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CAPÍTULO II – Crise civilizatória

2.4. Crise dos movimentos sociais

Nossa geração testemunhou e/ou participou de um grande número de movimentos sociais – feministas, ecológicos, antinucleares, de luta pela terra, pela moradia e outros – que brotaram principalmente nas décadas de 60 e 70. Ressalta-se que em muitos países esses movimentos manifestavam-se livremente, já em outros, a exemplo do Brasil, as manifestações eram abafadas ou reprimidas pelas ditaduras civis- militares, durante décadas, o que não impediu que tivessem constituído e desenvolvido práticas alternativas, de educação popular e de luta contra as ditaduras e por dignidade de vida.

Em alguns episódios, esses movimentos se articularam com o sindical. No Brasil se constituiu a Central dos Movimentos Populares, a Central Única dos Trabalhadores, o Movimento dos Sem Terra e outras centrais, que muitas vezes atuaram em conjunto,

mas que, de modo geral, mantiveram práticas corporativistas, fragmentárias, de disputas políticas entre os movimentos ou dentro de cada uma dessas organizações.

No entanto, uma das características dos movimentos sociais, de acordo com Bihr (1999), foi, de modo geral, a indiferença ou às vezes até a hostilidade para com as organizações sindicais de luta operária contra o capital, principalmente em relação ao movimento operário, sob hegemonia social-democrata.

Nota-se que apesar da importância desses movimentos nas diversas lutas pela democracia, por melhorias na qualidade de vida e oposição às mais variadas formas de discriminações, lutas ambientais, feministas, e tantas outras, os movimentos sociais perderam força, entraram em crise e acabaram subsumidos pelo capitalismo.

Pode-se encontrar, em algumas formulações de Bihr, explicações sobre os diversos mecanismos usados pelo capital, com a conivência ou colaboração do Estado, capazes de criar as contradições sociais que fragilizaram os movimentos e facilitaram as condições necessárias à construção das subjetividades que constituem o pensamento hegemônico para a sustentação do modo de ser e de viver na lógica do capital e do mercado.

Nesse processo, o capital mobilizou e instrumentalizou todos seus “aparelhos” – educação, repressão, meios de comunicação, legislação, concentração urbana, desenraizamento das populações de suas comunidades – e, aproveitando-se também da desarticulação e disputas entre os movimentos sociais e sindicais, desmobilizou as lutas populares e socializou o pensamento e as práticas capitalistas neoliberais.

Através do conjunto dessas formas e aparelhos, cuja síntese e coerência o Estado garante, o processo de reprodução do capital procura apropriar-se da práxis social, produzindo uma sociabilidade, um modo de vida em sociedade a ele apropriado, por ser precisamente de acordo com as exigências de sua reprodução. Mas semelhante apropriação é um processo fundamentalmente contraditório, que tropeça em limites essenciais e que dá origem a crises e conflitos.(BIHR;1999:145)

Pode-se afirmar, portanto, que a socialização capitalista da sociedade gerou um processo de fragmentação, homogeneização, desintegração, segregação e atomização e

nas palavras de Bihr: “dissolução das relações comunitárias, relaxamento do vínculo

social, privatização da vida social”(1999:146/147). Por outro lado, também deu

condições jurídico-políticas para a sociedade civil exercer a democracia política e transformar em contratos, de diversas formas, as relações sociais, regulando os conflitos e normatizando o modo de vida.

Enfim, essa mesma apropriação fez eclodir e não parou de reforçar o individualismo, colocando explicitamente cada indivíduo como sujeito econômico (portador de interesses particulares), jurídico (portador de direitos gerais), ético (enquanto pessoa digna de respeito), político (enquanto cidadão), psicológico (enquanto sujeito que tem desejos). Determinações que são diretamente contraditórias com o estado de privação generalizada à qual a autonomização das forças sociais tende a reduzir cada indivíduo.

(BIHR;1999:148)

Ao fortalecer o individualismo e a atomização dos movimentos e das pessoas e ao fetichizar o Estado e gerar sobre ele expectativas, como gestor social – aumentando a dependência da sociedade sobre o Estado, sobrecarregando-o e desacreditando-o – a auto-instituição capitalista da sociedade desagregou e despotencializou a construção dos vínculos sociais e comunitários, necessários para as sociedades reproduzirem-se com um mínimo de harmonia. È a “própria existência do vínculo social que está em jogo.” (Bihr; 1999:150)

Além das relevantes reflexões já mencionadas, compreende-se que, a falta desse consenso mínimo, sem o qual nenhuma sociedade pode conviver, resulta, freqüentemente, em comportamentos inquietantes de alguns grupos sociais, principalmente da juventude, tais como: recusa às normas de convivência social, dificuldade de integração na sociedade, crise de motivação, utilização da discriminação, violência e exclusão, fuga em mecanismos como a droga, o suicídio e a loucura, bem como a depressão.

