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IV – FUNÇÕES: ORAR E COMBATER

Não falam de duas, como os seus antecessores. Porque Bonifácio, por exemplo, utilizava a ternaridade para descrever os fundamentos da desigualdade; via como Gregório, o Grande, a humanidade dividida em dois planos. Distinguindo os que dão as ordens, daqueles que as executam, separava os que, colocados à frente (pre-positi) abrem a marcha e condescendem em amar, daqueles que atrás, ou melhor, abaixo (sub-diii), procuram segui-los, cheios de um respeito prestes a transformar-se em terror. A quem olha ingenuamente o espectáculo no universo social, revela-se a predominância de uma série de oposições binárias. Que se vê? Escravos e senhores, velhos e novos, primogénitos e benjamins; para não falar na subordinação natural, tão natural que nenhum discurso sobre a desigualdade se dá ao cuidado de evocar, da subordinação da mulher ao homem, seu “senhor”.

Uma destas bipartições retivera a atenção das pessoas de alta cultura que, na época carolíngia, se interrogavam a respeito da ordenação das coisas – e de quem Adalberão e Gerardo são os herdeiros directos (tal como o Senhor de Torquat é, menos conscientemente, o herdeiro de Loyseau: tenhamos presentes no espírito esses fenómenos de filiação e de persistência que intervêm de maneira tão decisiva na lenta evolução das formações ideológicas e cujo entrelaçamento não é fácil de desenredar). Faziam parte da Igreja. Para eles, a sociedade cristã achava-se dividida em duas partes: a “ordem” e a “plebe”, conforme dizia Tertuliano. E esta estrutura fundamental, instaurada pela lei divina, reflexo da ordenação profunda que separa o céu e a terra, o espírito e o corpo, refractava-se, por sua vez, sobre a ordem dos “prelados”, dos “reitores”, dos dirigentes, impondo que se distinguisse os chefes da Igreja, os bispos, e “vindo a seguir”, como diz Bonifácio, os chefes do povo. De tal maneira que acaba por tratar-se de duas formas de classificação binária que se entrecruzam, sobrepondo os defensores do poder aos outros e impondo o clero ao povo. Dois graus, duas funções. Mas a segunda distinção [Pg. 097] apaga-se no mais alto grau da escala; no céu, tal como o vê Gerardo de Cambrai, Jesus Cristo que, por estruturas de parentesco, permanece submisso a seu Pai e assume, ao mesmo tempo, o ofício de Sacerdote e o ofício de Rei.

Sobre a separação das duas funções, a do padre e a do rei, assentam todas as concepções da ordem sociopolítica de que conservamos os traços e que, retomadas pelos

prelados carolíngios, atormentam o espírito de Gerardo e de Adalberão. Os historiadores actuais, que se ocupam destes problemas, chamam-lhe “gelasiana”. O papa Gelásio (492- 496) enunciou-a, com efeito, perante o imperador Anastácio: “O que principalmente rege o

universo é duplo; a autoridade sagrada dos pontífices e o poder real.” 1 Duas pessoas, dois papéis; dois campos de acção; duas ordens, que a “modéstia” deve distinguir – conforme o repete Gelásio seguindo Cícero: modestia utriusque ordinis. Dois ofícios, autónomos embora solidários: os imperadores precisam dos bispos para a sua salvação eterna; os bispos esperam dos imperadores a paz na terra. Contudo, não são iguais: as duas palavras que servem para designar cada um dos dois poderes, auctoritas e potestas, marcam a hierarquia; ela liga-se a essa orientação do universo que, colocando no alto o céu e em baixo a terra, estabelece a precedência do sacerdócio. A cisão cava-se assim entre os chefes. Mas prolonga-se através da sociedade inteira, pois que não são escravos, que são livres, membros da cidade, acham-se pois ordenados em dois grupos separados, conforme usam ou não armas: entre os cidadãos, uns combatem; e os outros cooperam, de outro modo, desarmados, na manutenção da ordem divina.

