• Nenhum resultado encontrado

Nunca será demasiado repetir que a visão dos dois bispos francos é grandiosa. O que em Wulfstan é apenas marginal – e isto, seguramente, tirado do pensamento carolíngio – torna-se em Gerardo e em Adalberão a peça essencial do seu edifício teórico. A missão da realeza, o lugar do bispo, intercessores, reveladores, discursadores; a ordem, as relações entre os três campos da actividade humana, tudo deriva de uma estrutura primordial, aquela que estabelece, em isonomia, o visível e o invisível, o reino capetíngio e a cidade celeste. Com Cícero no Sonho de Cipião – Adalberão e Gerardo conheciam-no bem por haverem lido Macróbio- eles acham dever ligar a ordem política à das estrelas.

Mas também aqui, o caminho por que enveredam está de há muito traçado. Imitavam perfeitamente toda uma longa procissão de antepassados. Já Alcuíno – quem sabe o que Alcuíno conseguira transmitir da cultura própria das ilhas britânicas? –, a propósito da monarquia terrestre, e para estreitar o seu vínculo com o divino, pusera, como princípio, a identidade das duas cidades. Contudo, tal como Alcuíno, Adalberão e Gerardo sonhavam com o Além a partir dos textos que todos os seus antecessores haviam lido e meditado. Gregário, o Grande – ao comentar Ezequiei, o visionário, ao invocar o “exemplo” das milícias celestes – e sobretudo Agostinho, que havia ido mais longe, não se limitando a procurar no céu um modelo, mas imaginando a interpretação deste mundo e do outro. Escreve ele: a população da cidade de Deus é principalmente constituída por anjos; todavia,

“continua a juntar-se ai uma parte, escolhida entre os homens mortais, que irão unir-se aos anjos imortais”. Colonização do Reino pela espécie humana – e para Agostinho, a

única justificação do acto procriador está em que ele alimenta continuamente esta espécie de migração. Pensar deste modo é proclamar que o véu das aparências é poroso, que a fronteira entre o espiritual e o carnal é naturalmente atravessável: Adalberão adopta a ideia, quando mostra a humanidade parcialmente envolvida no eterno. Agostinho, com efeito, não fala apenas de mortos, [Pg. 135] mas também de vivos: “Actualmente, esta parte peregrina

pela terra, em vagueio, em viagem migradora, como acontece com o homem do ano mil,

deslocando-se continuamente para o combate, para a feira, para as frentes pioneiras do arroteamento, para a aventura – à maneira mortal, ou repousa na pessoa dos que já

passaram a morte e ocupam lugares misteriosos, o repouso secreto das almas”.

os coloca a larga distância de Alcuíno e de todos os ingleses, Adalberão e Gerardo, não só esgotaram as fontes gregorianas e agostinianas, como a inspiração que lhes vem principalmente de Dinis, o Areopagita.

Os Actos dos Apóstolos, VIII, 34, referem que S. Paulo em Atenas converteu esse

Dinis, de quem foi professor. Fácil seria supormos Paulo falando ao discípulo acerca do que vira, transportado ao terceiro céu. Podíamos pois considerar Dinis como beneficiário dessa luminosa revelação feita por um perfeito conhecedor do outro mundo. Foi assim, apropriando-se da autoridade e do pseudónimo de Dinis, o Areopagita, que um grego compusera dois livros, em finais do século: Da hierarquia celeste e Da hierarquia

eclesiástica. Ora, para Adalberão e Gerardo – para toda a gente – esse Dionisos era o

mesmo de Montmarte, o confessor da fé, o mártir cuja sepultura os monges de Saint-Denis guardavam e que, como os dois prelados, fora bispo. Protector particular do reino de França; toda a Gália beneficiará dessa “luz esplêndida do Verbo divino”. Recorda-se isto no prefácio de um privilégio que o rei Roberto, o Piedoso – sempre ele – concedeu, em 1008, à abadia de Saint-Denis 1. O melhor destes privilégios -lê-se aí – reservara-o Dinis para os reis francos. “Aqueles, dentre eles, que prestaram serviços ao mártir de Cristo, que

se preocuparam com o seu culto, foram exaltados na Glória e no poder real, enquanto que os que O desprezaram perderam a vida e o reino” – e com tais palavras justificava a

usurpação dos Capetíngios, cujos antepassados, os condes de Paris, os duques de França, haviam sempre venerado Dinis: haviam escolhido, antes da transferência dinástica de 987, a abadia de Saint-Denis para necrópole.