No entanto, apesar dos limites e erros históricos dos movimentos sociais, tais como o fechamento e estreiteza das lutas localizadas e periféricas em relação às lutas contra as relações de produção capitalista, pode-se identificar outros traços comuns

apresentados ao longo da trajetória dos movimentos sociais, tais como a desconfiança em relação aos partidos políticos e os seus atores, responsabilizando os poderes públicos pelas precariedades das condições de existência, geradas pela apropriação capitalista.

Em que pese essas observações, é pertinente acreditar que esses movimentos tiveram o mérito de inaugurar práticas alternativas para melhoria das condições de vida e “revelaram, de maneira mais ou menos clara, que as condições da reprodução do

Capital ultrapassam hoje amplamente seu simples movimento econômico (seu ciclo de “valor em processo”) para se estender à totalidade das condições sociais de existência” (Bihr; 1999:153).

Compreendendo isso, entende-se também que é necessário ampliar a luta contra o modo de viver na lógica do capitalismo e construir referenciais não capitalistas de práticas sociais, para constituição de sentidos à existência individual e coletiva, dotados de projetos para transformação da sociedade.

Por outro lado, se as tradicionais organizações de luta, parecem estar em crise, tais como os sindicatos, partidos e movimentos sociais, que foram protagonistas das grandes mobilizações nas décadas de 60-70, as perguntas que perturbam é: há resistência e lutas contra o capitalismo em nossos dias? Onde estão e como se manifestam?

Encontramos em algumas reflexões do Coletivo Situaciones33 (2002), relatos que nos demonstram a construção de novas formas de gestão da vida por parte de uma ampla gama da população, para além dos movimentos de resistência que conhecemos como os indígenas zapatistas, no México, MST (Movimento dos Sem Terra) e piqueteros argentinos. Estão acontecendo movimentos e lutas solidárias que se gestam construindo vínculos comunitários e fraternos na organização e cooperação, inaugurando novos modos de vida e de resistência, alguns alcançando grande repercussão em nossas sociedades. As palavras de Raúl Zibechi são ilustrativas:

Las formas de resistencia y de construir mundos nuevos que se arraigaron en zonas rurales, están comenzando a

33 Grupo de ativistas e pesquisadores da área de ciências políticas e sociais da Universidade de Buenos

Aires, com uma longa experiência quanto ao método Paulo Freire, atuando junto aos movimentos sociais da Argentina.

instalarse con fuerza inusitada em algunas grandes ciudades. Es la primera vez que en la metrópolis, corazón del capital y de la dominación, los de abajo son capaces de abrir espacios autónomos desde los que resisten al sistema, lo desafian y en los que construyen mundos nuevos. (ZIBECHI; 2004: texto mimeo)

Dessa forma, pode-se encontrar lutas por moradia, a exemplo dos assentamentos irregulares, em diversas partes da América Latina, como na cidade de Montevideo, conforme relatado por Zibechi (2004), com um em cada cinco habitantes vivendo em assentamentos irregulares (de uma população de 1.500.000) fruto de esforço coletivo de auto-organização.

Outros relatos parecem significativos, tais como as alternativas desenvolvidas pelas populações diante do desemprego e precarização do trabalho, crescentemente informal e sem garantias de seguridade social, através das quais várias centenas de hortas comunitárias foram realizadas em plena zona urbana, em diversos países da América Latina, fruto da auto-organização das populações, para enfrentar a crise de alimentação.