Depois que as migrações de povos militarizaram tudo o que no universo romano escapava à escravidão, o limite entre as duas funções tornou-se, simultaneamente, tão necessário e tão frágil que os estudiosos de meados do século VIII – fundava-se então o Estado carolíngio – se esforçaram por fortalecê-lo através da palavra. No concílio que em 742 trabalhava na reforma da Igreja franca, Bonifácio manda que se proíba

“terminantemente aos servos de Deus que usassem armas ou combatessem ou ainda participassem em cavalgadas e em hostes” 2. A partir daqui vemos que, ao falar-se dos

dirigentes, se estimulava a substituição dos termos antinónimos auctoritas-potestas, clerus-

populus, por um outro par: oratores-bellatores. Em Cícero, encontravam-se as duas

palavras, associadas 3. Sabemos o uso que delas iriam fazer Adalberão e Gerardo. A partir de 747, se não os dois substantivos, pelo menos os dois verbos que lhes correspondem, estão no âmago de um discurso político, simétrico do [Pg. 098] discurso de Gelásio que o papa Zacarias fez a Pepino, o Breve 4: “Aos príncipes, aos homens do século e aos

1

Schwanz, Publizistische Sammiung zum acacianischen Schisma, Munique, 1934, p. 7 e ss.

2

MUG, Epist. 3, 56.

3

Tusculanes, IV, 24

4

A palavra ordo não figura aqui, ao contrário do que E. Delaruelle deixaria crer, “Essai sur la formation de l'idée de croisade”, Boletim de literatura eclesiástica, 1944: “En relisant le De Institutione Regia de Jonas d'Orléans”, Mélanges Halphen, 1951.

guerreiros (bellatores) cabe o cuidado de vigiar a astúcia dos inimigos e defender o país: aos bispos, aos padres e aos servidores de Deus, cabe agir por meio de conselhos salutares e orações – para que, graças a Deus, nós orando (oratibus), aqueles combatendo

(bellantibus), o país permanece livre.”5 Estas palavras ficaram. Perante o papa Leão III,

Carlos Magno não as escuta: di-las ele próprio. Para afirmar agora que só a ele cabe conduzir os negócios terrestres, relegando o papa para a oração.

A fórmula exprime o que foi o ideal político carolíngio. Ideal que, por principio, é monárquico. Na terra – como no céu – só reina um. Ocupa aqui o lugar de Cristo, como Ele desempenhando as duas funções, actor único desempenhando dois papéis, encarnando duas personagens (personae). Isto lembram os bispos francos ao imperador Luis, o Piedoso, em 829 6, quando se referem expressamente ao papa Gelásio: “O corpo da comunidade está

repartido principalmente entre duas pessoas eminentes e porque o corpo do rei é ele próprio dividido e porque esta duplicidade inicial se difunde por todo o corpo do povo de Deus.” Nisto reside o essencial: bífrons, o soberano, sagrado, o ungido do Senhor, encara

dos dois lados os que ele próprio dirige, para a direita e para a esquerda; e é este duplo olhar, são os mandamentos proferidos de um lado e do outro que determinam a divisão da sociedade, pelo menos da sociedade que interessa, a parte da humanidade não escravizada. A ideia impõe-se na Francia do século IX. Oiçamos o que diz Wala: “Só existe uma

comunidade, embora o seu Estado seja administrado segundo duas ordens” 7 (828-829).

Oiçamos também Walafrid Strabon, ao falar de “cada uma das ordens”, cuja união e amor mútuo fazem a unidade da “casa de Deus” 8. Oiçamos Hincmar de Reims, que parte deste

conceito para descrever o palácio real: duas ordens, duas funções, duas categorias de serviços, duas milícias. Admoestando o rei em 833, como dois séculos mais tarde fará Adalberão, Agobardo, bispo de Lyon, cujo discurso é talvez a mais exacta prefiguração do

Carmen, recomenda que se esteja atento “perante as perturbações da época, para que estejam a postos cada uma das ordens, a militar e a eclesiástica, quer dizer, aqueles que servem na milícia do século e no ministério sagrado, uns combatendo pelo ferro, outros discutindo pelo verbo” 9. O ferro, o verbo; as armas, a palavra. Chegámos ao ponto

5

Codex Carolinus, MGH, Ep. K. Aevi, 480.

6

MGH, Leges. II, 2.

7

Incluído na sua biografia por Paschase Radbert, PL 120, 1609.

8

Liber de exordiis (841), MGH, Cap. II, 515.

