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Crise da realeza. Imbecilitas regis: o rei já não tem apoio. A metáfora usada pelo redactor das Gesta episcoporum cameracensium vai ao encontro daquela que Aelfric acabava de usar e que Alfredo, o Grande, usara também, cem anos antes. Este enfraquecimento da monarquia é decisivo: os “especuladores”, os que apresentam um espelho (speculum) das virtudes já o não apontam para o soberano, mas sim para a sociedade. A moral da acção separa-se assim da pessoa régia, e com esta separação incita a procurar, no corpo social, as funções de sageza, de vigor militar e de generosa fecundidade que o soberano assumira até então. Crise e muito brusca.

No Verão de 1023, nada parecia haver mudado no povo franco: em Ivois-sobre-o- Mosa, na fronteira que, após o tratado de Verdun, separava o reino do Oeste da Lotaríngia, dois monarcas, o rei Henrique da Germânia e o rei Roberto da França, conversam, após haverem trocado os faustosos presentes de amizade, fazendo recíproca demonstração da sua magnificência, cingidos pelas mais preciosas jóias dos seus tesouros; falam da paz, da justiça e da protecção da santa Igreja. Como dois séculos antes falara Luis, o Piedoso. De facto, é pura fachada. Por detrás dela, tudo ruíra já. Um ano mais tarde, revela-se a decomposição. Na Lorena – esse antigo reino agora unido ao da Germânia, onde se acham Cambrai e o seu bispo-, por morte de Henrique, o duque Frederico, primo de Gerardo (e de Adalberão), recusa o sucessor que os Alemães deram ao soberano. O rei Roberto tenta aproveitar-se do facto, avançar pela Austrásia, conquistá-la, pelo menos a Austrásia romana, a região de Metz, de Gerardo e Adalberão. Reúne em 1025 os seus guerreiros; ao mesmo tempo o mais poderoso dos príncipes da França ocidental, Eudes, conde de Blois e de Troyes, apressa-se a invadir o reino da Borgonha. É nesse momento que Gerardo anuncia o postulado da trifuncionalidade social. Em Compiègne, em 1023, estava ele junto do rei Roberto, participando com os outros bispos nos preparativos da entrevista de Ivois e

[Pg. 149] do vasto empreendimento de pacificação que esse colóquio deveria inaugurar.

Agora, desamparado pela morte do seu patrono Henrique, sonha certamente com a ressurreição da autonomia lorena; envia presentes a Roberto, talvez para o deter, em todo o caso para preparar conversações. Na verdade, na parte lotaríngia do espaço franco, a perturbação logo se acalma. Antes de terminado o ano de 1025, os duques, e Gerardo com

eles, prestaram juramento de obediência em Aix-la-Chapelle. Tudo voltou à antiga ordem. Entretanto, no reino carolíngio mais agitado pela inovação, o de Oeste – essa parte da Europa que se acha então nos postos avançados do crescimento –, as estruturas do Estado, de há muito minadas, desabam. Quando Adalberão evoca, no seu poema, a “juventude” do rei Roberto, ironiza; Roberto é velho, decrépito. Também o seu trono oscila. Sabemo-lo por outros testemunhos que não são retóricos, mas directos, aqueles que nos são brutalmente apontados pelos actos da chancelaria régia 1. As reminiscências pomposas que lhes ornam os preâmbulos não escondem e que anda à deriva. Roberto, o Piedoso, está, antes do mais, preocupado com a sua sucessão: o pai, há menos de quarenta anos, tornara-se rei de França, por um acto que muitos consideraram usurpação, e que não foi esquecido. Hugo Capeto lançara os fundamentos de uma dinastia, associando à realeza seu filho mais velho. Em 1027 este morre. O golpe não foi demasiado grave: o rei tem mais filhos e no dia do Pencecostes desse mesmo ano, o óleo santo unge o corpo de Henrique, seu segundo filho.

Mais grave, irremediável, é o enfraquecimento, o recuo da autoridade monárquica. Todo o Sul do Reino passa agora sem rei; alguns anos atrás, o conde de Barcelona, assustado com o avanço dos Muçulmanos, tinha pedido ajuda ao rei de Orleães e de Paris; quem pensaria em fazer o mesmo ao sul de Angers, da Sologne? O Sul da França torna-se, durante século e meio, um reino sem soberano, um país de príncipes, independentes no seu próprio “reino”, conforme dizem. Em 1029, Ademar de Chabanne propõe o elogio de um deles, o duque Guilherme o “Grande”, da Aquitânia: reconhece-lhe, se bem que não seja sagrado, essa virtude eminentemente real: a sapientia. É verdade que, em compensação, Roberto acaba de afirmar o seu poder num outro desses refina, o ducado de Borgonha, a parte da nação borgonhesa que as partilhas carolíngias colocaram sob o domínio do rei da França ocidental. O duque Henrique morrera sem filhos, há mais de vinte anos. Era tio de Roberto, que pretendeu apoderar-se da herança, e que acabou por vencer as resistências. Em 1017, consegue, não fazer-se duque, mas colocar à frente do ducado um dos filhos. Depois multiplica as intervenções directas, profundas, eficazes: a pouco e pouco a Borgonha torna-se capetíngia. Mas não passa de um [Pg. 150] anexo, um mundo estrangeiro. O importante para Roberto é o seu próprio “reino”, a Francia, de que seu avô

