• Nenhum resultado encontrado

Unanimiter. Justamente por esta palavra se atenua, se camufla o que essa ordenação

implacável pode apresentar de terrífico. Para tornar suportável a disciplina, tolerável a desigualdade, é bom fazer crer que na sociedade cristã-tal como entre pais e filhos, entre novos e velhos, em todas as comunidades, no mosteiro como no palácio, na aldeia como nos grupos de combate – o amor une os corações. Concórdia. Um só coração. Por isso um só corpo onde cooperam todos os membros. A metáfora é de S. Paulo (Rom. XII, 4). Não vemos que os escritores carolíngios a tenham retomado de boa mente, por demasiada repugnância talvez para com o corpóreo. Bonifácio, num sermão sobre as ordens, faz-lhe apenas uma alusão: “No nosso corpo há uma só alma onde reside a vida; mas muitos são

os membros cuja função varia; assim sucede na Igreja, onde há uma só fé que, pela caridade, deve ser posta em prática por todo o lado, mas diversas dignidades tendo cada uma a sua função própria” 1. A ligação é, aqui, espiritual. O espírito caloroso, cuja fonte é o coração, fornece-lhe o equivalente simbólico: a caridade, a dilectio. Um século mais tarde, Walafrid Strabon arrisca-se a falar mais claramente: a “casa de Deus”, quer dizer a Igreja, a comunidade dos fiéis”, constrói se na unidade, pela união e o amor de cada

ordem; assim se constitui a unidade do corpo de Cristo; todos os membros põem em comum o fruto da sua função, para utilidade de todos” 2.

A metáfora, a falar verdade, vai e vem do corporal para o doméstico. Naturalmente. A célula principal desta sociedade não é pois a domus, a “mesnia”? Nesta casa, o amor mútuo, a troca afectuosa gera a coesão, suaviza o rigor dos deveres, ajuda a obedecer e a comandar e faz da disciplina uma comunhão. Da caridade nasce o acordo, essa harmonia [Pg. 089] que, como a da música, dispõe, em perfeita ordem, o desordenado. Da caridade nasce a paz.

Una domus, unum corpus. A unidade da sociedade humana-que o poema de Adalberão

apela a restabelecer -provém, tal como a saúde corpórea, tal como a prosperidade dos lares, da complementaridade, da reciprocidade dos dons. Desde o reinado de Carlos o Calvo, dir- se-ia que no espírito daqueles que, no Norte de França, reflectiam sobre o social, a imagem da família, da qual Deus seria o pai, ou antes o senior, tende a suplantar a imagem processional e militar. A tendência afirmou-se, sem dúvida, durante o século X, quando as

1

Sermo, IX, PL 89, 860.

2

Liber de exordiis et incrementis quarumdam in observationibus ecciesiasticarum rerum, MGH, cap. II, 515.

estruturas das linhagens se reforçavam na nobreza, quando o exército dos reis se desagregava em pequenos bandos adversos de camaradas. À experiência das relações de parentesco, das relações entre velhos e novos, vem juntar-se a outra, análoga, de vassalagem: união de corações também entre duas pessoas – ou melhor, entre um grupo de guerreiros e o seu chefe – e que estreita a mutualidade das permutas. Poucos anos antes do discurso de Douai e da redacção do Carmen, um outro bispo, um outro reitor, um outro aluno das escolas de Reims – Fulberto de Chartes – analisava, a pedido do duque da Aquitânia, o conteúdo da relação vassálica, pondo de acordo igualmente o seu discurso com as regras da retórica ciceroniana 3. A posição do homem que, pelos gestos da homenagem, se tornou “moço” (vassalus) de um “ancião” (senior) é semelhante à do, filho perante o pai: deve “servir”; mas em troca é remunerado: o afecto corresponde ao respeito, o “benefício” ao “serviço”. Em tudo, os dois homens devem retribuir igualmente 4. Mutuo in vicem

reddere. Mutualidade, mas numa organização hierárquica. Os laços mais fortes não unem,

na verdade, iguais. A distância entre os graus tonifica o comércio afectivo. O movimento nasce da diferença: esta alimenta aquele, estimula-o, acelera-o, pela complementaridade dos serviços. Porque o senhor, espécie de pai, é normalmente o mais sabedor e o mais rico, e porque o vassalo, espécie de filho, é normalmente mais vigoroso, é normal que o primeiro receba do outro o auxílio militar, o auxilio da segunda função, como compensação do que ele próprio fornece: o alimento, a paz, distribuindo feudos, mantendo assim na concórdia a coorte fogosa dos seus “homens”.

Se, ao reconstruírem o sistema ideológico, Adalberão e Gerardo acabam por sublinhar o papel da reciprocidade, não será porque estes dois bispos são também “senhores”, justiceiros, alimentadores, rodeados de cavaleiros que lhes prestam homenagem? O que desde a infância de ambos havia lentamente transformado a mais alta nobreza de onde saíam numa justaposição de linhagens, de companhias vassálicas, de “casas”, não os levaria a apresentar as relações políticas como relação de família? Não nos admiremos por ver, quando em 1025 se retomam as palavras de [Pg. 090] Agostinho e de Gregório, a imagem da entreajuda, que reflecte a permuta necessária de benevolência e de consolação que se estabelece entre o pai e seus filhos, entre o irmão mais velho e o mais novo, entre o senhor e os seus homens, entre o amo e os servos, projectar-se sobre a visão augustiniana de uma

3

C. Carozzi, 1, c.

4

procissão a caminho da Salvação, sobre o conceito gregoriano de “concórdia”, de “contextura”, artificialmente aplicado a relações de sujeição. A casa dos nobres era, na verdade, o lugar da disparidade, das precedências, das categorias sobrepostas, dos diferentes ofícios necessariamente coordenados. No século IX, Dhuoda, essa matrona, essa dama da mais alta aristocracia, recomendava ao filho, quando este atingiu a idade perfeita, que “dispusesse da sua casa em proveito de todos, segundo os graus legítimos” 5 e assim

mantivesse, como no paço real, um benéfico equilíbrio entre os múltiplos serviços. A casa senhorial, quando bem governada, unida por mútua afeição, dá o exemplo da ordem perfeita. [Pg. 091]

[Pg. 092] Página em branco

5

Documentos relacionados