9

desejado: uns combatem, os outros oram. [Pg. 099]

Todos podem ver esta dualidade com os próprios olhos. Na ordenação das cerimónias: quando os reis do século IX são sagrados em Reims, os dignitários laicos sentam-se à sua esquerda e os dignitários eclesiásticos à sua direita – do lado melhor: Cristo senta-se à direita do Pai 10. Ora, uma vez que cabe aos oratores ensinar os outros, indicar aos bellatores onde está o bem e onde está o mal, erigir proibições em sua intenção, instituir valores – esta tarefa prepara o advento de uma nova ordo destinada a tomar lugar junto da das viúvas, dos monógamos, junto dos clérigos: trata-se da ordem dos guerreiros. O rei, claro está, é a personagem-modelo desta categoria ético-social. Porque se o rei,

principaliter, acumula as duas funções, um dos seus papéis, uma das suas personalidades, a

guerreira, com o entusiasmo da sua “juventude”, o peso da sua carne, separa-o dos clérigos e inclina-o irresistivelmente para a esquerda, para a terra, para o combate. O monarca dirige a outra coorte, a temporal; isto mesmo no-lo mostram os pintores, enquanto foi tradição representar a ecclesia por figuras humanas, colocando uns atrás do papa, os outros atrás do imperador 11.

E quando Sedulius Scot, no seu Tratado dos Dirigentes, traça a efígie simbólica do monarca, representa-o pacífico, na vasta sala do palácio, como o que há de mais belo no mundo visível, como o Sol e como o mar, sozinho, sentado, imóvel, recebendo dádivas, distribuindo benefícios às mãos cheias – e os seus deveres são de justiça e de generosidade. Mas se é generoso, se é justo, se dele emana a paz, é porque primeiramente se bateu bem. O seu dever “principal” é conduzir a guerra, “mais necessária aos homens que o repouso: a

paz adormenta, a guerra excita a virtude”. Missão máxima: Zacarias atribui-a àquele que

considerar o verdadeiro rei do povo franco. Os “espelhos dos príncipes” atribuem-na, no século IX, a todos os “nobres”.

Aos homens que, não sendo da Igreja, se dedicam contudo a dirigir os outros homens. As duas funções são funções de comando. Para a alta cultura carolíngia, há um campo do poder, dividido em duas áreas distintas. Esse campo não abrange, no entanto, todo o espaço social. Alcuíno, em finais do século VIII, dizia já claramente – o que para os estudiosos seus amigos era desnecessário – que nem todos os laicos são guerreiros, apelando para o clero de Kent para que corrigissem os seus costumes, a fim de que “os laicos que são os

10

W. Ullmann, The growth of legal government in the Middle Ages, Londres, 1955, p. 143.

11

vossos guerreiros se tornem fortes para vós e que o povo entre assim no caminho da Salvação” 12. Os clérigos, os guerreiros, o povo. A bipartição funcional só divide em dois

corpos os rectores. Deixa de lado os submetidos. No esquema gelasiano, dualista, [Pg. 100] inscreve-se a tripartição, essa “divisão entre as três espécies” que Loyseau julga ser sempre a mais perfeita. Nem todo o jogo se joga a três; “toda a interacção social é, por essência, triangular e não linear”; mesmo que a defrontação seja um duelo, este processa-se perante espectadores e “o papel das testemunhas pode transformar-se, de um momento para o outro, no de actores – o que efectivamente se passa em Douai, em 1024-1025, quando o bispo Gerardo e o Conde da Flandres discutiram perante numerosa assistência e em que cada um dos antagonistas, voltado para o “povo”, se esforçava por atraí-lo para si – e em inúmeras tríades encadeadas que constituem uma sociedade, existe uma constante alternância de pares activos e de alianças dominantes” 13. O único manuseio do conceito legado pela moral política do século IX levava a dividir em três o campo social: os detentores da “autoridade”, encarregados de conduzir o combate espiritual, os detentores da “força”, encarregados de dirigir o combate temporal e, finalmente, os “servos” ou os “escravos”

(servi), que não usam a espada, emblema do poder, nem oram e só têm o direito de estar

calados e o dever de obedecer, passivos, submissos. Adalberão dirá algo de diferente? [Pg. 101]

[Pg. 102] Página em branco

12

MGH, Ep. K. Aevi, 191-192.

13

V – TERNARIDADE

Adalberão diz a mesma coisa. Mas afirma, sim, expressamente, a ternaridade da partilha. Uma tripartição – e esta não era a que comummente usavam os pensadores da Igreja latina, desde a antiguidade tardia.

