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II – OS SISTEMAS CONCORRENTES

I – O TEMPO DOS MONGES

Adalberão e Gerardo pregaram no deserto. Devemos render-nos à evidência: não vemos, durante os cento e cinqüenta anos que se seguiram à redacção do Carmen e das

Gesta, que as gentes da alta cultura do Norte da França tenha retomado a frase que os dois

bispos lançaram ao mesmo tempo, em uníssono, ao pretenderem escorar o modelo da sociedade perfeita que ambos propunham. Não que rareiem os testemunhos da forma como os homens de pensamento representavam o mundo: eles são cada vez mais numerosos. Mas em vão procuramos nesses escritos quaisquer proclamações que pretendam, explicitamente, conforme o fizeram os dois bispos, fundar a ordem social sobre a complementaridade de três funções, atribuídas respectivamente aos dirigentes da Igreja, aos condutores dos guerreiros e aos camponeses subjugados.

Dir-me-ão: analise-se o texto que estes dois manuscritos do século XII nos apresentam. Não vêm da Francia, certamente; vêm da Lorena, o país natal de Gerardo e de Adalberão. Não seria composto na mesma época do Carmen e das Gesta? A sua finalidade não é a mesma? Pois não apresenta ele um terceiro – e contemporâneo – enunciado do princípio da trifuncionalidade social? Examinemo-lo de perto.

Trata-se da vida de um santo, uma “paixão”, a de um rei mártir, de um Merovíngio: Dagoberto II ou III 1. Veneravam-lhe o túmulo em Stenay, na margem lotaríngia do Mosa, não distante da antiga via romana que conduz a Reims, a Laon e a Cambrai. Stenay fora outrora domínio régio. Em 872, Carlos, o Calvo, mandara transportar para ali o que restava

[Pág. 193] do seu antecessor, assassinado dois séculos antes da floresta próxima de

Woövre, instituindo aí um capítulo de cónegos encarregados de velar pelas relíquias. Mais tarde, o domínio e a capela passaram para o património dos duques da Baixa-Lorena, parentes de Gerardo e de Adalberão. Os cónegos afrouxaram a vigilância; talvez se tivessem descuidado. Em 1069, o duque Godofredo, o Barbudo, julgando-os indignos da sua missão, substituiu-os pelos bons monges. Nesse tempo, tais substituições eram comuns:

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com elas se afirmava o êxito da monarquia. As relíquias, o santuário, a terra, constituíam um priorado dependente da abadia de Gorze. A propósito deste sepulcro e do culto de que era objecto escreveu-se a Vita Dagoberti, não sabemos por quem, nem quando. Tem todo o ar de ser merovíngia. É de facto a obra de um hábil imitador de obras literárias que numa rica biblioteca como devia ser a de Gorze, encontrou o Pseudo-Fredegário, Paulo Diacre, tirou dele uma ou outra frase, construiu com elas o seu relato, tanto mais fascinante para os que o ouviam quanto dir-se-ia vir do fim dos tempos. De facto, datava de longe, certamente do século XI. Do princípio? Não tenho a certeza. Suponho antes, como R. Folz, F, Grauss e K. H. Krüger, que a biografia foi composta quando os monges substituíram os cónegos em Stenay como consequência do esforço que fizeram para restaurar a devoção por essa capela, portanto depois de 1069, quarenta ou talvez sessenta anos após as proclamações de Gerardo e de Adalberão 2. Mas, justamente, não será mais significativo ainda que, no [Pág. 194] fim de duas gerações, um escritor lotaríngio retome, com tamanha fidelidade, as palavras dos dois bispos? E retomá-las-á? Oiçamos o que ele diz:

“A ordem (ordo) sacerdotal salmodiava, nos momentos prescritos, os hinos a Deus todo-poderoso, dedicando-se cada vez mais ao serviço do seu rei; também a ordem dos agricultores (agricolarum ordo) cultivava as suas terras com alegria, bendizendo quem

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R. Folz, “Traditions hagiographiques et culte de saint Dagobert, roi des Francs”, Le Moyen Age, 1963; F. Graus, Volk, Herrscher und Heilingen, 1965, p. 403, nº 604; K. H. Krüger, Königsgrabkirehen der