Quem quer que evocasse Dinis, no tempo de Gerardo e de Adalberão, regressava deliberadamente às origens francas, regressava a Clóvis, à sua descendência, afirmava como que um direito de primogenitura da Francia, uma herança, uma continuidade de cultura, e repelia para os confins do reino da Germânia – e também para as ilhas, para a Bretanha- proclamando a primazia capetíngia. Para calcular o valor que se atribuía às relíquias de S. Dinis, a esse tesouro que a Ilha de França conservava, devemos recordar que os alemães sonhavam apoderar-se desses despojos e transferi-los para a Alemanha. Em 1049, na altura de reconstrução do coro de Saint-Emmeram, em Ratisbona – Ratisbona, a cidade principal [Pg. 136] dos imperadores sálios e Saint-Emmeram, o seu mosteiro –, descobriu-se um túmulo antigo. E logo se começou a propalar que era o túmulo do santo,

1

que o rei Arnoulf depositara ali as suas ossadas, ao regressar de uma vitoriosa campanha no país dos Francos do Oeste. Lenda. De facto, no limiar do século XI, fazer referência aos escritos que se atribuíam a Dinis, era também falar desta deslocação que, lentamente, desde a eleição de Hugo Capeto, transportava de Reims até Fleury-sur-Loire, até Saint. Denis, em França, a sede da cultura sacra.

Do pseudo-Dinis, o Areopagita, a “França” conservava o corpo, que repousava em Paris. Conservava igualmente os seus livros. O imperador de Bizâncio ofereceu deles um exemplar a Luis, o Piedoso, vira-se neste gesto uma restituição legítima. Os dois livros “Acerca do principado angélico e do principado eclesiástico” – conforme escrevera Gerardo de Cambrai, latinizando “hierarquia” em principatus – haviam primeiramente sido traduzidos para a língua latina por Hinduin, abade de Saint-Denis e arquicapelão do imperador, e mais tarde, muito melhor, por ordem de Carlos, o Calvo, ele próprio abade de Saint-Denis desde 867, por João Scott conhecido pelo Irlandês, que dirigia a escola do paço, sabia grego e elaborou da obra um comentário. No principio do século XVIII, a biblioteca episcopal de Laon conservava um manuscrito dessa tradução; o catálogo diz que o códice é “muito antigo”, o que quer dizer anterior ao século XI. Adalberão teve-o pois perto de si 2

. A influência deste texto na corte de Carlos, o Calvo, fora prodigiosa. Fez com que se implantasse, no imaginário dos eruditos, uma representação do paraíso que os pintores se esforçaram por representar (como no folio 5 v.o de um Sacramentário ilustrado do ano de 870, sem dúvida para Saint-Denis) 3. Contribuiu para atrair a atenção para os anjos, alargando o seu lugar nos exercícios da piedade, ajudando S. Miguel a desalojar pouco a pouco o Salvador das capelas altas para a parte superior dos pórticos. Fez com que os sonhos escatológicos se estabelecessem mais solidamente no inefável, na ordem. Libertou- os, durante mais de um século, do dramático e da gesticulação. Foi graças à leitura dos tratados dionisianos que a Jerusalém celeste pôde aparecer verdadeiramente como “visão de paz”, modelo dessa ordenação que se forçava os reis a manterem na terra. Em todo o caso, estou certo, aquilo que vemos de exaltação no sistema proposto em 1025 pelos bispos de Cambrai e de Laon procede directamente desses dois livros: eles acrescentavam aos preceitos de Gregório, o Grande, muito latinos, ascéticos, de uma secura voluntária, o que lhes faltava de lirismo; davam mais amplitude ainda aos temas agostinianos. Estas páginas

2

Montfaucon, Biblioteca bibliotecarum manuscriptorum nova II, Paris, 1739, 1296.

3

BN lat. 1141; M. T. Gousset, “La représentation de la Jérusalem céleste à l'époque carolingienne”, Cadernos

foram lidas e relidas [Pg. 137] na França do Norte. Delas vem a originalidade do que foi, na Idade Média central, o conceito francés da acção política 4.