Estes exemplos dos povos latino-americanos são mencionados por Raúl Zibechi, também para chamar atenção ao processo de criação de vínculos comunitários, cooperativos, de confiança e afetos, que são referenciais para um novo mundo. Ele relata:

En efecto, los piqueteros argentinos están siendo capaces de producir uma parte de sus alimentos em huertas colectivas en sus barrios, tienen puestos de salud y comienzan a abrir escuelas, a la vez que establecen vínculos de intercambio con otros grupos por fuera del mercado (MTD Solano y Colectivo Situaciones, 2000 y Zibechi, 2003). Em paralelo, fábricas recuperadas y asambleas vecinales trenzan relaciones con desocupados creando espacios comunes, sobre todo en la distribuición y comercialización de la producción. (ZIBECHI; 2004:

Compreende-se as iniciativas populares na luta por inclusão e dignidade de vida, como sendo ações daquilo que hoje poderia ser entendido como os novos movimentos sociais, diante das massas de desempregados e excluídos, que perderam a confiança no Estado, pois comprenderam que para as suas necessidades, o Estado está em crise, extorquido pelas exigências do receituário neoliberal do FMI. Diversos relatos revelam as iniciativas coletivas e organizadas de multidões, diante de todas as mazelas provocadas pelo sistema capitalista.

O relato de diversos autores sobre os fazeres alternativos de muitas populações empobrecidas nos faz acreditar que muitas dessas ações deixam de ser experiências isoladas dos setores populares. Sem a ajuda do Estado e apesar dele, vão tomando iniciativas que são novas: passam a sobreviver de serviços coletivos, tais como os restaurantes populares, produção de alimentos, roupas, sapatos, moradias, etc., tomando para si uma série de aspectos que antes eram oferecidos pelo Estado tais como saúde e educação, principalmente. As populações organizadas estão produzindo e reproduzindo suas vidas e muitas vezes com critérios autogestionários e solidários, “preocupados no

sólo por lo que hacen sino sobre todo por cómo lo hacem. Ou sea, están empeñados en crear comunidad, o como quiera llamarse a los lazos horizontales, sin jerarquías.”

(ZIBECHI; 2004)

Tentando esclarecer, Zibechi aponta algumas tendências dos novos movimentos e organizações sociais, que os diferenciam dos antigos movimentos: a autonomia em relação ao Estado e aos partidos políticos, a apropriação do espaço público, a auto- afirmação, a horizontalidade nas relações, a vontade de consenso em lugar de disputas internas e principalmente a prática imanente de construção do mundo novo como algo imediatamente realizável, rompendo com a idéia de que as transformações só ocorrerão após um longo período de acumulação de forças para um dia, talvez, acontecer o grande ato revolunionário que mudará definitivamente o estado de coisas atual.

Constata-se que o mencionado autor contraria a teoria de que há uma coesão de todas as classes em torno da ideologia dominante, já que as classes dominadas têm demonstrado capacidade de criar seus próprios espaços sociais, fora do controle dos opressores, criando sua própria cultura.

Mesmo relativizando as mencionadas postulações, encontram-se, em outros autores, formulações semelhantes que reafirmam ações de resistência contra o velho poder, de insurreição e de vontade de constituição de novas formas de vida. Em vista disso, John Holloway traz novos elementos à reflexão:

En esse mundo, las personas son volcanes sofocados, inquietas, proyectan más allá de ellas mismas, se desbordan. En la superficie tienen una identidad, pero bajo el aspecto de la identidad está la fuerza de la no identidad. Éste es el mundo del arte y la literatura, del psicoanálisis, de la poesía y no de la prosa, del subjuntivo. Éste es el mundo del pensamiento dialéctico, en el cual según Adorno la presencia de “lo no idéntico bajo el aspecto de la identidad” (1986, p. 13) es central, el mundo de la esperanza donde el todavía no anhelado está ya presente como fuerza motriz. (HOLLOWAY;

2004: texto mimeo.)

Foi dito que os movimentos sociais perderam força e estão em crise. Poderíamos afirmar que, assim como o processo de produção está sofrendo alterações, os movimentos sociais também, e certamente os velhos paradigmas das lutas dos anos 60 a 80, estão em declínio. No entanto, emergem novas formas de lutas, de resistências e contestações que precisamos apreendê-las e saber olhá-las. É necessário entender que tipo de movimento social está em crise e entender também com que novas subjetividades temos que pensar nossas ações, nos sindicatos, na educação ou nos movimentos sociais, de qualquer natureza.

Constata-se a ocorrência de transformações no processo produtivo, nas formas de vida, nos mecanismos de comunicação, nas inovações tecnológicas, nos êxodos e desenraizamentos das populações, que produzem, é certo, rupturas com antigas identidades, referenciais e costumes que promovem alterações culturais. Essas modificações precisam ser estudadas, pela profunda relação que mantêm com a produção de subjetividade e pela relevância que a produção de subjetividade adquiriu no atual mundo pós-industrial, em que a comunicação e a semiótica ocupam espaços privilegiados nas realizações humanas ou no que denominamos de mundo do trabalho.