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PARTE 1 – REFERENCIAL TEÓRICO

1.2. Educação e trabalho no Brasil

No Brasil, o processo histórico da educação acompanhou as concepções, práticas e ações próprias de um país que foi, literalmente, colonizado. Colonização que aconteceu a partir das visões eurocentristas que, sob qualquer ângulo da vida, foram sendo impostas e implementadas no país.

Obviamente que desde as primeiras ações no campo educacional, executadas aqui, quase todas tiveram a lógica da dominação e da pedagogização próprias do Capital e do Mercado, trazidas pela Modernidade e anteriormente mencionadas neste trabalho. Inserida nessa lógica e quase sempre sem a perspectiva de uma pedagogia emancipatória, a história do que hoje denominamos de Ensino Médio tem sido em torno das opções sobre a sua finalidade (propedêutica à continuidade dos estudos ou de preparação para o trabalho) e, na melhor das hipóteses, a de sua expansão que possibilite o acesso universal a toda a educação básica e para toda a população, o que está muito longe de se tornar realidade.

Nesse sentido, a dificuldade fundamental que os educadores manifestam em relação ao Ensino Médio é conseguir organizar programas de estudos que articulem satisfatoriamente duas principais dimensões: preparar para as necessidades do trabalho e para a continuidade dos estudos.

Percebe-se que as classes médias, com renda suficiente para pagar cursos preparatórios aos vestibulares e garantir a manutenção dos jovens em cursos superiores públicos ou privados, buscam no ensino médio uma base fundamental de conhecimentos que compõem os conteúdos exigidos nos concursos vestibulares. Já as camadas mais populares sabem que, ao concluir a escola básica, terão que exercer alguma forma de atividade remunerada e por isso desejariam se capacitar melhor para enfrentar o mercado de trabalho18. Para muitos, o curso superior faz parte dos projetos pessoais, mas dependerá de condições que poderão ser criadas com o acesso da pessoa ao trabalho e à renda.

Nas escolas públicas, essa ambigüidade do ensino médio está muito presente, porque as classes médias, empobrecidas pelo modelo neoliberal nas últimas décadas, continuam mantendo as expectativas de se capacitarem para serem dirigentes, juntam-se no mesmo espaço com as camadas populares, principalmente onde se expandiram as vagas no ensino médio e pressionam por programas que priorizem os aspectos propedêuticos em detrimento de conteúdos que capacitem para o trabalho presente ou vislumbrado. Dessa forma, predominam programas conteudistas que introduzem conhecimentos básicos necessários aos vestibulares ou ao acompanhamento de cursinhos preparatórios aos vestibulares (para os alunos que puderem pagá-los). Portanto, programas que desenvolvam capacidades, habilidades e competências, que pudessem se constituir em potenciais para o exercício de atividades produtivas, raramente são pensados e/ou implementados e, menos ainda, propósitos de construção de atividades curriculares não pautadas pela pedagogia capitalista.

Em vista disso, é pertinente afirmar que a dualidade do ensino médio, entre as formações – acadêmicas ou profissionalizantes – é tão antiga quanto a própria história do ensino no Brasil e característica de uma sociedade que se forjou na desigualdade.

Kuenzer escreve sobre essa realidade com muita pertinência:

Assim é que já se tem demonstrado ser a dualidade estrutural a categoria explicativa da constituição do Ensino Médio e profissional no Brasil, já que, desde o

18 Mesmo percebendo que terão que competir em busca das reduzidas vagas no Mercado e que as

surgimento da primeira iniciativa estatal nessa área, até o presente, sempre se constituíram duas redes, uma profissional e outra de educação geral, para atender às necessidades socialmente definidas pela divisão social e técnica do trabalho.

O desenvolvimento histórico dessas redes vai mostrar que a iniciativa estatal criou escolas profissionais, no início do século XX, para só nos anos 40 criar o Ensino Médio. A partir de então, essas redes sempre estiveram de alguma forma (des)articuladas, uma vez que a dualidade estrutural sempre responde a demandas de inclusão/exclusão; o Ensino Médio inclui os socialmente incluídos; para os excluídos, alguma modalidade de preparação para o trabalho, orgânica aos modos de produzir mercadoria que historicamente foram se constituindo. (KUENZER; 2001: 26)

Coerente com essa concepção e para atender às demandas da economia por mão- de-obra capacitada para o trabalho na indústria e no comércio, o Governo Federal, na década de 40, cria o SENAI e o SENAC que continuam treinando para atividades específicas, em diversos ramos de atividades, dentro dos paradigmas do capitalismo fabril e nas conformações ideológicas do capital e hoje do neoliberalismo.