Franken, Munique, 1971, pp. 190-193. Estes historiadores concordaram em datar o texto do último terço do

século XI. Junto-me a esta hipótese; a de C. Carozzi (Congrès des Sociétés savantes, Lille, 1976) não me convence. Carozzi acha que a Vita foi redigida muito mais cedo, antes de 1040; de contrário - comenta - a hagiografia não teria deixado de atribuir ao seu herói real o poder taumatúrgico que Helgaud atribuía a Roberto, o Piedoso. Será prova bastante? Não era a cura do corpo, mas a fertilidade da terra que os peregrinos de Stenay esperavam de S. Dagoberto, como outros camponeses também, correndo a tocar as franjas do manto do rei Henrique IV da Germânia. C. Carozzi, em todo o caso, afirma que o texto é anterior a 1069, apoiando-se no facto de que se não trata de monges. É verdade-mas a Vita não fala senão de peregrinos de acaso, gente que se desloca, seculares. Um outro indício inclina, penso eu, a que se situe a redacção da vida de Dagoberto nos decénios que precederam 1100. Num dos manuscritos que no-la transmitem, o texto é seguido de uma genealogia régia. C. Carozzi vê neste facto a prova, mas sem dúvida não tem razão, de que os duques da Baixa-Lorena desejavam simultaneamente pôr em evidência os laços que ligavam a sua linhagem à dos monarcas francos e, ao glorificar-se Dagoberto, adquirirem um antepassado santo. Parece pouco provável que os duques tenham desejado exaltar um soberano dos anos vinte ou trinta do século XI. Nessa altura, com efeito, a Gesta dos Bispos de Cambrai o mostram, a casa de Ardenas opunha-se violentamente ao rei da Germânia, como aos Carlenses. Pelo contrário é natural que o duque mandasse celebrar as virtudes do rex pacificus, quer em 1069, quando restaurava no seu domínio um santuário para relíquias quer depois de 1087, tendo a Lorena cabido a Godofredo de Bouillon, neto de Godofredo, o Barbudo, verdadeiro descendente dos Carolíngios e muito preocupado em conhecer a sua ascendência (ver o estudo da Genealogia commitum Bulloniensium da autoria de L. Génicot, Etudes sur les

principautés carolingiennes, Lovaina, 1975). Não creio pois que a Vita Dagoberti tenha sido

mantinha a paz no seu território e satisfazia-os com a abundância de trigo; a juventude nobre, seguindo igualmente os velhos hábitos, divertia-se em certos momentos, brincando com os cães e os pássaros, sem por isso deixar de dar esmolas aos pobres, de confortar os desgraçados, de auxiliar as viúvas e os órfãos, de vestir os desnudados, de acolher os hóspedes e os vagabundos de boa família, de visitar os doentes e de dar sepultura aos mortos. A que assim procede, praticar a caça, devemos crê-lo, não tem qualquer prejuízo)). Mais adiante, o autor prossegue: “Instituído príncipe do seu povo pelo rei de todas as coisas”, Dagoberto “deve ser com fervor venerado pelo conjunto do seu poder secular (secularis potestas)... Que em tudo o honre a dignidade sacerdotal (sacerdotalis

dignitas) porque, no céu, se acha junto desta, da qual se diz “tu és presbítero para a

eternidade conforme a ordem de Melchisedech” que, com os anjos, canta para ele. Que seja, além disso, escoltado pelos agricultores, cujo trabalho é honroso, pois pela sua intervenção e pela excelência dos seus méritos devem tirar da terra abundantes colheitas: que o vinhateiro, sórdido ele próprio, não deixe de testemunhar a sua devoção a este santo, com todo o esforço do seu pensamento: não é este santo o auxiliar do seu alegre penar

(labor) 3?”

Esta segunda cena, triunfal, repete-se todos os anos, no dia de S. Dagoberto. O príncipe avança; vai introduzir-se entre os bem-aventurados, fazer a sua entrada de novo na cidade e todo o povo, exultante, o acompanha em cortejo. A parada, deve ser estritamente regulamentada; é uma manifestação do bom governo e da ordem que o príncipe tem por missão manter e que Deus deseja. A procissão representa, pois, a sociedade nas suas perfeitas ordenações. Tripartidas: a imagem assemelha-se, em certos aspectos, ao que Gerardo e Adalberão haviam sonhado. No entanto, é sensivelmente diferente. Primeiro, porque o discurso, que põe em cena a sociedade secular e a faz desfilar, a nossos olhos, não

