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“Cada um na sua ordem”: quando se escolheu a palavra ordo para traduzir para latim

o texto das Epístolas de Paulo, ela tinha dois sentidos. Na república romana, segundo a

ordo, os homens adultos dividiam-se em grupos distintos, para melhor desempenharem o

seu papel 1: primeiro, combater (a ordo é um grupo de soldados de infantaria reunidos em filas cerradas, que se desdobram na batalha); depois, gerir a coisa pública (a ordo é um grupo formado por pessoas registadas oficialmente numa lista organizada por magistrados especializados). A ordenação é, pois, na sua origem, uma inscrição. Este acto legal, público, este rito – este é um dos sentidos que a Igreja medieval atribuiu à palavra ordo – confere ao indivíduo um estatuto, sem relação necessária com a fortuna ou o nascimento. A ordenação une, ao mesmo tempo que separa. A ordo acaba, pois, por designar um corpo privilegiado, isolado do resto, investido de responsabilidades especificas, manifestando a sua coesão, a sua superioridade, a sua dignidade pelo lugar que se atribuía nos desfiles religiosos, militares e cívicos 2. Este é o primeiro sentido. O segundo é abstracto. Por ordo entende-se a organização justa e boa do universo, aquilo que a moral, a virtude e o poder têm por missão manter. Cícero, no seu tratado Das funções 3, fala assim da “ordem das coisas” 4;

para ele a “preservação da ordem” – a modéstia – é a arte de “pôr no devido lugar o que

se faz e o que se diz”. Retórica, política: colocar convenientemente as palavras – ou os

homens – umas em relação às outras, compor os elementos de um conjunto nos lugares apropriados – predestinados; [Pg. 093] porque há um plano anterior, imanente, imutável desta forma de ordenação, plano que convém descobrir pela reflexão, para que tudo se conforme com ele.

A palavra entrou, tal-qual, na patrística latina e em especial no pensamento de Gregório e de Agostinho, em quem Gerardo e Adalberão dizem ter-se inspirado. Agostinho desenvolve o sentido abstracto ao longo de toda a sua obra, desde o De ordine (“é pela ordem que Deus chama a ser tudo o que existe”) até à Cidade de Deus, onde a ordem é, por um lado, entendida como paz (“a paz de todas as coisas, a tranquilidade da ordem”) e, por

1

C. Nicolet, “Essai d'histoire sociale: l'ordre équestre à la fia de la république romaine”, Ordres et Classes (colóquio de história social de Saint-Cloud), 1973.

2

P. Kühler, “Ordo”, Pauly-Wissowa, nova edição abreviada, Estutegarda, 1935, 35, 930-934.

3

De Officiis, I, 4.

4

19, 13 (Nota dos digitalizadores: a edição original n especifica o local desta nota. Optamos por inseri-la aleatoriamente)

outro lado, a via que conduz a Deus (a virtude é chamada ordo amoris, o amor segundo a ordem). Do conceito agostiniano procede toda a moral sociopolítica dos bispos carolíngios, a noção de uma ordenação que a “sageza” pode discernir, estabelecendo as justas relações de autoridade e de submissão entre os homens. Para Jonas de Orleães, por exemplo, “Os

chefes não devem crer que os subordinados lhes são inferiores pela natureza do seu ser; são-no pela ordem” (a oposição ordo-natura forma, como sabemos, um dos fundamentos

do sistema de Adalberão). A ordem é, pois, o fundamento sacralizado da opressão.