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Estes textos foram de novo explorados por J. F. Lemarignier, Le Gouvernement Royal aux premiers temps

fora duque, o país dos Francos, ao norte do Loire, a oeste de Sens e da Lorena. Roberto já não conserva esta província. Alguns principados fortificaram-se na Flandres e em toda a região onde os piratas normandos se haviam instalado. Por este lado, tudo está perdido. O resto ameaça também escapar-se. Como travar o conde de Angers, sobretudo este, o mais indócil, que possui simultaneamente Blois e a Champanha?

Poder-se-ia crer que, na Francia, Roberto reina ainda como um Carolíngio, reunindo periodicamente à sua volta, nas grandes festas do Cristianismo, os poderosos dessa vasta região. Fé-1o na abadia de Chelles, no Pentecostes de 1008: os bispos foram quase todos, como outrora haviam ido ao apelo de Carlos, o Calvo: o arcebispo de Reims, o arcebispo de Tours, sete dos treze bispos da província de Reims e, entre eles, Adalberão. Em Compiègne, em 1023, a mesma afluência; o conde da Flandres, o duque da Normandia lá estão, os prelados eclesiásticos são mais numerosos ainda, o bispo Gerardo de Cambrai está presente, para deliberarem sobre a paz, a lex. Estas palavras são as mesmas que Carlos Magno ouvira. Mas é o fim. Investigando as assinaturas dos diplomas redigidos em nome do monarca, G.-F. Lemarignier conseguiu situar, com precisão, a mudança em 1028: nesta altura, Adalberão trabalhava no seu poema ou preparava-se para o fazer. Subitamente, as assembleias onde o rei escuta os conselhos dos seus, antes de pronunciar a sentença, mudam de aspecto. Já não há bispos nem condes, ou há-os excepcionalmente; apenas se vêem agora, em redor do monarca, homens de linhagem menos elevada, senhores de castelos e até simples cavaleiros. A muito venerável assembleia pública que, durante gerações, no país dos Francos do Oeste, fora garante da ligação entre o rei e o conjunto do seu povo, toma de súbito o aspecto de um conselho de família. O soberano aparece agora como um chefe de família entre outros, vivendo em privado com os parentes, os prebostes, os camaradas de caça e de combate, e pedindo aos seus comensais a garantia, pelo testemunho, dos actos que a sua – chancelaria promulga. Ao mesmo tempo, as fórmulas de tais actos despojam-se do aspecto de teatralidade herdada da grandeza carolíngia: o próprio diploma régio perde a solenidade que o distinguia das cartas privadas. 1024-1028-1031: é surpreendente a coincidência entre o enfraquecimento da monarquia e o enunciar da trifuncionalidade social.

Se os bispos da Francia já não se preocupam com a corte do monarca, é porque já não têm vantagens em fazê-lo. É agora patente que o Capetíngio não tem força para

proteger eficazmente os interesses da alta Igreja. Os bispos não têm outra hipótese. Devem tirar-se de dificuldades sozinhos. Os seus confrades do Sul do reino há muito que tomaram este hábito. Porque não iriam eles mais longe – conforme o faziam aqueles –, porque não se substituiriam ao monarca, uma vez que [Pg. 151] eram também sagrados, porque não assumiriam francamente a defesa da ordem terrestre? Pelo menos, discretamente? Perante o amontoar dos perigos – e o perigo mais premente, para os prelados, é verem-se sozinhos perante as forças laicas próximas- os duques, os condes, os castelões – verifica-se agora toda uma efervescência de projectos. No pequeno universo dos homens da alta cultura, convencidos de serem directamente inspirados, e continuando a encontrar-se, se não em redor do soberano, pelo menos noutras reuniões, cada um ouvindo-se a si mesmo e levado a contradizer os demais, divididos em associações, em clãs, vendo à sua frente os clérigos cada vez mais numerosos, os monges cada vez mais arrogantes; porque a Igreja – outro aspecto da perturbação geral – muda também de estruturas, instaura uma polémica ardente, fecunda. Propostas, contrapropostas. Subitamente, a invenção ideológica adquire ousadia. Em tal confusão, forjou-se o sistema de Adalberão e de Gerardo. Formaram-se articulações que reúnem, num corpo único, o tema da igualdade angélica, em resumo, o tema das três funções. Perante outros sistemas, denunciados no entusiasmo da controvérsia como armadilhas do Demónio, favorecendo a extensão da desordem. O modelo que deu lugar ao postulado trifuncional foi proclamado contra três modelos adversos, também eles construídos para remediar a fragilidade da realeza capetíngia, jogando com essa fragilidade e apostando nela: foi o modelo herético, o modelo da paz de Deus, o modelo monástico.

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