[Pág. 195] projecta de qualquer modo a sua reforma. Não pensa instaurar nem restaurar

uma ordem. A sua intenção não é fortalecer em nada o Estado ou o trono. Acontece que o seu herói é um rei, mas é também, e antes de tudo, um santo e um santo que faz milagres. A finalidade da Vita é amplificar um culto em redor de um relicário, atrair e alimentar o fervor. Organiza uma peregrinação no dia 23 de Dezembro, dia da solenidade. Para isso, passa em revista as diversas categorias de possíveis visitantes – e doadores. Convoca-os,

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um após outro.

O apelo dirige-se, principalmente, e isto não deve surpreender, aos trabalhadores da terra. Não por lamentar o “labor”: pelo contrário, di-lo “alegre” e que, longe de os aviltar, os dignifica. Esta afirmação – não conheço outras nesta área cultural que se exprima de tal forma – enaltece o campesinato. Chega a erigi-lo como “ordem”. Em contrapartida, nada diz de um qualquer serviço que esta ordo agricultorum pudesse prestar às outras categorias sociais. No autor, não há a mínima preocupação de justificar a exploração senhorial. Não diz palavra sobre qualquer exacção sobre os frutos do esforço agrícola. Os agricultores e os vinhateiros são convidados a servir S. Dagoberto para que as espigas e as uvas sejam mais pejadas. É seu “adjutor”, menos pela paz da qual o rei em vida era o garante, do que pelo dom misterioso que o morto tem de difundir a fecundidade por todo o lado. Que os aldeões não esqueçam o milagre. Dagoberto não cura escrófulas, mas cura a aridez dos campos: quando voltou ao sacramento, indo de Reims para a Austrásia e atravessando Stenay, os camponeses pediram-lhe que semeasse, com as suas próprias mãos, o grão e, nesse ano, a colheita foi admirável 4. As relíquias do monarca são, pois, reserva de fertilidade, e a festa no solstício é uma festa agrária. Se se trata, neste escrito, da terceira função, a função alimentadora, é o santo-mártir quem a desempenha.

Voltando-se para os nobres-mais precisamente para os jovens da nobreza-, a arenga apenas fala de caça. Na verdade, na aristocracia franca, a caça era um muito velho rito de adolescência. Na Vida de S. Trond, na Gesta de Dagoberto I, em textos merovíngios semelhantes àqueles em que os trechos, remendados, formam a trama do relato que nos ocupa, os filhos de reis são sempre apresentados, antes de atingida a idade viril, perseguindo a caça na floresta, conforme é hábito; escoltados por monteiros que são rapazes da mesma idade 5. Para reter a atenção dos adolescentes da nobreza e para suscitar a sua generosidade, não seria mau ataviar S. Dagoberto, ele próprio caçador, assassinado como Santo Eustáquio durante uma batida, como divindade, não camponesa [Pág. 196] mas silvestre, como provedor de curas miríficas. Por isso se desculpam os jovens, afirmando que caçar não é, de modo algum, proibido às gentes de boa estirpe, desde que

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Vita Trudonis, IV (MGH, SRM, VI, 276): “venandi ritum ut mos est regii pueri; Gesta Dagoberti primi regis Francorum, II (MGH, SRM, II, 401): “cum autem adolescentiae aetatem ut genti Francorum moris est venationibus exerceret”.

não dediquem a este jogo todo o seu tempo e compensem o delito com a prática das boas obras. Mas onde vemos que seja evocada a função militar dos nobres? Não há, aqui, nem

miles nem bellator. E não é apenas porque normalmente o discurso hagiográfico evite

evocar a guerra. A este opúsculo publicitário não interessam as funções, sejam elas guerreira ou alimentadora. O “poder secular” não se distingue pelas armas que usa: não se fala dos serviços que pode prestar aos outros, a não ser pela generosidade de suas esmolas.

Como não se fala de orator. Padres que, sujeitos ao monarca, devem “servi-lo”. Longe de fazer eco às exortações de Adalberão, de Gerardo ou dos gelasianos, a Vita

Dagoberti contradi-los neste ponto, quando submete rigorosamente o clero ao poder real.