Quanto ao sentido concreto, Tertuliano já o havia retomado: a “autoridade da Igreja

institui – diz ele – a diferença entre a plebe e a ordem 5“: tal como os magistrados de

Roma, a Igreja separa da massa, pela ordenação, o clero, tomado como corpo privilegiado. A única “ordem” – e assim será para Adalberão. Todavia, muito por alto, porque, abstractamente a ordem é o arranjo da diversidade; ordo, no seu sentido concreto, torna-se plural, designando cada um dos vários graus de uma hierarquia. Para aqueles cuja preocupação prática era a boa organização da Igreja – precisamente o caso de Gregório, o Grande –, ordo torna-se sinónimo de grados. Os pastores do povo fiel consideraram que há, entre os homens, ALGUMAS ordens, diversas e não apenas na instituição eclesiástica. Que se deve ordenar os laicos segundo dignidades, categorias, porque pelos seus méritos alguns são elevados acima dos outros, precedendo-os na procissão, mostrando-lhes, a exemplo dos clérigos, o caminho, o exemplo: estes melhores formam “ordens” – para Tertuliano era o caso das viúvas e dos monogâmicos 6.

Os moralistas carolíngios encararam pois a ordem da ecclesia, da comunidade cristã, desse exército em luta contra o mal, em marcha, ou imobilizado no momento que antecede a batalha, como o resultado da combinação de uma multiplicidade de ordens. Antes de Hincmar, antes de Leão III, antes de Alcuíno que nele se inspirou, dois séculos e meio antes de Gerardo e de Adalberão, Bonifácio, anglo-saxão e monge beneditino, a duplo título filho espiritual de Gregório, o Grande, já o havia claramente afirmado no sermão que há pouco citei: “Na Igreja há só [Pg. 094] uma fé que pela caridade deve ser praticada por toda a

parte; mas há diferentes dignidades, cada uma com a sua função determinada: há uma ORDEM dos que comandam e uma ORDEM dos comandados, uma ORDEM dos ricos e uma ORDEM dos pobres, uma ORDEM dos velhos e uma ORDEM dos novos (a ordem, ao

5

De exhortatione castitatis, PL, 2, 922.

6

intervir para modificar a natureza, introduz assim um triplo jogo de proeminência, derivando um do poder, e outro da riqueza e o último da idade), tendo cada um o seu

caminho próprio a seguir, tal como no corpo cada membro tem a sua função”. Bonifácio

espraia-se, mas somente a propósito de uma dessas ordens, a dos chefes. Os ouvintes da exortação que pronuncia pertencem a esta ordem: é preferível mostrar a sua organização, que engloba várias funções: “O dever dos bispos é proibir o que é mal, amparar os que

fraquejam, levantar os que se afastam do caminho direito; vem seguidamente o cargo do rei, que deve ser motivo de temor entre os povos, porque “não existe poder que não venha de Deus”; assim também os ricos e os juízes, que são delegados do rei, devem ser leais, humildes, generosos; devem julgar com equidade e não de acordo com os presentes recebidos, proteger as viúvas, os órfãos, os pobres, devem ser submissos aos bispos, não exercer violências sobre ninguém, não procurar riquezas injustas, dar aos indigentes em vez de tirar a outrem.”

Diversas ordens. Contudo, a palavra ordo não designa somente cada uma delas; exprime também esse exercício da autoridade que as distingue e coordena. Em cada ordem há diferentes tarefas, diversos ofícios, hierarquizados. Esboça-se já uma ternaridade. Mas, na única ordo que conta, a da direcção, os bispos não se confundem com os príncipes temporais, que lhes estão obrigatoriamente submetidos; na linha de partilha está o rei; Bonifácio não diz expressamente que também ele deva obedecer aos bispos, contudo ousa mostrar de maneira clara que ele vem “depois”. De um lado e outro do rei estão já os

oratores e os bellatores. É evidente a filiação entre o que em 750 proclamava o discípulo

de Gregório, o Grande, aquele que reformou a Igreja franca segundo um modelo beneditino e pontifical e o que proclamaram Gerardo e Adalberão. No entanto, mais discretos no emprego que fazem da palavra ordo. Apenas a usam a propósito do que é sagrado no campo social: os servidores de Deus e os monarcas. Jamais o aplicando aos que, na ordem geral, assumem funções carnais. Insistindo, em contrapartida, na distribuição dos ofícios. Falando deles, mais alto, de três funções. [Pg. 095]

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