“Dizer hierarquia significa dizer uma ordenação perfeitamente santa” 5

. O

pensamento do pseudo-Dinis, transfere a noção de ordem para o campo sagrado – com o duplo sentido da palavra taxis e da palavra ordo. Ela diviniza o princípio gregoriano de autoridade e de desigualdade 6. Faz sobretudo da lei invisível, infrangível de que falava Santo Agostinho – importa manter o seu lugar, não deixar as fileiras – urna lei vivificante, pois essa lei governa o incessante movimento de expansão e de recuo, o fluxo e o refluxo contínuos pelos quais a luz que emana do Único desce a despertar os seres para a existência de uma ponta a outra da cadeia das criaturas, chamando-as para o alto, a reunirem-se na unidade do divino. Com efeito, “o fim da hierarquia é, tanto quanto possível, a

assimilação e a união com Deus” 7. Esta lei não difere da caridade, como não difere da

vontade do Criador. Porque Deus quis que os seres inteligentes “fossem santamente

dispostos e dirigidos na ordem” 8. Se acontece – e aqui está o mal, o verme no fruto, a

podridão – desordenar-se este movimento 9, os homens devem, correspondendo às intenções de Deus, trabalhar de todo o coração para levar o ciclo à calma e à regularidade. A noção dionisiana da hierarquia convida assim a reformar continuamente o que sempre tende a deformar-se.

Ela ordena também que se coopere na difusão da verdade. Pois que “a hierarquia,

ordem sagrada, é uma ciência e uma força em acção que leva os seres, tanto quanto possível, à semelhança divina e que, pelas iluminações divinas, os eleva, na medida das suas forças, à imitação de Deus” 10, as disposições do sistema implicam “que aqueles que estão à frente promovam a purificação dos outros”. E é por esta “força em acção”, que é

também conhecimento, que os dois mundos, o invisível e o visível, conseguem comunicar, assim como comunicam e hierarquicamente se articulam os dois livros das Hierarquias, a do céu e a da ecclesia. Por sinais evidentes, Deus revela aos homens o que na verdade são

4

Assim, as teorias que Suger se esforçou por pôr em prática, por hierarquização dos serviços feudais, emanam dele directamente.

5

Hiérarchie céleste, 165.

6

Na segunda metade do século XVII, os bispos, desde Bérulle, referem-se ao pseudo-Dinis para justificar a desigualdade social. 7 Hiérarchie céleste, 165. 8 Hiérarchie céleste, 273. 9

Traité des noms divins, 729.

10

as ordenações imateriais. Desperta assim, atrai a si “a parte passiva da nossa alma que se

eleva para as realidades mais divinas através da figuração bem combinada dos símbolos alegóricos” 11 – e Suger, ao reconstruir Saint-Denis, [Pg. 138] retomará este texto, quase

palavra a palavra, para inscrever, na pedra do edifício, o manifesto do seu propósito estético. As sociedades celestes e as do mundo perceptível são coordenadas pela analogia das suas estruturas. Deus “institui-nos também segundo uma hierarquia, para que

participemos na liturgia das hierarquias celestes pela semelhança do seu ministério santo e quase divino” 12.

Ora a configuração em que se desenvolve a dinâmica misteriosa da ordem e do conhecimento é tripla. “A divisão de toda a hierarquia é ternária” 13 – como dirá Loyseau,

a tripartição é pois “a mais perfeita”; é sagrada; e senão, vejamos: “os sinais muito divinos:

os seres divinos que conhecem estes sinais são os iniciadores; e, enfim, os que são santamente iniciados por estes últimos”. Razão pela qual, no céu, as inteligências puras,

que são os anjos, aparecem dispostas em tríades ajustadas, que não são as da Irlanda nem as de Georges Dumézil. A palavra de Deus atribui aos anjos, segundo a sua hierarquia, nove

nomes reveladores: o mestre que me iniciou repartiu-os em três disposições ternárias”. Ao

contacto imediato com Deus, os Serafins, os Querubins e os Tronos” constituindo uma

única tríade hierárquica e realmente primeira...” “para permitir às naturezas que os seguem que rivalizem com eles, elevam-nas, imitando a suprema bondade e comunicando- lhes o esplendor que as visitou. Por sua vez, estas naturezas secundárias (outra tríade: as

Soberanias, as Virtudes e as Potestades, transmitem às seguintes esse esplendor e, em cada

degrau, a primeira passa-as à seguinte pelo dom do esplendor da luz divina) 14. E é através

desta terceira tríade angélica (formada pelos Principados, pelos Arcanjos e pelos Anjos) que a luz se propaga enfim à terra, “reveladora para as hierarquias humanas 15. No último

degrau das “hierarquias celestes” estão os anjos; no primeiro degrau das “hierarquias eclesiásticas”, os bispos: dos primeiros para os segundos transmite-se a mensagem.