Analisando as legislações da época, pode-se constatar que esses cursos, inicialmente não eram propedêuticos aos cursos superiores e não continham conteúdos reconhecidos como científicos, eram exclusivamente voltados ao trabalho. Em 1961, a Lei de diretrizes e bases da educação nacional, de nº 4024/61, procura integrar o ensino profissional ao sistema regular de ensino, estabelecendo a equivalência entre os cursos profissionalizantes e propedêuticos, ou seja: um curso técnico de três anos, de nível médio, garantia direito a prosseguir os estudos de nível superior, reconhecendo a

“legitimidade de outros saberes, que não só os de cunho acadêmico” (Kuenzer; 2001:

29). No entanto, essa modificação legal, bem como as posteriores, em que pese sua importância, não superou a ambigüidade do ensino médio.

Posteriormente, com o advento da aceleração da produção industrial, num período de grande crescimento econômico, a legislação do ensino no Brasil pretendeu

implementar a Teoria do Capital Humano19, na educação brasileira, idealizada como necessária à recomposição do Imperialismo capitalista, liderado pelos Estados Unidos. Essa teoria espelhava a coerência da educação com um conjunto de concepções e práticas que faziam parte do pacto fordista-taylorista20, em que o Estado, “quer em sua

forma Liberal, quer em sua forma Intervencionista, é um Estado de classe” (Frigotto;

2001: 21).

Dessa forma, em 1971, o governo brasileiro, através da LDB 5692/71, instituiu a profissionalização obrigatória para todos, no ensino médio, numa tentativa de superar a dualidade tradicional entre formação propedêutica ou para o trabalho. Durante esse período o regime civil-militar autoritário, teve como objetivo adequar a economia, o ensino e todas as instituições brasileiras ao processo de internacionalização crescente do capital e à hegemonia do capital financeiro. Kuenzer explica:

A euforia do “tempo do milagre” apontava para o ingresso do Brasil no bloco do Primeiro Mundo, através do crescimento acentuado da economia; a expectativa do desenvolvimento industrial com suas cadeias produtivas levava a antever significativa demanda por forças de trabalho qualificada, notadamente no nível técnico. É importante lembrar que a essa finalidade se agrega a necessidade de conter as demandas dos estudantes secundaristas ao ensino superior, que havia marcado fortemente a organização estudantil no final da década de 1960. (KUENZER; 2001: 29/30)

Vale lembrar que o Estado intervencionista brasileiro, daquele período, ajusta a legislação da educação à Teoria do Capital Humano, para atender às novas demandas do

19 Teoria do Capital Humano, entendida como uma esfera da teoria capitalista de desenvolvimento, que

define a educação como fator de produção. Desenvolvida nos EUA, cujo nome de destaque foi Theodoro Schultz, na década de 50. O grupo de estudiosos, liderado por ele, criou o fator H como insumo produtivo (mão de obra). No Brasil a teoria foi disseminada pelos organismos internacionais, associados ao MEC (BID, BIRD, UNESCO, USAID, FMI, UNICEF) e a idéia-chave é de que um acréscimo marginal de instrução, treinamento e educação, corresponde a um acréscimo marginal de capacidade de produção. Nessa teoria estavam presentes também as funções de disciplinamento em que além do treinamento deveria tratar da reprodução dos interesses do capital (Frigotto, 1996).

20 Sobre o pacto fordista-taylorista, ver capítulo III, subintem 3.2., que trata especificamente desse

Capital, ao crescimento econômico promovido pelo Estado e ao regime de repressão vigente.

Em vista disso, a escola, que já tinha uma estrutura hierárquica, acentua os mecanismos de controle, criando setores de Supervisão e Orientação, bem como outros mecanismos que a hierarquizaram e a fragmentaram ainda mais, assemelhando-a ao modelo da fábrica fordista-taylorista – fragmentária, padronizada, homogênea. A própria linguagem educacional passou a revelar essa concepção: clientela, produtividade, aproveitamento, rendimento, comportamento de entrada, de saída, entre outros; como se o aluno resultasse num produto. Em que pese as intenções democratizantes da atual LDB 9394/96, essa estrutura permanece quase inalterada.