Dividir os fiéis da ecclesia em três grupos era-lhes com efeito habitual. Mas não o faziam em função da acção, de tarefas desempenhadas, de ofícios assumidos, de serviços mutuamente prestados. Faziam-no em função dos méritos. Ordenavam a procissão para a Salvação, guiada pelos melhores, segundo um modelo ternário, os mais puros, os menos diferentes dos anjos, caminhando naturalmente à frente. Ora esta ordem difere radicalmente da ordem política que a fórmula gelasiana enuncia: o critério não é o uso das armas, mas sim o uso do sexo. Por conseguinte, a representação, ao contrário da outra, inclui tanto as mulheres como os homens. Diferença fundamental. Ela não impediu que as duas maneiras de dispor as pessoas se aproximassem, interferissem na memória dos pensadores e nos discursos que construíram. Durante gerações, este jogo atraiu, pouco a pouco, irresistivelmente, o sistema de divisão moral, explicitamente ternária, para o masculino, para o social e para o funcional. É inegável que a afirmação da trifuncionalidade social, no limiar do século XI, foi facilitada pela larga presença da outra figura tripartida, pelo seu desenrolar, pelos retoques que vieram modificar, em certas passagens da sua transmissão, a noção de uma hierarquia ternária dos méritos.

À partida temos sempre Gregório, o Grande, e Santo Agostinho. Precedidos, contudo, por S. Jerónimo que, no seu tratado Adversus Jovinianum, elogio da castidade e reprovação do matrimónio, distingue três graus de pureza sexual: os virgens, os continentes, os casados 1

. Agostinho e Gregório desenvolveram o tema. Assim, Santo Agostinho, meditando sobre

[Pg. 103] os três “justos” do Antigo Testamento, Noé, Daniel e Job, os três modelos

exemplares que Ezequiel propõe, XIV, 14, classificou os membros da comunidade cristã em três “géneros”: os dirigentes -que devem a sua proeminência à pureza-, os continentes e os fiéis casados 2. Gregório, o Grande, seguiu-o, repetiu-lhe a afirmação nas Moralia I, 14

3

. Todavia, falando de “ordens” e não de “géneros”; e sobretudo foi preciso. A precisão, a

1

PL, 23, 213-214.

2

G. Folliet, “Les trois catégories des chrétiens. Survie d'un thème augustinien”, Année Théologique augustinienne, 1954, 77-96.

3

explicitação que acrescenta é decisiva. Esboça a sequência do esquema. Quem são os dirigentes? Os bispos. Quem são os continentes? Os monges. Quanto aos últimos, os “bons” casados – há portanto os maus –, o seu papel no mundo é trabalhar. Retomando a ideia numa homilia 4, Gregório tenta construir, sobre esse esboço, as próprias formas em que Gerardo e Adalberão iriam inserir, cinco séculos mais tarde, a figura trifuncional: com efeito, ele insistia em dois pontos: na hierarquia e na unanimidade: “Se bem que estivessem

distantes da excelência dos prelados, os que são continentes e se calam (para Gregário os

monges vivem no silêncio: não são oratores) e que a eminência dos continentes os torna

muito distantes dos casados, a grandeza dos três é una, porque, se há grande diversidade de méritos, não há distâncias na fé para a qual uns e outros são arrastados”.

Os estudiosos dos países francos apoderaram-se desta tripartição, a partir do advento do renascimento carolíngio. Era directamente útil. Permitia abrir lugar, na sociedade da

Francia, a esse corpo perfeitamente distinto, coerente, autónomo, autêntica ordo, integrado

num. propósito, numa regra, numa disciplina: o monaquismo beneditino. Este nascera no tempo de Gregório, o Grande, pela tentação que se apoderava do Ocidente de refugiar-se na continência e no silêncio; implantara-se, mais solidamente na ilha da Bretanha; daí tinham vindo precisamente os homens que, no século VIII, como Bonifácio ou Alcuíno, trabalharam na reforma da Igreja franca para a tirarem da incultura. Foi indubitavelmente durante esta reforma que se formulou, de maneira clara, a ideia que contêm em si ressonância das palavras de Jerónimo, de Agostinho e de Gregório, o Grande: dentro da instituição eclesiástica, quer dizer no mais alto das duas ordens de que falara o papa Gelásio, devem distinguir-se dois estilos de vida, duas maneiras de servir. Desde 751, o concílio reformador de Ver prescrevia, no seu cânone 11.º, que “uns fossem, nos mosteiros,

a ordem regular e outros a ordem dos cónegos, sob o domínio dos bispos”. Duas ordens. É

sem dúvida já, embora não expresso, o sonho de regularizar os restantes, isto é os laicos, os que derramam o seu sangue nos combates, os que escorrem suor nos trabalhos servis, os que dormem [Pg. 104] com mulheres e fazem filhos, para deles fazerem Jobs, “bons cônjuges” e reuni-los, a todos também, numa ordem.