A ordem imaterial projecta-se, com efeito, no nosso mundo, na pessoa de Cristo, a 11 Ep. IX, 1108. 12 Hiérarchie céleste. I, 3. 13 Hiérarchie céleste, I, 50. 14

Hiérarchie céleste, VI, 2.

15

Hiérarchie céleste, IX, 24; B. Vallentin, “Der Engelstaat. Zur Mittelalterlichen Anschauung von Staat (bis auf Thomas von Aquino)”, Grundisse und Bousteine zur Stoats-und Geschichtslehre (Mel. G. Schmoller), Berlim, 1908.

forma encarnada de Deus. Deus feito homem, partilhando da condição humana, falando aos Seus discípulos; Jesus fundou a unidade das duas hierarquias. Reúne-as na Sua pessoa. Rege uma e outra, no ponto de sutura. A hierarquia inferior não pertence pois à eternidade. Começou um dia, no tempo, na história, com Jesus e através de um sacramento, um sinal iniciador, o baptismo; Gerardo de Cambrai, ao tentar convencer os heréticos de Arras da condição sagrada do baptismo – estes não estavam de acordo com ele- não falava de outra coisa. [Pg. 139] Podemos bem chamar eclesiástica a esta hierarquia. Instituída por Cristo, a igreja constitui toda a ordem terrestre; da Igreja e para a Igreja, a lei divina difunde-se sobre a humanidade; pensaria Adalberão de modo diverso? Mas, porque a sociedade humana é imperfeita, só compreende duas tríades: a tríade iniciadora dos que são capazes de atrair os outros para a perfeição, distribuindo os três sacramentos, o baptismo, purificador, a eucaristia, iluminadora e a confirmação, realizadora, sacramentos repartidos por três escalões, três graus de poder: os “ministros” (os simples clérigos), purificando e baptizando, os padres, iluminando, distribuindo o corpo de Cristo, e, finalmente os bispos,

“instruídos com toda a ciência santa”: “Neles se cumpre e se completa toda a ordenação da hierarquia humana”16, Em contrabaixo, simetricamente, a tríade dos “susceptíveis de

perfeição”: os que esperam ser purificados, catecúmenos, energúmenos e penitentes; o povo fiel, guiado pelos padres e a quem estes fazem participar na refeição eucarística; e, finalmente, os monges, mais puros que todos os outros, mas que na Igreja não se encarregam de qualquer missão dirigente, cujo lugar é estar com o povo às portas do santuário e que estão submetidos aos bispos.

Esta é a ordenação. Logo que foi revelada pela boa tradução de João Scot, a visão de Dinis fascinou a inteligência carolíngia: Dhuoda, no Manual que redigiu para uso de seu filho, medita sobre as “nove ordens dos anjos”; um capitular de Carlos, o Calvo, chama aos bispos os “tronos de Deus” 17. Em princípios do século XI, esta visão plana nos mais altos cumes da cultura erudita da Francia, da Nêustria: os pintores continuam a transpô-la para as páginas dos livros litúrgicos 18; quando, em 1007, o conde de Anjou, Foulques Nerra, funda o mosteiro de Beaulieu-les-Loches, dedica-o não apenas à Trindade, mas também aos

“exércitos celestes sobre quem Deus reina, a saber os Querubins e os Serafins”; o

padroado é assim confiado a essas forças que Dinis apresenta reunidas, com os Tronos, ao

16

Hiérarchie céleste, 505.

17

Manual, IX, 3; Capit. 11, 451.

18

lado do Todo-Poderoso, vigilantes, prontos a cair sobre os inimigos, tal como os condes, chefes dos exércitos terrestres, que, associados aos bispos, acompanham neste mundo a pessoa do monarca 19.