Passadas algumas décadas da implementação das diversas legislações na educação brasileira, constata-se que muitos programas e ações foram fracassados, mas que, por outro lado, a Teoria do Capital Humano disseminou a crença de que através da escolarização e “acesso aos graus mais elevados de ensino, se constitui em garantia de

ascensão a um trabalho qualificado e conseqüentemente, a níveis de renda cada vez mais elevados” (Frigotto; 2001: 27). Essa expectativa de que a escola é a possibilidade

de melhorar de vida se consolidou e funcionou enquanto promessa durante muitos anos, principalmente no período de crescimento maior, chamado “milagre brasileiro”, auge do fordismo-taylorismo, característico das grandes fábricas que empregavam muita gente. Foi o período dos empregos em massa, do êxodo de populações do meio rural para a grande cidade, período das promessas de seguridade social e de inclusão dos trabalhadores na sociedade de consumo.

No entanto, o crescimento econômico e a oferta de bons empregos e bons salários, que eram as expectativas das populações empobrecidas, não aconteceram nas dimensões esperadas e necessárias para a superação da pobreza e da exclusão social. A recessão e o desemprego cresceram e a expectativa sobre a escola parece já não ser a mesma.

Apesar da crescente exigência de escolarização, os jovens e suas famílias sabem que ela não é garantia para o emprego formal e que a escola tem dificuldades de preparar para o trabalho, principalmente em tempos de alterações tecnológicas no processo produtivo. Kuenzer afirma que “As pesquisas na área da Educação e Trabalho

investigam as formas através das quais o trabalhador, contraditoriamente, se educa/deseduca, no interior das relações de produção, com ou sem a mediação da escola.” (Kuenzer; 2001: 25)

Em todo o mundo e também no Brasil, o declínio do modelo de produção capitalista chamado fordista-taylorista, com as alterações na base técnica do trabalho, trouxe a necessidade de repensar a educação. Dos debates que antecederam a Constituição brasileira de 1988 e a LDB 9394/96, evidencia-se a concepção da educação politécnica e do trabalho como princípio educativo, alterando completamente as concepções sobre o tema, formulados pela LDB 5692/71.

Assim, constata-se a importância da década de 90, em que novas questões são trazidas para o debate nas escolas e sobre a pertinência das pesquisas acerca das relações entre trabalho e educação: os temas das inovações tecnológicas e das novas competências a serem adquiridos pelos trabalhadores, para enfrentarem ou se adaptarem à nova situação. Neste momento, amplia-se o campo de investigações, intensificam-se as discussões a respeito dos nexos entre escola e o mundo do trabalho, face às alterações e o seu impacto na qualificação dos trabalhadores, evidenciando-se a necessidade de pensar os impasses de modo mais acurado. A escola, de modo geral, já não se apresenta com a promessa de preparar para o trabalho, até porque parece ter reduzido fortemente a expectativa em relação ao seu papel de facilitadora para o emprego.

As mudanças na produção, com o incremento de novas tecnologias, aliadas à financeirização da economia, trouxeram o desassalariamento estrutural e a necessidade de repensar os paradigmas em relação à educação para o trabalho e em relação aos próprios objetivos do ensino médio. Em vista disso, Kuenzer (2001) destaca dois desafios para o ensino médio: democratização do acesso, ampliando e universalizando vagas, e a formação de uma outra concepção, que articule formação científica e sócio- histórica à formação tecnológica, para superar a ruptura, historicamente determinada, entre uma escola que ensine a pensar através do domínio teórico metodológico do conhecimento socialmente produzido e uma escola que ensine a fazer, através das aprendizagens de procedimentos e de habilidades psicofísicas, necessárias ao modo de viver e de fazer do mundo contemporâneo. Fazeres, é pertinente afirmar, enquanto atividades cada vez mais imateriais: virtuais, comunicativas, informacionais, afetivas,

envolvendo as capacidades cognitivas mais gerais do ser humano. Não há dúvida que o processo produtivo passa por transformações paradigmáticas, que envolvem aspectos econômicos, políticos e sociais e isso precisa ser considerado nas ações educativas.