Com tal finalidade, os bispos, duas gerações mais tarde, no auge do “renascimento” cultural, começaram a compor “espelhos”, tratados da boa vida em intenção dos laicos, propondo-lhes deveres, missões específicas. O bispo Teodulfo de Orleães, num poema

4

sobre os hipócritas, afirma haver duas ordens, a clerical e a monástica, a que se junta a “plebe popular”; mas reconhece que se trata, de facto, de três ordens reunidas por uma só fé. E Jonas de Orleães atribui a função de justiça (já) à ordo laicorum. O esforço tenaz dos prelados francos, apoiados por Luís, o Piedoso e por Carlos, o Calvo, essa tentativa insensata de arrancar a sociedade inteira à selvajaria profunda em que vivia, de pôr os homens em categorias para os manter tranquilos, inscrevia-se pois, naturalmente, num quadro tripartido. Por isso, quando o mundo ocidental foi retomado pelas atribulações, invadido no século X pela violência e a rapacidade, quando pareceram, como bons mosteiros os dois séculos antes, como ilhéus entre os tumultos, cidadelas da perfeição resistindo aos assaltos do mal – a configuração ternária e hierarquizada da ordem moral impôs-se mais fortemente que nunca. Ao aproximar-se o ano mil, ela alimentou todas as esperanças de reforma. Quando o bispo Burchard de Worms tenta reter, no estado clerical, os melhores dos seus cónegos atingidos pelo “desprezo pelo mundo”, refere-se aos três graus de mérito 5. Para percebermos com que força, no tempo das Gesta episcoporum

cameracensium e do Carmen, se impunha esta forma de dividir os homens, não entre

funções – os que oram, os que trabalham, os que combatem – mas entre ordens – monges, clérigos e laicos –, creio ser bom ouvirmos, depois de Adalberão e Gerardo, dois homens que acabavam de falar, após haverem falado os bispos de Laon e de Cambrai: foram eles Dudon de Saint-Quentin, um clérigo, e Abbon de Fleury, um monge.

Dudon de Saint-Quentin

Entre 1015 e 1026, Dudon compôs o livro intitulado Costumes e Actos dos Primeiros

Duques da Normandia 6. É, na França do Norte, a primeira obra retórica que não conta a

história da casa real, mas a de uma dinastia de príncipes. O que chamamos feudalismo é também isto: o [Pg. 105] fraccionar da monarquia que não só estabelece, em cada província, um poder autónomo, como também, por um movimento mais profundo, arranca ao soberano o monopólio de certas virtudes, de determinados deveres, de alguns atributos culturais, para com eles adornar a pessoa de chefes locais que não são sagrados 7. Dudon

5

Vita Burchardi, escrita na mesma altura das Gesta, MGH, SS, IV, 840, citado por J. Batany, “Abbon de Fleury et les théories des structures sociales vers l'an mil”, Etudes ligériennes d'Histoire et d'Archéologie

médiévales (colóquio de S. Benedito-sur-Loire, 1969), Auxerre, 1975.

6

Ed. Lair, Mémoire de Ia Société des Antiquaires de Normandie, XXIII, Caen, 1865.

7

era cónego 8; vinha do Vermandois, velha região franca; a sua cultura era a que a escola de Reims difundia e de que os livros conservados em Laon e Cambrai constituíam os alicerces. O seu lugar seria junto do rei de França, a fim de o ajudar com o seu saber, cantar na sua capela, trabalhar para a sua glória: veio servir em Rouen o “duque dos piratas”. Na altura precisa em que Roberto, o Piedoso, em assembleias como a de Compiègne, se esforçava por restaurar a paz, em que Gerardo resolvia mandar redigir as Gesta, em que Adalberão pensava compor o seu poema, Dudon executou a encomenda de Ricardo I, conde dos Normandos. Desempenhou a sua missão à sombra do príncipe, informando-se junto dos seus parentes, alimentado em casa de seu irmão, o arcebispo, entregando por fim a obra ao

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