Enfim, subentende-se que esses padres sejam inferiores aos monges. Destes últimos, o texto nada diz. Se admitirmos que ele foi composto no scriptorium de Gorze, explica-se facilmente tal ausência. Certos monges possuíam agora as relíquias; empregavam-se em explorar esse capital, atraindo peregrinos; dirigiam-se pois aos padres que cantam, aos camponeses que trabalham, aos nobres que caçam, a homens que não haviam deixado o mundo, que eram livres de ir, de vir. Mas não falam dos outros monges. Porque o teriam feito? Os monges não devem sair da sua clausura. Se aparecessem também em Stenay, no dia 23 de Dezembro, pecariam contra a regra.

Conclusão: a figura tripartida, já o disse, não deve ser isolada do contexto, do sistema em que se articula. A Vita Dagoberti mostra como seria perigoso fazê-lo. Vemos, efectivamente, exposta aqui uma grelha de classificação ternária. Todavia, a noção de função torna-se neste caso muito marginal. Quanto ao conceito de harmonia social, que possivelmente se fundaria na permuta de serviços entre três ofícios, esse parece por completo esquecido. Enfim, a tripartição não se aplica ao conjunto da sociedade. Reserva- se um lugar, exterior, aos monges, de tal forma que a organização social acaba por ficar, de facto, quadripartida. As duas frases que citei estão muito próximas – de certeza absoluta mais próximas que qualquer outra que tenhamos conservado – das que Adalberão e Gerardo pronunciaram por volta de 1030. Estão porém muito longe de dizerem a mesma coisa. Em palavras quase semelhantes, apoia-se um sistema ideológico que me não parece, de forma alguma, derivar do sistema que os dois bispos construíram. Estes, mesmo na região dos seus antepassados, não tinham sido ouvidos.

Será que não falaram bastante alto? Sem dúvida que, ao morrer, Adalberão deixou o seu poema inacabado, inédito: o único manuscrito que ficou é confuso. Mas o seu autor era um homem público, importante, [Pág. 197] admirado, e dificilmente podemos acreditar que tivesse ficado oculta a verdade que ele se esforçara por projectar sobre as discórdias de que via invadida a sociedade. Quanto a Gerardo, esse clamava com todas as suas forças: na inquietação geral que o surto da heresia alimentava, o tratado dogmático, cuja composição o sínodo de Arras suscitara, foi, temos a certeza, de muito larga difusão. Tal como o texto da Gesta episcoporum cameracensis, que foi continuado durante decénios, arranjado, copiado. Laon e Cambrai não eram lugares afastados. O que se dizia nessas cidades em franco desenvolvimento, postadas como estavam num dos itinerários mais frequentados, tinha a possibilidade de se espalhar por todo o lado. Tratei demoradamente de um primeiro problema: por que razão o postulado trifuncional foi, em 1025, extraído do inexpresso? Que tenha logo caído, que imergisse de novo do não dito, não deixando após si, à superfície dos discursos, mais que pequenas ondas que depressa se desfizeram – levanta uma interrogação que não é menos perturbadora.

Uma única explicação me parece satisfatória: o enfraquecimento brusco mas profundo da realeza capetíngia, a partir da morte de Roberto, o Piedoso, em 1031, arrastou consigo o enfraquecimento da instituição episcopal. O bispo de Laon e o de Cambrai não deixaram de ter razão: o seu poder e o do soberano estavam indissoluvelmente ligados. Desmoronaram-se juntos. Deixando o rei de controlar firmemente as eleições episcopais, começaram, em redor dos cargos catedrais, as intrigas, os tráficos de influência, a corrupção na escolha dos prelados, aquilo a que se chamava simonia, que a Raul Glaber parecia, tal como as epidemias e as fomes, um dos sinais da desordem geral que a aproximação do ano mil provocava no universo. A degradação dos processos de recrutamento enfraqueceu no corpo episcopal, a independência e as qualidades humanas. O que delas podia permanecer foi-se esgotando nas lutas confusas pelas prerrogativas senhoriais. Nos anos trinta ou quarenta do século XI, os grandes arcebispos das Gálias, em Bruges, Viena, Lião, Arles, Besançon, tornaram-se príncipes temporais, levando ao combate bandos de cavaleiros vassalos contra os seus concorrentes laicos – lutas duvidosas,

travadas palmo a palmo, dia após dia, por vezes até às portas da catedral. O que no clero havia de melhor empenhava-se numa política mundana e de linhagem.