Em vista dessas transformações, na análise da nova LDB (Lei 9394/96) percebe- se a intenção dos legisladores de adequar a educação aos novos padrões de desenvolvimento e às novas formas de vida, bem como de superar a dualidade entre educação geral e formação profissional. O Art. 35 da referida legislação, regulamentado pela Resolução 03/98-CNE (Conselho Nacional de Educação), estabelece que cada escola elaborará o seu projeto pedagógico observando as especificidades das diferentes realidades das comunidades, as necessidades dos alunos e as possibilidades da própria escola, respeitando os limites legais e exigências quanto à base nacional comum de disciplinas para todo o território nacional. A mencionada legislação especifica as finalidades do ensino médio e nelas pode-se constatar a intenção de contemplar no ensino os aspectos propedêuticos, de preparação para o trabalho, cidadania e aperfeiçoamento enquanto ser humano.

Apesar da Lei 9394/96 garantir maior autonomia às escolas, reconhecer o direito aos planos de carreira para os educadores, flexibilizar as possibilidades de construção de currículos construídos pelas comunidades escolares, ela abre também as possibilidades de ampliação da privatização e mercantilização da educação. Na realidade, persistem, em geral, os salários altamente defasados, os planos de carreira sempre ameaçados pelos governos que, na prática, resistem em cumpri-los, bem como a quase ausência de políticas de formação continuada para os trabalhadores. Os investimentos continuam insuficientes e mantêm-se as velhas práticas de centralização, hierarquização, alienação, fragmentação, distanciamento da comunidade escolar e a delegação substituindo a participação efetiva.

Por conseguinte, no decorrer dessas formulações apresentam-se duas perguntas fundamentais: no âmbito de uma crise aberta, marcada por mutações e rupturas, como tornar pensáveis os impasses educacionais e culturais? Tendo-se em conta que as práticas educacionais relacionam-se ao empenho em manter e cultivar características culturais cuja pretensão é a de ensinar através da prática pedagógica, de que impasses se está tratando?

Fala-se da natureza das mudanças tecnológicas, da relação entre as novas tecnologias e a qualificação humana, da educação básica dos trabalhadores, dos impactos sobre a base técnica da produção e da organização do trabalho, sobre a qualificação, formação humana e forma de vida dos trabalhadores. Certamente fala-se da Terceira Revolução Industrial, baseada na micro-eletrônica, informatização, automação, robotização, engenharia genética, biotecnologia e transgenia, bem como das novas fontes de energia e dos novos materiais, que alteram necessariamente as relações sociais e técnicas da produção, as relações de poder, os valores, a ética, a cultura e, pode-se afirmar, sem dúvida, o processo civilizatório.

Coerente com as transformações descritas, é óbvio que no processo de formação humana, as máquinas inteligentes e a intelectualização da produção passam a demandar conhecimentos polivalentes e trabalhadores multi-habilitados. Todos, de uma forma ou de outra, são atingidos por um profundo processo de transformação social: aparecimento de novas formas de organização social, econômica e política. Coexistem formas de organização rígidas do trabalho e trabalhadores semi-qualificados, com o trabalho não condicionado, qualificado, e mesmo, altamente qualificado. As dificuldades de funcionamento se produzem simultaneamente nas instituições responsáveis pela “coesão social” (o Estado), nas relações entre economia e sociedade (a crise do trabalho e da sociedade salarial) e nos modos de constituição, pertencimentos e composição comunitárias (crise dos sujeitos).

Pode-se afirmar que vivemos um tempo em que vemos nossas capacidades ampliadas. Potencializam-se nossas possibilidades de conhecimentos e de comunicação, de ampliação de prazer e de criatividade, ao mesmo tempo em que há uma defasagem de valorização e auto-valorização da potência humana.

Diante da exclusão, do sofrimento, da violência crescente, das profundas desigualdades sendo que para uma pequena parcela da humanidade ampliam-se enormemente as possibilidades de fruição dos prazeres e do conforto que o avanço tecnológico propicia, acumulando fortunas e patrimônios gigantescos, enquanto multidões são cruelmente condenadas a toda espécie de tragédias, miséria e abandono. Esse paradoxo gera crise, perplexidade e descrédito nas instituições: no Estado, na democracia representativa e, obviamente, na escola. A crise da escola, portanto, afeta e

é afetada pelo conjunto de outras crises, de dimensões tão amplas que parece pertinente falar de crise civilizatória.