É claro que uma tal concepção da ordem possuía tudo para agradar a Gerardo e a Adalberão. Colocava os mosteiros sob a autoridade dos bispos, afirmava que estes últimos recebem a sageza directamente do céu; fazia deles os guias de toda a acção política; situava-os acima da lei humana, ao mesmo tempo de toda a instituição eclesiástica de que são reitores, nesse “intermédio que liberta progressivamente a humanidade [Pg. 140] do seu compromisso espácio-temporal” 20. Na verdade, “a hierarquia eclesiástica é, no seu

conjunto, celeste e legal. O seu carácter intermédio fá-la participar nas duas hierarquias extremas. Com uma, partilha das contemplações intelectuais, com a outra, da variedade dos símbolos sensíveis através dos quais se eleva santamente para o divino” 21. É evidente

que foi lendo Dinis que Gerardo e Adalberão encontraram plano do seu admirável edifício e, especialmente, o incitamento para apresentarem a ternaridade como o quadro de toda a organização justa das relações entre os homens. Hierarquizada, o que equivale a dizer sagrada, embora instituindo também a necessária desigualdade, essas relações feitas de afecto e de respeito, jogo de permutas que vão e vêm, sem tréguas, de uma ponta a outra da interminável cadeia pela qual se difunde misteriosamente e, ao mesmo tempo, regressa à origem o amor que faz mover o Sol e as outras estrelas.

O triângulo estava no âmago da obra do pseudo-Dinis, mas não as funções. Porque esta obra é, conforme diz Adalberão, “mística”; não presta atenção à materialidade do social; despreza o que rege a lei humana. Não seria completar a empresa dionisiana, dispor sobre a terra, em simetria com as tríades invisíveis, uma ternaridade – insistindo precisamente nos efeitos da lex humana, descrevendo as relações concretas de desigualdade de que todo o reino, todo o senhorio eram a imagem? E era aqui que ele achava útil introduzir no sistema o lugar-comum, a ideia repisada, o esquema de que falavam os eruditos da Grã-Bretanha, a trilogia dos oratores, dos bellatores e dos outros. Esta figura tinha a vantagem de ser ternária, de se prestar às analogias e, sobretudo, de se unir a uma outra ternaridade que não se encontrava na obra de Dinis, mas no De divisione naturae do

19

O Guillot, “La consécration de l'abbaye de Beaulieu-les-Loches”, Actas do Colóquio medieval de Loches

em 1973. Mémoires de la société archéologique de Touraine, IX, 1975.

20

R. Roques, L'univers dionysien. Structure hiérarchique du monde selon le pseudo-Denys, 1954, 9. 174.

21

seu comentador Erigeno, o Irlandês. João Scot punha aí, em relação analógica, as estruturas da Trindade e as da “natureza”, distinguindo sucessivamente nesta o corpo de que provém a

essência, quer dizer a produção dos bens materiais; a alma, “cujo lote é a virtude”, quer

dizer aquilo de que se alimenta o valor militar (no século XI faz-se o elogio do bom guerreiro, chamando-lhe animosus); e, por fim, o intelectus que, usando a sapientia, intervém pela operatio, quer dizer o domínio inspirado em toda a acção. Operario, oratio: as duas palavras atraem-se uma à outra; entre ambas, no sonho, desaparece facilmente toda a diferença. E podia ver-se assim, entre nós, no seio do que foi criado, veladas, mas perceptíveis, três funções. Em correspondência perfeita com as três divisões da natureza, com os três corpos de batalha dos exércitos angélicos: as três categorias funcionais da sociedade humana. [Pg. 141]

Perto da catedral, visitamos a oficina de que dispunham os bispos francos do ano mil, para melhor julgarem, para mais equitativamente distribuírem as penitências, para melhor ensinarem as suas ovelhas, à frente das quais se encontrava o rei. Para construírem sermões e discursos – de que o monarca era o primeiro ouvinte, sentado à frente do bispo na outra cátedra- destinados a ecoar entre o povo, em favor da coerência orgânica que unia, à pessoa do rei, a pessoa dos mais humildes hóspedes de sua casa, quer dizer do seu reino, a difundirem uma moral, de degrau em degrau, desde o chefe até às extremidades dos membros. Nesta oficina, tools e handwork, como teria dito Alfredo, o Grande: utensílios, as armas da palavra, a retórica, mas já também a dialéctica; um material complexo, armazenado na memória e nos livros, uma superabundante reserva de palavras. Aí trabalharam Adalberão e Gerardo, pegando em tal peça, rejeitando tal outra, para a substituir por uma melhor. Pouco modificando; contudo, dispondo, ordenando de forma nova.

Estes “prelados” partiram de três conceitos. O conceito de autoridade – quer dizer de desigualdade – temperado pela caridade; o conceito de ordem – mas sacralizado, porque a sociedade com que sonhavam não era uma “sociedade de ordens”: de ordem autêntica, só havia o clero; finalmente, o conceito de funções – a sua própria e as destinadas aos outros –

Documentos relacionados