Os monges aproveitaram-se logo desta fraqueza. O fervor dos laicos e a vaga dos seus óbolos acabaram por voltar-se para os mosteiros reformados. Passado o ano de 1030, a invasão monástica que Adalberão queria conter explodiu, revolucionando as estruturas da Igreja durante um século. Revolucionando, ao mesmo tempo, as estruturas da alta cultura e, especialmente, as dos discursos acerca da sociedade proclamados de maneira assaz aparatosa para que possamos, após mil anos, ouvir-lhes o eco. É verdade que alguns clérigos falavam ainda. Mal os ouvimos: a voz dos monges abafava o que diziam. Quase todos os textos que hoje conservamos foram, durante um século, entre 1030 e 1120, escritos em [Pág. 198] mosteiros, e as imagens da organização social que podemos reconstituir são, principalmente, de confecção monástica. O sistema ideológico construído em redor do tema trifuncional servia o interesse dos bispos. Agora escapa-nos ao olhar. Deveremos pensar que desapareceu por completo das consciências? Ou antes somente do campo muito restrito que se abre ao historiador e isto pelo efeito apenas de um resvalar que se operou entre as fontes? Será assim tão simples?

O eclipse prolongou-se: durante século e meio deixamos de ouvir enunciar a idéia de que o género humano se divide entre os que oram, os que combatem e os que trabalham, numa permuta de serviços que reúne as três categorias funcionais. Mas este período prolongado de latência decompõe-se em duas fases. Somente na primeira, que termina por volta do ano de 1120, as expressões ideológicas, cujo vestígio se conservou, permaneceram estritamente controladas pelos monges. Detenhamo-nos, primeiramente, nesta idade monástica.

Foi longe. O mundo continuava a mudar. O incremento agrícola prosseguia, acelerava-se e adivinha-se que, pouco de pouco, o uso da moeda começava a difundir-se um pouco por todo o lado. Esses movimentos profundos não conseguiam, contudo, destruir por completo, na formação social, as sobrevivências das antigas relações de produção. Assim, até cerca do ano de 1110, as cartas, as notícias, os inventários relativos aos grandes

domínios do Norte da França, continuam a distinguir os camponeses livres dos que não parecem sê-lo; e mostram um sistema de rendas e de corveias que prolonga os tipos de exploração da época carolíngia. Todavia, parece que o desenvolvimento foi bastante rápido – e este foi o seu efeito mais evidente -para apaziguar a efervescência que a instalação do novo senhorio suscitara no povo. O monge Raul Glaber viu com justeza: os infortúnios, os espasmos que, durante os decénios que se seguiram ao ano mil atormentavam o universo, perderam a força. Entre Deus e os seus fiéis concluiu-se uma nova aliança. A paz e a prosperidade voltaram à terra. Raul data de 1033, milenário da Paixão, esta moderação da turbulência. Porém, ele escreveu em meados do século. Ora as mais recentes investigações dos historiadores do feudalismo confirmam que o forte dos conflitos que opunham os senhores aos rivais que lhes disputavam o poder, e aos súbditos que submetiam à mais intensa exploração, acabou nessa altura, um pouco por toda a parte. Acordos amistosos puseram fim a longas querelas, fixaram as fronteiras das castelanias e das dependências do feudo. Os príncipes da Igreja foram forçados a reconhecer que, impedidos como estavam pela teoria gelasiana de, pessoalmente, derramarem sangue, portanto de castigar e defender, deviam deixar que os “poderosos” laicos reprimissem os crimes cometidos no seu próprio senhorio: cortar mãos, vazar olhos, enforcar, matar na fogueira. Tiveram [Pág. 199] também de abandonar a esses “advogados”, a esses “guardiões”, pelo preço do serviço que prestavam, o direito de se apropriarem de uma parte dos impostos senhoriais. Também nesse momento parece admitir-se, decidida, mente, na camada média da sociedade laica, a divisão entre os cavaleiros, que escapavam às obrigações, e os rústicos, que suportavam todo o peso do poder banal. Milites, rustici: a partir daí, os escribas isolam os dois grupos um do outro, sempre que no fim dos pergaminhos escrevem os nomes das testemunhas, dos signatários. Este limite social era o que as instituições da paz de Deus traçaram. A espécie

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