde seus primórdios, persistindo até nossos dias (crise): instruir, ensinar, explicar, mediar levam à submissão, dominação, embrutecimento e, por conseguinte, são atuais e históricas também a recusa, a evasão, a fuga dos jovens e crianças da escola estruturada para isso.

É pertinente postular que o modelo escolar de ensinar estabelece a divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os instruídos e os ignorantes, entre as inteligências superiores e as inferiores e que, para superar essa desigualdade, necessária se faz a mediação do professor explicador, que, para formar os espíritos e transmitir

conhecimentos, necessita ordená-los numa progressão do simples ao complexo, do particular para o geral, da parte para o todo.

Todavia, discordar desses postulados significa provocar conflitos e nesse sentido o professor Jacotot, de que fala Rancière, no início do século XIX, provocava escândalos e ira nas elites governamentais e acadêmicas ao afirmar:

O professor explicador não é necessário para socorrer uma incapacidade de compreender. É, ao contrário, essa incapacidade a ficção estruturante da concepção explicadora do mundo. É o explicador que tem necessidade do incapaz e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal (...) Antes de ser o ato do pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola, de um mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos. (RANCIÈRE;

2002: 20 ).

Seguindo esse raciocínio, pode-se afirmar que, na raiz da pedagogia moderna e contemporânea, há uma relação filosófica muito mais fundamental entre dominação e amesquinhamento do humano e outra de emancipação e valorização do humano, pois não se trata de dois métodos ou pedagogias, mas de dois usos de inteligência, duas concepções de ordem intelectual: uma de transmitir conhecimentos do mestre ao aluno (ensinar), e a outra a da liberdade e confiança na capacidade intelectual de cada ser humano. O humano já é sempre competente para aprender, exatamente porque o humano não nasce equipado com instintos especializados, está condenado a aprender permanentemente.

Frente a essas reflexões, cabe perguntar: qual é, então, o papel do mestre? Certamente o papel do professor é importante, desde que este emancipe o aluno e não o submeta ou o torne dependente e refém de suas intermediações e explicações. Segundo Rancière (2002), no ato de aprender, estão em jogo duas faculdades: a inteligência e a vontade. O mestre emancipador estabelece uma relação de vontade a vontade com o educando, deixando livre a inteligência e assim dissociando as duas funções. O mestre e o aluno se submetem ao querer e ao desejo um do outro, mas não se submetem ao saber ou à ciência do outro. Melhor explicando:

No ato de ensinar e aprender há duas vontades e duas inteligências. Chamar-se-á embrutecimento à sua coincidência (...) Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma inteligência que não obedeça senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade.

(RANCIÈRE; 2002: 26)

Temos então dois modos de ser professor, embasados em duas concepções do potencial humano. Um professor que liberta, emancipa, desafia a inteligência, para que o aluno se auto-valorize e se reconheça como capaz, e um outro professor que submete, subordina o aprender do aluno às suas explicações, fazendo-o dependente, desvalorizando-o e tornando-o incapaz.

A respeito dessas concepções, Rancière afirma que Jacotot radicalizou essa relação ao afirmar que se pode ensinar até o que se ignora, porque realmente trata-se de emancipar o aluno, forçando-o a usar a sua própria inteligência, potencializando o poder das capacidades humanas. Ele dizia: “O ignorante aprenderá sozinho o que o

mestre ignora, se o mestre acreditar que ele pode e o obrigue a atualizar a sua capacidade: círculo da potência, homólogo a esse círculo da impotência que ligava o aluno ao explicador do velho método.” ( RANCIÈRE; 2002: 27)

As contribuições de Rancière ajudam a entender as crises pelas quais passam os sujeitos do processo educacional e parece pertinente concluir reafirmando que o grande fator da crise e dos impasses da escola contemporânea – que por sua vez também contribui com a crise civilizatória – originou-se na conformação da escola moderna dos séculos XVIII e XIX, perpetuando-se até nossos dias, e agregando ainda outros fatores ligados ao processo produtivo, cultural, ambiental, etc., agravando de tal modo as relações dos sujeitos envolvidos e tornando o espaço escolar um lugar de crise, sofrimento e, como conseqüência, também de fuga e êxodo.